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Felipe Quintella

Felipe Quintella

26/03/2020

Neste quarto artigo da série sobre os impactos do novo coronavírus no Direito Civil, cuidarei de um tema da Teoria do Negócio Jurídico, em virtude dos casos de aumentos abruptos de preços que têm ocorrido: o defeito do estado de perigo.

Como tem sido divulgado, vários casos ocorreram de “empreendedores” que, no início da crise causada pela pandemia do novo coronavírus, adquiriram grandes quantidades de produtos — sobretudo, álcool em gel —, para, agora, vender o produto por um preço elevado, aumentando substancialmente, assim, sua margem de lucro.

Imaginemos, então, a situação de Caio, que precisa de álcool em gel para os cuidados com sua mãe, Maria, senhora idosa, de quem ele cuida, em casa. Por não encontrar o produto na região em que mora, Caio acaba aceitando a proposta que lhe foi feita por Rui, seu vizinho. Rui formou um estoque de álcool em gel logo que foram identificados os primeiros casos da COVID-19 no Brasil. Comprou embalagens de 500ml por R$ 15,00 cada. Agora, Rui oferece a seus vizinhos o produto, por R$ 60,00 a embalagem de 500ml. Para evitar riscos à saúde da mãe, Caio, em 23/03/2020, compra dez embalagens de álcool em gel de Rui.

Indaga-se, então: há algo que Caio possa reclamar, depois de ter celebrado o contrato?

Vamos examinar a situação, neste artigo, do ponto de vista estrito do Direito Civil.

O Código Civil de 2002 incluiu, dentre os defeitos do negócio jurídico, o defeito denominado estado de perigo — a exemplo do Código Civil italiano de 1942.

Conforme o art. 156 do Código de 2002, “[c]onfigura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa”. O parágrafo único do dispositivo complementa a regra, determinando que “[t]ratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias”.

Conforme explicamos — eu e o Prof. Elpídio Donizetti — no nosso Curso de Direito Civil, são os seguintes os pressupostos para a configuração do defeito do estado de perigo: (1) a situação com potencial lesivo; (2) o conhecimento, pelo outro sujeito, dessa situação; (3) a onerosidade excessiva; (4) a prática do ato, com o objetivo de extinguir o perigo.

No caso do contrato celebrado entre Caio e Rui, concluímos que estão presentes todos os pressupostos, vez que: (a) a mãe de Caio está no grupo de risco da COVID-19 — pressuposto 1; (b) Rui, vizinho, tem conhecimento dessa situação — pressuposto 2; (c) Rui ofereceu 500ml de álcool em gel, que comprou pelo preço de mercado de R$ 15,00, por R$ 60,00, valor consideravelmente mais alto — pressuposto 3; (d) Caio, a despeito do preço exorbitante, celebrou o contrato, vez que precisa de álcool em gel para desinfetar superfícies que possam conter o coronavírus, reduzindo, assim, as chances de que Maria se contamine — pressuposto 4.

Presentes todos os pressupostos, resta configurado o defeito.

Nos termos do art. 170, II do Código de 2002, é anulável o negócio jurídico por vício resultante de estado de perigo. Conforme o art. 178, II, por sua vez, é de quatro anos o prazo decadencial para pleitear a anulação do negócio em que se configurou o estado de perigo, contado da data da celebração do contrato.

Conclui-se, pois, que Caio teria quatro anos, contados da celebração do negócio — ou seja, até 23/03/2024 —, para ajuizar ação anulatória do negócio celebrado com Rui, provando o estado de perigo.

Consulte o Curso de Direito Civil para esclarecer suas dúvidas sobre temas de Teoria do Negócio Jurídico, e sobre o Direito Civil em geral.

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