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O princípio da separação dos Poderes na prática
Kiyoshi Harada
12/05/2020
O princípio da separação dos Poderes atribuído a Montesquieu não significa separação dos Poderes em compartimentos estanques, incomunicáveis. No Brasil esse princípio está expresso no art. 2º da Constituição Federal nos seguintes termos:
São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
O princípio é de independência e harmonia no sentido de que cada Poder tem a sua esfera de atuação preponderante, sem que possa ingressar na esfera de atuação preponderante de outro Poder.
Assim cabe ao Legislativo preponderantemente exercer atividades legislativas; cabe ao Executivo preponderantemente exercer atividades executivas que implica execução de leis; e cabe ao Judiciário preponderantemente exercer a atividade jurisdicional, isto é, julgar.
Porém, esses três Poderes exercem atividades atípicas que se inserem no âmbito de competência preponderante de outro Poder.
Dessa forma, o Poder Legislativo exerce também a função judicante, quando julga o Presidente da República nos crimes de responsabilidade, quando julga administrativamente as infrações cometidas por seus servidores, bem como, promove licitações para compra de materiais. O Poder Executivo, igualmente, exerce função judicante no bojo do processo administrativo tributário, ou nos autos do processo administrativo disciplinar, e edita decretos autônomos nas hipóteses das letras a e b, do inciso VI, do art. 84 da CF. O Poder Judiciário também realiza atos de nomeação de seus servidores, promove licitações para aquisição de bens e contratação de serviços.
O que não é admissível é um Poder ingressar na área de atuação preponderante de outro Poder, normalmente de competência privativa de outro Poder. Cada Poder tem a esfera de sua competência exclusiva ou privativa delimitada expressamente na Constituição Federal.
O princípio de independência e harmonia não pode ser confundido com independência e autonomia que não existe no nosso ordenamento jurídico, porque isso transformaria em Estado cada um desses Poderes. O Estado Federal Brasileiro é uno e indivisível. Os três Poderes são funções do Estado Federal.
Contudo, ultimamente, a ingerência de um Poder sobre as atribuições típicas de outro Poder está crescendo assustadoramente gerando uma grande insegurança jurídica. O princípio de freios e contrapesos parece ter sido esquecido pelas autoridades constituídas. O art. 52, II da CF que confere poderes ao Senado Federal para julgar processar e julgar os Ministros do STF em crime de responsabilidade é uma letra morta.
O Legislativo não vem apreciando, a tempo, as medidas provisórias, ainda que urgentes e relevantes para esse período de pandemia, preferindo trabalhar sobre as pautas legislativas próprias, bem distantes daquelas objetivadas pelo Executivo, voltadas para a implementação do plano de ação governamental. Tanto é que duas propostas de reforma tributária estão sendo discutidas: a PEC 45/19 na Câmara Federal por iniciativa do Deputado Baleia, e outro no Senado, a PEC 11019 de autoria do ex Deputado Luiz Carlos Hauly. Para não tumultuar ainda mais com uma terceira proposta, o governo até hoje não apresentou o seu projeto de reforma. Tem-se a impressão que estamos em um sistema parlamentar de governo, e não no sistema presidencialista.
No Poder Judiciário essa ação atípica vem crescendo, de um lado, em virtude de lacunas deixadas pelo legislador infraconstitucional que não regulamentou diversas matérias reservadas à lei complementar, e outras à lei ordinária. De outro lado, os Ministros da Alta Corte de Justiça do País vem concedendo medidas liminares para sustar atos de privativa competência do Executivo, bem como interferindo nas políticas públicas examinando o mérito delas, tornando-se sócia do governante legitimamente eleito para gerir a coisa pública.
Talvez, uma forma de atenuar os efeitos do ativismo judicial seria uma alteração do Regimento Interno do STF, a fim de coibir decisões monocráticas para sustar atos praticados por Chefes de outros Poderes.
No formato atual não vigora no STF o princípio da colegialidade. O Plenário da Corte decide uma coisa em determinado sentido, e no dia seguinte um Ministro decide monocraticamente em sentido oposto. Assim foi no caso de prisão em segunda instância. O Plenário teve que rejulgar o caso, fixando neste novo julgamento posição contrária à prisão antes do trânsito em julgado formal da decisão condenatória.
Cumpre esclarecer que determinadas decisões do Executivo são tomadas com base em informações sigilosas fornecidas pelo seu órgão de informação, a ABIN, que sucedeu o antigo Serviço Nacional de Informações, bastante conhecido pela sua atuação no Regime Militar. Nenhum outro Poder dispõe de serviços de informações e contra informações nos moldes da CIA americana.
Não apenas a competência entre os Poderes está sendo exercida de forma anormal, como também, a competência entre as três esferas políticas, que são autônomas e independentes (art. 18 da CF), está ficando cada vez mais nebulosa gerando medidas contraditórias.
A exemplo da competência dos Poderes da República, a competência dos entes federados estão disciplinada na Constituição. Ao Estado cabe legislar sobre tudo que não for da competência da União discriminada no art. 22, ressalvados ainda os assuntos de peculiar interesse que são de competência legislativa municipal (art. 30 da CF). Ocorre que, não só é bem ampla a competência privativa da União, enumeradas nos XXIX incisos do art. 22, como também, extensas as suas atribuições previstas nos incisos I a XXV, do art. 21 da CF. Isso faz com que a alegada competência ampla dos Estados sofra restrições profundas. É o federalismo centralizado.
O art. 23 prevê ainda a competência comum das entidades políticas para zelar, cuidar, proteger, impedir, preservar etc. em relação às matérias discriminadas nos seus incisos I a XII. Essa competência não se confunde com a competência legislativa.
Finalmente, o art. 24 prevê a competência concorrente para legislar sobre assuntos previstos nos incisos I a XVI, do art. 24 da CF. No âmbito da competência concorrente cabe à União traçar normas gerais, sem adentrar em pormenores. Os Estados e Municípios ficam com a competência supletiva, porém, exercendo competência plena em não havendo normas gerais de União. Sobrevindo as normas gerais da União, as normas da lei estadual ficam com a eficácia suspensa naquilo que lhe for contrário (§§ 1º, 2º e 3º).
Nessa época de pandemia Estados e Municípios estão legislando por decretos e portarias, sem respeitar as normas da Lei nº 13.979/20 que rege as atividades de combate ao coronavírus, nesta época de calamidade pública. Essa Lei tem seu fundamento no art. 21, inciso XVIII da CF que confere à União a faculdade de planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações.
Governadores e prefeitos estão impondo restrições que vão muito além daquelas autorizadas pela lei de regência da matéria, atentando contra a inviolabilidade do sigilo de comunicações, o direito de ir e vir, o direito de propriedade etc. Em recente julgamento o STF declarou a inconstitucionalidade da Medida Provisória que autorizava a quebra de sigilo nas comunicações a favor do IBGE.
O Prefeito de São Paulo baixou medida prevendo a prisão de comerciante que abrir o seu estabelecimento, mediante o uso indevido da Guarda Civil Metropolitano, que não tem, constitucionalmente, a atribuição própria de polícia de segurança pública.
Recentemente determinou, repentinamente, o bloqueio das principais avenidas e ruas da cidade, causando um congestionamento monstro que prejudicou a circulação de ambulâncias e locomoção de médicos, enfermeiros e paramédicos que chegaram às respectivas unidades de trabalho com quatro ou cinco horas de atraso. O dano causado é irreversível. O tumulto verificado resultou na revogação dessa medida, logo substituída por rodízio baseado nas placas par/impar, a vigorar por 24 horas do dia. Quem não conseguir retornar ao local de origem antes da meia noite somente poderá fazê-lo no dia seguinte ao seguinte. O Ministério Público Estadual abriu uma investigação sobre o bloqueio de vias públicas, para saber se o ato decretado foi precedido de estudos técnicos.
Na verdade, esse bloqueio e alteração do critério de rodízio nada tem a ver com a melhoria do fluxo de trânsito na Capital. Pelo contrário, visa exatamente dificultar o trânsito para obter adesão forçada ao isolamento social. Trata-se, portanto, de um verdadeiro desvio de finalidade que caracteriza ato de improbidade administrativa (art. 11, inciso I, da Lei nº 8.429/92)
Se o Prefeito quer aprisionar as pessoas de baixa renda em suas residências, impedindo a sua saída em busca do pão de cada dia, deveria ao menos pensar em um programa social que atenue a fome das pessoas necessitadas, ao invés de ficar divulgando abertura de 13.000 covas e fabricação de igual número de caixões, uma informação de muito mau gosto. Pode até abrir a covas de reserva, mas não é preciso dar publicidade a isso, pois, gera medo e pânico.
As autoridades municipais e estaduais devem se preocupar com a sobrevivência econômica das pessoas. Não podem desenvolver uma política que leve a grande parcela da população ao desespero por falta de alimentos básicos, deixando para o governo federal consertar o estrago, mediante distribuição de recursos financeiros que um dia vão acabar. Afastar as doenças e matar as pessoas de fome não me parece ser uma solução razoável. Não fora a ação do governo federal milhares já teriam morrido de fome. É bom lembrar que a assistência social tanto quanto assistência à saúde é de competência comum das três entidades políticas componentes da Federação Brasileira.
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