32
Ínicio
>
Artigos
>
Atualidades
>
Processo Penal
ARTIGOS
ATUALIDADES
PROCESSO PENAL
Combate à violência doméstica: é possível avançar em tempos de covid-19?
Soraia da Rosa Mendes
17/04/2020
Soraia Mendes e Patricia Burin*
“Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher!” é um conhecido ditado popular que vem sendo questionado nos últimos anos tanto por pressão dos movimentos feministas, quanto em razão da edição da lei nº 11.340/06, conhecida como lei Maria da Penha. Uma mudança cultural imprescindível que não tem sido fácil e que agora, em plena pandemia covid-19, ganhou novos e mais problemáticos contornos pela necessidade do confinamento.
Sabemos nós que a casa historicamente nunca foi um lugar de refúgio seguro para as mulheres. Não tendo sido poucas as vezes que nos dedicamos em nossas pesquisas, livros e em nossas lidas diárias, como advogada e delegada de polícia que somos, a reiterar que o lar sempre foi muito pouco “doce” para meninas, esposas, companheiras, mães, avós. De maneira que ser mulher e estar, hoje, em razão da pandemia, impedida de sair à rua é, como escrevemos em repetidas ocasiões[1], estar encarcerada sob a vigilância e violência daquele que se converte no pior dos carcereiros.
Impossibilitadas de saírem de casa, com cidades praticamente fechadas e serviços de polícia judiciária reduzidos ao limite da essencialidade, era mais do que certo que as mulheres ficariam abandonadas à própria sorte, sem condições de comunicar às autoridades constituídas eventuais violências a que viessem a ser submetidas.
O nada “doce lar” é, como sempre foi, um espaço extremamente arriscado para as mulheres. Daí porque não ser de espantar que em um país como o Brasil, que ostenta o quinto lugar no ranking mundial em mortes de mulheres, a pandemia tenha vindo não só a aumentar os casos de violência doméstica e familiar, mas a escancarar a incapacidade que tivemos enquanto Estado (e sociedade) de tratar com a devida seriedade o combate à violência de gênero (sim, de gênero!) como prioridade.
Atentas a esse contexto, algumas Secretarias de Segurança Pública nos Estados, como é o caso da catarinense, ampliaram as hipóteses de registro de ocorrência pela internet, passando a admitir que a violência doméstica seja registrada virtualmente, sem que as mulheres tenham que se expor a contágio do coronavírus. Este procedimento guarda inquestionáveis vantagens que, em nosso entender, talvez sejam um saldo positivo pós-pandemia. E é sobre isso que queremos falar agora.
O primeiro, e óbvio, resultado salutar de uma medida como essa é permitir que a vítima possa registrar a ocorrência sem precisar sair de sua casa no contexto de necessidade de confinamento como o que vivenciamos. Em acréscimo, e sob outra perspectiva, é notável também que poupar à mulher o comparecimento à Delegacia de Polícia para registro de ocorrência já é também um alento ante a constatação de que a obrigatoriedade de apresentar-se no distrito policial é, na esmagadora maioria das vezes, por si só uma violação que implica em revitimização.
Não temos dúvidas de que até mesmo delegacias especializadas em atendimento à mulher tendem a ser ambientes inóspitos. Possibilitar a uma mulher expressar-se desde o seu lugar de morada e, principalmente, por si própria, sem ter de se expor a um plantão policial é, sem sombra de dúvidas um avanço.
Outro ponto importante que percebemos com o registro eletrônico é a abertura da “narrativa do fato” para a própria voz da vítima sem que haja uma “tradução” da vida vivida para “o papel” mediante a intervenção de policiais, na maioria homens. Não esqueçamos que ainda são em menor número (e preparadas para tanto!) as profissionais do gênero feminino que atendem mulheres que procuram as delegacias em situação de vulnerabilidade.
As narrativas em primeira pessoa, observe-se, são muito mais vívidas e completas do que costumam ser quando aquelas registradas presencialmente. De modo que o registro online de ocorrências de violência doméstica é, em nossa opinião, uma conquista que não deve recuar com a superação da pandemia e que, propomos nós, deve inclusive avançar.
Não obstante, tomando mais uma vez como recorte a experiência catarinense, as mulheres que necessitam pleitear medidas protetivas de urgência, mesmo em tempos de pandemia e ainda que possam realizar o registro online, permanecem sendo obrigadas a se dirigir à Delegacia de Polícia para que se confeccione seu pedido de medida protetiva e para que ele seja encaminhado ao Poder Judiciário.
A razão para tal procedimento encontra justificativa no fato de que a lei Maria da Penha não tenha previsto o acesso direto das mulheres ao Poder Judiciário para pugnar pela concessão de medidas protetivas de urgência. Algo que, em nosso entender, é um fator dificultador da proteção aos direitos fundamentais das mulheres em situação de vulnerabilidade e também um enorme erro hermenêutico.
A melhor interpretação da lei Maria da Penha jamais pode ser buscada em sua literalidade. Menos ainda quando as experiências das mulheres em contexto de violência mostram que existem vias mais ágeis e adequadas para proporcionar a concessão das medidas protetivas de urgência. Não sendo outra, pois, a regra inscrita na própria lei em seu artigo 4o. onde se lê que para sua interpretação “serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar”. Dispositivo este que representou (e representa) uma verdadeira revolução epistemológica no campo do processo penal[2] e que nos permite avançar de modo a ampliar os caminhos de acesso das mulheres ao Poder Judiciário durante (e após!) a pandemia.
À exemplo do Habeas Corpus, que pode ser impetrado por qualquer pessoa, independentemente da intermediação de advogado, nada impede (pelo contrário há lastro constitucional para tanto) que sejam criados mecanismos de acesso direto das mulheres ao Poder Judiciário. Sendo também possível, paralelamente, tendo em mente as desigualdades de nossa população, a ampliação do rol de autoridades (ou mesmo particulares) com atribuição de comunicar ao Poder Judiciário o pleito de medida protetiva de urgência. O encargo poderia ser também atribuído a organizações não-governamentais de defesa dos direitos das mulheres ou mesmo aos órgãos e serviços de Assistência Social ou à Rede de Saúde.
Lembremos que as medidas protetivas não guardam relação de essencialidade com um crime, valendo registrar que a atuação da Polícia Judiciária, diante de seu caráter predominantemente repressivo, demanda a configuração de um ilícito penal. Na sua melhor interpretação, as medidas protetivas de urgência independem do registro de um boletim de ocorrência ou de representação criminal. Daí porque é perfeitamente admissível que a mulher vitimada seja poupada da violência institucional que o trâmite policial pode lhe impor.
O registro de ocorrência online será um problema somente se for jogado na vala comum de crimes para os quais não é feita investigação por serem crimes de menor gravidade. E, se assim for, alto demais será o risco de reificação da narrativa de “menor lesividade”, algo a que sempre nos opusemos.
A solução, por outro lado, será simples, bastando que, para além da descrição do fato e o assinalamento de um ou mais crimes pela vítima, que o formulário conte com o campo especifico “violência doméstica”. E que também seja garantida à vítima a faculdade de registrar a ocorrência, se assim desejar (ou necessitar), tanto virtual, quanto presencialmente. A proceder desta forma diminutos seriam os riscos de que a notícia do delito passasse “desapercebida” entre outros registros.
Por outro lado, também entendemos como vital que, dado conhecimento oficial da violência e requerida a MPU (seja pelo registro de ocorrência, seja diretamente pela vítima, seja pela “impetração” por terceiro, como acima defendemos) se dê agilidade ao procedimento tornando todo o trâmite – da notícia da violência ao Judiciário até a intimação do agressor da concessão da MPU – via online.
Por sinal, o Enunciado nº 9, aprovado no Fórum Nacional de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid) prevê a utilização do aplicativo de mensagens WhatsApp como meio eficaz de dar efetividade a atos processuais como notificações e intimações, tendo em vista as suas funcionalidades. Medida essa já adotada de acordo com recomendação do CNJ, por alguns Tribunais de Justiça (Rio Grande do Norte, por exemplo) a partir de respaldo nos princípios da instrumentalidade e da informalidade do processo.
Enfim, é preciso avançar de modo a ampliar os caminhos de acesso rápido, seguro e direto das mulheres ao Poder Judiciário. E tal preocupação extrapola o período excepcional em que estamos vivendo.
Quem sabe possam ser experiências bem sucedidas de registro online de B.O, acesso direto da vítima para o requerimento da medida protetiva à semelhança do remédio constitucional do habeas corpus e o trâmite inteiramente via web – desde narrativa do fato até a concessão da MPU – um salto qualitativo na defesa das mulheres em situação de violência que a pandemia poderá nos deixar.
_________
1 Neste sentido, veja Criminologia Feminista: novos paradigmas. 2a. Edição. Editora Saraiva, 2017.
2 Vide Processo Penal Feminista. Editora Atlas, 2020.
_________
*Patricia Burin é delegada de polícia de Santa Catarina, especialista em Segurança Pública e mestra em Direito Constitucional pelo IDP.
OUÇA PODCAST COM SORAIA MENDES
LEIA TAMBÉM
- Considerações sobre o limite de tempo de cumprimento de pena
- Mulheres, Direito e Direitos – com Soraia Mendes
- Geraldo Prado faz prefácio do livro ‘Processo Penal Feminista’, de Soraia Mendes
Veja aqui outros textos da autora!
MAIS SOBRE CORONAVÍRUS
- PGJ #021 – Coronavírus: Requisitos de Concessão do Auxílio Emergencial, com Leonardo Cacau
- Direitos fundamentais, bioética e pandemia – Live com Tiago Fensterseifer e Henderson Fürst
- Ética | Pandemia, direito, ética e globalização, Regis Prado
- Filosofia do Direito | Subjetividade e pandemia, Alysson Mascaro
- Previdenciário | Requisitos para Auxílio Emergencial, Leonardo Cacau La Bradbury
- Administrativo | Coronavírus e o poder de polícia impositivo, José dos Santos Carvalho Filho
- Educação | Andrea Ramal, Guilherme Klafke e Silvia Casa Nova discutem o futuro do ensino superior após o COVID-19. Assista à live!
- Filosofia do Direito | Coronavírus: uma pandemia para rever as patologias sociais do cotidiano, Eduardo C. B. Bittar
- Civil | Considerações sobre a Medida Provisória (MP) nº 948, Felipe Quintella
- Civil | Os reflexos da pandemia do Coronavírus sobre as relações contratuais, Tatiane Donizetti e Elpídio Donizetti
- Civil | Pensão alimentícia em tempos de pandemia: a obrigação permanece ou não?, Gediel Araújo
- Internacional | É possível responsabilizar a China perante a Corte Internacional de Justiça no caso da Covid-19?, Valerio Mazzuoli
- Civil | Considerações sobre a Medida Provisória (MP) nº 948, Felipe Quintella
- Filosofia do Direito | Coronavírus: uma pandemia para rever as patologias sociais do cotidiano, Eduardo Bittar
- Trabalho | Medida Provisória 945 – Alterações no trabalho portuário durante pandemia de COVID-19, Marco
- Serau Junior
- Ambiental | Para não dizer que não falei da COVID-19
- Civil | Considerações sobre o Projeto de Lei nº 1.179 (Parte 1), Felipe Quintella
- Internacional | É possível responsabilizar a China perante a Corte Internacional de Justiça no caso da Covid-19?, Mazzuoli
- Constitucional | Em entrevista, José Eduardo Sabo Paes fala sobre preocupação do MPDFT com o COVID-19, José Eduardo Sabo Paes
- Legislação | Medida Provisória nº 936/2020: Instituição do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, GEN Jurídico
- Processo Civil | Covid-19: Quais os reflexos do estado de calamidade pública para o processo?, Leonardo Carneiro da Cunha
- Penal | O novo coronavírus e o Direito Penal, Carlos Eduardo Japiassú e Artur de Brito Gueiros Souza
- Trabalho | Considerações preliminares sobre a Medida Provisória nº 936, de 1º de abril de 2020, Pedro Paulo Teixeira Manus
- Civil | Locac?a?o residencial e pandemia, Felipe Quintella
- Previdenciário | Assistência social # 1 – Lei 13.982/2020 e o retorno ao critério de ¼ de salário mínimo de renda per capita mensal familiar para concessão do BPC, Marco Serau Júnior
- Administrativo | LRF em quarentena, Luiz Henrique Lima
- Administrativo | Contratação emergencial e fast track licitatório em tempos de crise, Rafael de Oliveira
- Direito Médico | Telemedicina em tempos de pandemia, Genival França
- Trabalho | Medida Provisória 927 – Alterações trabalhistas em tempos de coronavírus # 3 – Como fica o FGTS?, Marco Serau Júnior
- Civil | Pandemia do novo coronavírus: caso fortuito ou força maior?, Felipe Quintella
- Biodireito | Vedação de retrocesso em situação de pandemia, Henderson Fürst
- Civil | O coronavírus e os contratos. Extinção, revisão e conservação. Boa-fé, bom senso e solidariedade, Flávio Tartuce
- Processo Civil | A quarentena, soluções processuais e o futuro, Haroldo Lourenço
- Tributário | Paralisação da atividade produtiva e o problema dos tributos, Kiyoshi Harada
- Internacional | Por um plano global de confiança e cooperação internacional contra o Coronavírus, Maristela Basso
- Civil | O coronavírus e os grandes desafios para o Direito de Família: a prisão civil do devedor de alimentos, Flávio Tartuce
- Civil | Como fazer testamento em momento de isolamento social, Ana Luiza Maia Nevares
- Previdenciário | Pagamento antecipado de benefícios do INSS durante estado de calamidade pública, Marco Aurélio Serau Junior
- Imobiliário | Contrato de locação, contratos de financiamento e contratos em geral: as consequências da pandemia, Scavone Junior
- Constitucional | Saúde, transportes, pandemia e competências federativas, Ana Paula de Barcellos
- Internacional | As determinações da OMS são vinculantes ao Brasil?, Valerio Mazzuoli
- Tributário | Empréstimo compulsório sobre patrimônio ajuda a combater Covid-19, Marcus Abraham
- Previdenciário | Afastamento por COVID-19 e a MP 927/20, Hélio Gustavo Alves
- Civil | Nego?cios juri?dicos, a pandemia e o defeito da lesa?o, Felipe Quintella
- Penal | O novo coronavírus e a lei penal – Conversando com o Nucci
- Civil | O novo coronavírus (Covid-19) e os Contratos: Renegociação, revisão e resolução contratual em tempos de pandemia, Welder Queiroz
- Civil | Nota relativa à pandemia de coronavírus e suas repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil, Bruno Miragem
- Civil | Aumento de preços durante a pandemia e o estado de perigo, Felipe Quintella
- Constitucional | A esperança não é um estado de exceção, Edson Fachin
- Penal | As implicações criminais das “fake news” entre outras condutas, diante da pandemia do novo coronavírus (COVID-19), Joaquim Leitão Júnior
- Trabalho | O Coronavírus: uma pandemia jurídica trabalhista e a MP 927/2020, Jorge Neto, Cavalcante e Wenzel
- Tributário | Desligaram a chave da economia: e agora?, Gabriel Quintanilha
- Trabalho | Responsabilidade do empregador e fato do príncipe nos tempos de Coronavírus: análise jurisprudencial, Enoque Ribeiro dos Santos
- Civil | A pandemia do coronavírus e a importância do planejamento sucessório, Felipe Quintella
- Trabalho | Medida Provisória 927 – Alterações trabalhistas em tempos de coronavírus # 2 – A tentativa de introdução da negociação individual do contrato de trabalho, Marco Aurélio Serau Junior
- Trabalho | Breves Comentários à MP 927/20 e aos Impactos do Covid-19 nas relações de emprego, Vólia Bomfim
- Constitucional | Gabriela, Coronavírus, Decreto de Calamidade e Presidência do Congresso Nacional – Um caso de inconstitucionalidade, João Carlos Souto
- Tributário | Soluções tributárias para a crise do coronavírus, Gabriel Quintanilha
- Constitucional | Medida Provisória 927 – Alterações trabalhistas em tempos de coronavírus # 1 – Pode uma medida provisória revogar outra?, Marco Aurélio Serau Junior
- Empresarial | Coronavírus: por que não uma recuperação judicial expressa?, Thomas Felsberg
- Financeiro e Econômico | Emergência, calamidade e contas públicas, Luiz Henrique Lima
- Penal | A pandemia do coronavírus e a aplicação da lei penal, Guilherme Nucci
- Financeiro e Econômico | Coronavírus e a Lei de Responsabilidade Fiscal, Marcus Abraham
- Civil | Impossibilidade de cumprimento de obrigações de fazer em razão da pandemia do coronavírus, Felipe Quintella
- Trabalho | Responsabilidade do empregador e fato do príncipe nos tempos de Coronavírus, Enoque Ribeiro dos Santos
- Civil | Guarda compartilhada e regulação de visitas (pandemia ou pandemônio), Rolf Madaleno
- Financeiro e Econômico | Coronavírus e Direito Econômico: reflexões sobre desafios e perspectivas, Paulo Burnier da Silveira
- Civil | A pandemia do coronavírus e as teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, Felipe Quintella
- Trabalho | O Direito Coletivo do Trabalho em tempos de Coronavírus, Enoque Ribeiro dos Santos
- Trabalho | Coronavírus: medidas que podem ser tomadas pelos empresários, Vólia Bomfim
- Administrativo | Direito Administrativo e coronavírus, Rafael Oliveira
- Trabalho | CORONAVÍRUS: uma pandemia decretada e seus reflexos no contrato de trabalho, Jorge Neto, Cavalcante e Wenzel
Não perca o Informativo de Legislação Federal, resumo diário com as principais movimentações legislativas. Clique e confira!