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Considerações sobre a Medida Provisória (MP) nº 948
Felipe Quintella
09/04/2020
Foi publicada na Edição 68-A do Diário Oficial da União, em 8 de abril de 2020, a Medida Provisória nº 948, da mesma data, a qual, conforme sua ementa,
Dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19).
O art. 1º, seguindo a diretriz do art. 7º da Lei Complementar nº 95/1998, estabelece o objeto da MP. A parte normativa, na sequência, contém quatro dispositivos (arts. 2º a 5º). O art. 6º, por fim, trata da vigência, determinando a entrada em vigor da MP na data da sua publicação (a qual ocorreu na mesma data da promulgação).
Nos termos do art. 2º da MP,
Art. 2º Na hipótese de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem:
I – a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados;
II – a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas; ou
III – outro acordo a ser formalizado com o consumidor.
1º As operações de que trata o caput ocorrerão sem custo adicional, taxa ou multa ao consumidor, desde que a solicitação seja efetuada no prazo de noventa dias, contado da data de entrada em vigor desta Medida Provisória.
2º O crédito a que se refere o inciso II do caput poderá ser utilizado pelo consumidor no prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020.
3º Na hipótese do inciso I do caput, serão respeitados:
I – a sazonalidade e os valores dos serviços originalmente contratados; e
II – o prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020.
4º Na hipótese de impossibilidade de ajuste, nos termos dos incisos I a III do caput, o prestador de serviços ou a sociedade empresária deverá restituir o valor recebido ao consumidor, atualizado monetariamente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial – IPCA-E, no prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020.
Como se vê, o assunto principal da MP é a impossibilidade do cumprimento de obrigaçõesde fazer decorrentes de contratos de consumo, em virtude de fatos relacionados à pandemia do novo coronavírus (SARS-Cov-2).[1]
Parece-me importante esclarecer, de início, que a hipótese não se confunde com as de responsabilidade civil do fornecedor for fato (arts. 12 a 17) nem por vício (arts. 18 a 25) do produto ou do serviço, de que trata o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Eventual dano sofrido pelo consumidor, aqui, seria decorrente, ao contrário, da ausência do serviço; da sua inexecução.
Ocorre que o CDC não contém norma específica para tal hipótese, o que ensejaria a aplicação das normas gerais estabelecidas pelo Código Civil.
O dispositivo do CDC que mais se aproxima da hipótese é o art. 35:
Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha:
I – exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade;
II – aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente;
III – rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.
Veja-se que o inc. III do art. 35 assegura ao consumidor o direito à rescisão (tecnicamente, resolução) do contrato, com restituição do que pagou antecipadamente, mais perdas e danos.
No entanto, a meu ver, tal dispositivo não se aplica à hipótese em exame, vez que, nesta, não se cuida de recusa — ato voluntário — do fornecedor, mas de impossibilidade sem culpa — fato não imputável a este.
Consequentemente, penso eu, seria aplicável o art. 248 do Código Civil, que determina a resolução da obrigação.
Resolvida a obrigação — a despeito de o dispositivo legal não o mencionar expressamente —, deveria haver a restituição de valores antecipados, para que se restabelecesse o estado anterior, e para que não houvesse enriquecimento sem causa.
E é justamente neste ponto que incidem as regras do art. 2º da MP, para estabelecer alternativas à resolução do contrato.
A redação do art. 2º da MP, sem dúvida, poderia ser melhor.
No entanto, examinado-se o § 4º do dispositivo em conjunto com o caput, conclui-se, claramente, que se trata de obrigação facultativa, cuja escolha cabe ao devedor (o fornecedor, no caso).
Veja:
O fornecedor — conforme o § 4º do art. 2º — tem a obrigação de
RESTITUIR o “valor recebido ao consumidor, atualizado monetariamente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial – IPCA-E, no prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020”
mas pode optar — conforme o ‘caput’ e os incisos do art 2º — por
ASSEGURAR ao consumidor “I – a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados; II – a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas; ou III – outro acordo a ser formalizado com o consumidor”.
Observe que, tendo optado por assegurar ao consumidor todas ou algumas das opções de que tratam os incisos do art. 2º, aí, agora, caberá ao consumidorescolher o que prefere, sem custo adicional, taxa ou multa, no prazo de 90 dias, contado da data da entrada em vigor da MP — ou seja, de 8 de abril de 2020. Ou seja, surge, para o consumidor, obrigação alternativa.
Note, no entanto, que o direito de escolha atribuído ao consumidor pelo § 1º não afasta a possibilidade de o fornecedor optar, desde logo, pela restituição dos valores, devidamente corrigidos — sobretudo porque, em muitos dos casos, tal seria o desejo dos próprios consumidores. Isso, afinal, porque se trata de obrigação facultativa do fornecedor: a prestação devida é a restituição, mas se atribui ao devedor a faculdade de substituí-la pelas prestações de que tratam os incisos do art. 2º.
Também o art. 4º da MP trata de flexibilização da regra do art. 248 do Código Civil:
Art. 4º Os artistas já contratados, até a data de edição desta Medida Provisória, que forem impactados por cancelamentos de eventos, incluídos shows, rodeios, espetáculos musicais e de artes cênicas e os profissionais contratados para a realização destes eventos não terão obrigação de reembolsar imediatamente os valores dos serviços ou cachês, desde que o evento seja remarcado, no prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020.
Parágrafo único. Na hipótese de os artistas e os demais profissionais contratados para a realização dos eventos de que trata o caput não prestarem os serviços contratados no prazo previsto, o valor recebido será restituído, atualizado monetariamente pelo IPCA-E, no prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020.
Também aqui se criou obrigação facultativa — aqui, com sanção pelo descumprimento:
O artista, por aplicação das normas gerais do Código Civil, está obrigado a
RESTITUIR “os valores dos serviços ou cachês”
mas pode optar — conforme o ‘caput’ do art 4º — por
REMARCAR o evento “no prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020” (art. 4º, caput).
Se exercer a faculdade de que trata o ‘caput’ do art. 4ºe não realizar o evento “no prazo previsto” (art. 4º, parágrafo único), estará obrigado a
RESTITUIR ao contratante “os valores dos serviços ou cachês” (art. 4º, caput) “atualizado monetariamente pelo IPCA-E, no prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020” (art. 4º, parágrafo único).
O que, no entanto, não afasta a possibilidade de o artista optar, desde logo, pela restituição dos valores — em muitos dos casos, possivelmente, tal seria o desejo dos próprios contratantes —, não exercendo, assim, a faculdade que a MP lhe atribuiu.
Por fim, é imprescindível comentar o art. 5º da MP, o qual contém uma falha técnica grave:
Art. 5º As relações de consumo regidas por esta Medida Provisória caracterizam hipóteses de caso fortuito ou força maior e não ensejam danos morais, aplicação de multa ou outras penalidades, nos termos do disposto no art. 56 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.
A infeliz redação estabelece que as relações de consumo de que trata a MP “caracterizam hipóteses de caso fortuito ou força maior”.
Ora, na verdade, o que se pode extrair de sentido da norma é que se reconhece que a impossibilidade de cumprimento dos contratos de consumo a que se refere a MP decorreu de caso fortuito ou força maior—[2] fatos relativos à pandemia, e, por conseguinte, não imputáveis ao fornecedor.
E, nesse sentido, não havendo responsabilidade do fornecedor — pela ausência de nexo de causalidade —, aí sim, naturalmente, não há que se pensar em indenização de danos, ou de aplicação das sanções previstas no art. 56 do CDC.
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[1] Nesse sentido, ver meu artigo Impossibilidade de cumprimento de obrigações de fazer em razão da pandemia do coronavírus. As peculiaridades, aqui, são, primeiramente, que se trata de relações de consumo, e, ainda, o fato de ter havido edição de normas de vigência temporária — pela MP — para disciplinar o assunto durante a pandemia.
[2] Sobre o assunto, ver meu artigo Pandemia do novo coronavírus: caso fortuito ou força maior?.