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Os impactos do COVID-19 sobre os contratos de locação em shopping center
Thiago Ferreira Cardoso Neves
24/04/2020
O Coronavírus, cientificamente batizado de COVID-19, tem produzido efeitos danosos na vida dos indivíduos. Sim, essa parece ser apenas mais uma notícia velha e ultrapassada, diante de todas as que temos sido inundados nessa tsunami de informações que transbordam nas páginas de jornais físicos, televisivos e eletrônicos, mas na verdade se trata de uma constatação que não para de surpreender e estarrecer a todos nós. A cada dia de isolamento, e já caminhamos para 01 mês, a angústia e as incertezas aumentam. E no mundo do direito não é diferente.
As relações jurídicas têm sido fortemente impactadas pelos efeitos da pandemia do COVID-19, notadamente as patrimoniais, dada a crise econômica que já assola o país desde o início do avassalador avanço do vírus, que tem levado os governos locais a editar uma profusão de decretos determinando o fechamento de espaços públicos e privados. Dentre esses últimos, os shoppingsde quase todo o país tiveram suas portas fechadas, obrigando os lojistas a abruptamente encerrar, ainda que transitoriamente, as suas atividades.
O fechamento das lojas em shoppings centers por determinação do Poder Público é, inequivocamente, um fato do príncipe, que nada mais é do que um evento de força maior caracterizado por uma ação do Estado sobre a qual o particular não pode impedir, atingindo inexoravelmente as obrigações. No caso, as obrigações atingida são os contratos de locação dos imóveis não-residenciais, situados dentro destes centros de compras.
Dúvida que tem sido levantada diz respeito à obrigatoriedade ou não de cumprimento pleno do referidos contrato, isto é, diante da pandemia e das determinações sanitárias impostas pelos governos, com a impossibilidade de exercício de atividades dentro de shoppings, poderão os locatários suspender os pagamentos dos aluguéis ou estes continuarão devidos?
Algumas respeitáveis vozes da doutrina têm afirmado que sim, sob o argumento de que, impedido o exercício da atividade lojista, e sendo obrigação do locador assegurar o uso da loja, não se afiguram presentes os requisitos que autorizam a cobrança da contraprestação – os aluguéis.
No entanto, em que pese este entendimento, pensamos que a suspensão, por si só, do pagamento dos aluguéis não parece ser a medida jurídica e economicamente mais adequada.
Primeiro, embora a cessão do espaço em shopping center se caracterize como um contrato de locação, a relação entre empreendedor e lojistas não se encerra neste vínculo, consubstanciando-se em uma relação complexa, uma verdadeira coligação contratual,[1] em que diversos contratos são travados com o fim de atingir um objetivo econômico comum, que é o funcionamento do empreendimento e o exercício da atividade dos lojistas, de modo que sem um desses contratos não se viabiliza a relação e, tampouco, o shopping como um todo.
Segundo que essa complexa relação tem uma natureza interempresarial, pois mantida entre empresários, isto é, exercentes de atividades econômicas organizadas para a produção ou circulação de bens ou serviços, nos termos do art. 966 do Código Civil. O empreendedor, através de seu estabelecimento, chamado de superfundo empresarial, exerce uma atividade empresária em que fornece produtos e serviços aos frequentadores do shopping, bem como os lojistas exercem suas próprias atividades por meio de seus estabelecimentos, fornecendo bens de consumo aos frequentadores do centro de compras.
As relações interempresariais são marcadas fundamentalmente pelo risco empresarial, que nada mais é do que o risco inerente a toda atividade empresária, que é muito maior do que o risco de uma mera relação civil. Os empresários, ao contratarem entre si, assumem um risco maior de insucesso da sua atividade, bem como um risco decorrente das intempéries que podem assolar o mercado. Nesse sentido, a norma internacional ISO 31000:2018 de gestão de riscos (C31000 – Certified ISO 31000 Risk Management Professional) define oficialmente o risco empresarial como o efeito da incerteza nos objetivos, tais como metas financeiras, de segurança, ambientais ou qualquer outra diretamente relacionada à atividade empresarial.
Essa livre e consciente assunção de riscos só é possível, sob a ótica jurídica, por força da maior autonomia privada que permeia essas relações, o que ficou mais evidente com a redação do novo parágrafo único do art. 421 do Código Civil, acrescido pela Lei da Liberdade Econômica – Lei nº 13.874/2019, bem como do art. 421-A, que trata especificamente dos contratos empresariais, os quais estabelecem a plena liberdade contratual e a excepcionalidade da revisão dos contratos, prevalecendo o princípio da intervenção mínima sobre eles.
Isso não significa, por certo, que todo e qualquer risco é assumido, de modo absoluto, não se admitindo ponderação e revisão do contrato. Tal conclusão seria, no mínimo, absurda. No entanto, nessas relações, a intervenção e a tutela estatal, quando da concretização dos riscos, é mais sensível, devendo ser a menor possível, sempre em casos excepcionalíssimos e buscando manter um mínimo de equilíbrio, mas jamais transportando a assunção de riscos apenas para uma das partes. Como dito, as atividades empresariais são naturalmente arriscadas, estando na órbita da previsibilidade das partes, que anuem com essa álea. E isso só é possível graças a maior autonomia que permeia essas relações.
Veja-se, ainda, que essa autonomia também é reforçada nas locações de espaço em shopping center, cujo art. 54 da Lei nº 8.245/1991, a Lei do Inquilinato, prevê que “Nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center , prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei. Daí também se extrai nosso terceiro argumento.
Em relação à cessão do espaço a ser ocupado pelo lojistas, esta decorre de um contrato de locação para fins comerciais, nos exatos termos dos arts. 52, § 2º e 54 da Lei do Inquilinato, contrato este através do qual uma pessoa, o locador, cede temporária e onerosamente à outra, o locatário, a posse do bem imóvel para que nele seja explorada uma atividade econômica.
Portanto, trata-se de um contrato oneroso, cuja contraprestação pela cessão da posse do imóvel é o pagamento do aluguel, de modo que, tendo o locatário a posse ou a mera disponibilidade do imóvel, é devida a remuneração. A causa jurídica, portanto, para a cobrança dos aluguéis é a posse do imóvel.
No caso das determinações emanadas do Poder Público de fechamento dos shoppings e de outros centros comerciais não há, propriamente, um desapossamento do imóvel, isto é, o locatário não perdeu, em absoluto, a posse da coisa, isso porque, como parece evidente, os bens que integram o estabelecimento do lojista continuam a ocupar o espaço das lojas, de modo que o locador não retomou a posse do bem. O que há é uma impossibilidade, momentânea, de exercício da atividade por determinação do Poder Público, e não do empreendedor, o dono do shopping, que não é o causador dessas situações impeditivas.
Nesse sentido, suprimir absolutamente o pagamento dos aluguéis mais se equipara a uma sanção ao dono do shopping, que não causou a impossibilidade jurídica do exercício da empresa pelos lojistas, do que uma medida de justiça ou equilíbrio contratual. Muito pelo contrário, ter-se-á uma solução injusta, do ponto de vista negocial, para esse imbricado problema.
Há, então, que se pensar em uma saída equânime, em estrita observância à justiça contratual e ao princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Cumpre observar que, sem prejuízo das relações internas entre as partes, a isenção momentânea do pagamento dos aluguéis, sob a ótica concorrencial, também poderá levar a uma prática de violação à livre concorrência, na medida em que outros exercentes de atividades econômicas, fora dos shoppings, não terão essa “benesse”, e serão obrigados a arcar com a integralidade dos prejuízos ocorridos durante o período da pandemia, e com seus posteriores efeitos, o que poderá influenciar nos preços e condições de pagamento dos produtos e serviços, aumentando-os, enquanto que os lojistas sofrerão menos com essas consequências, permitindo-lhes manter as condições anteriores.
Diante de todos esses aspectos, jurídicos e econômicos, ainda pensamos, como já tivemos a oportunidade de manifestar em outras sedes, que o caminho adequado é, primeiramente, a observância do dever de renegociar, através do qual os empresários estudarão medidas que mantenham o equilíbrio da relação, sem que um deles tenha que suportar, sozinho, todos os ônus. Há que se lembrar, mais uma vez, que estamos diante de um contrato interempresarial, e não uma relação civil comum, e muito menos consumerista.
Na relação entre empreendedor e lojistas no âmbito de um shopping center, em que pese não possamos falar em uma sociedade em conta de participação, como sustenta parcela da doutrina,[2] há inequivocamente uma relação de parceria, em que o sucesso do empreendimento depende do sucesso dos lojistas e vice-versa. Há, portanto, uma verdadeira simbiose, em que ambos devem, conjuntamente, suportar os prejuízos, ainda que se diga que uma das partes deve suportar a maior fatia. O que não se pode admitir, a nosso sentir, é a assunção integral dos riscos por apenas um dos empresários, o que é absolutamente estranho à noção de risco empresarial.
Como proposta de solução, pensamos que uma possibilidade é a redução, ou mesmo a supressão, do pagamento das taxas condominiais. Diante da inequívoca redução das despesas comuns, é plenamente possível a redução proporcional do valor do “condomínio”, cuja demonstração contábil não se revela complexa, assim desonerando o lojista e não impedindo que o empreendedor custeie as despesas necessárias à manutenção da estrutura.
Outra possibilidade é a própria redução do valor dos aluguéis, mas não a sua absoluta suspensão. Lembrem-se, como vimos anteriormente, que o lojista, em que pese impedido de exercer a sua atividade por determinação do Poder Público, não foi desapossado do imóvel, tanto que os bens que compõem seu estabelecimento continuam na loja, no box ou no quiosque. Portanto, afastar o pagamento dos aluguéis, suspendendo a eficácia do contrato, não se revela adequado do ponto de vista jurídico, haja vista que a causa para a cobrança dos aluguéis e a cessão da posse do imóvel.
Essas, então, nos parecem ser medidas justas e adequadas para esse período transitório.
Caso, contudo, as partes não cheguem a um consenso, a solução será, inequivocamente, a adoção de medidas judiciais visando a revisão do contrato, invocando-se a teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva, prevista, dentre outros dispositivos, no art. 478 do Código Civil. Decorrência da cláusula rebus sic statibus, segundo a qual se subentende que as partes, no momento da celebração do negócio, o fazem segundo as condições fáticas e econômicas existentes e conhecidas quando do nascimento do vínculo, obrigando-se a cumprir com o contrato enquanto as condições permanecerem as mesmas, a teoria da imprevisão autoriza a revisão dos contratos quando essas condições se alterem por um fato superveniente, extraordinário e imprevisível, que leve a uma excessiva onerosidade para uma das partes e uma extrema dificuldade para o cumprimento da obrigação.
Assim, parece-nos induvidosa a possibilidade de revisão contratual, mediante a aplicação da teoria da imprevisão, na presente hipótese.
Há que se observar, ainda sobre esse aspecto, que o PL 1.779/2020, que trata do Regime Jurídico Emergencial e Transitório durante o período da pandemia, mais especificamente em seu art. 7º, caput e § 1º, trouxe limitação à aplicação da teoria durante da imprevisão durante a crise epidêmica, mas excepcionou e admitiu a sua aplicação no âmbito das relações de consumo e locatícias. Como a obrigação de pagar os aluguéis e as taxas condominiais decorrem do contrato de locação, não há impedimento legal à revisão do contrato na presente hipótese.
Sem prejuízo de tudo o que se disse, e embora afirmemos a impossibilidade de suspensão do pagamento dos aluguéis, entendemos que, no caso de não cumprimento da obrigação no prazo, poderá o locatário se eximir do pagamento da multa e demais encargos e consectários da mora.
Isso porque, nesta hipótese extraordinária, tem-se inequivocamente um evento fortuito ou de força maior que reclama a aplicação do disposto no art. 393 do Código Civil. O referido dispositivo trata dos efeitos do inadimplemento quando este decorre de um fato extraordinário de efeitos inevitáveis que impossibilite a entrega da prestação, isto é, o caso fortuito e a força maior.
Ocorrendo uma dessas hipóteses, consoante previsão do caput do art. 393 do Código Civil, o devedor não responderá pelos prejuízos causados ao credor, os quais estão descritos no art. 389 do Código Civil, quais sejam, as perdas e danos, os juros, a atualização monetária e os honorários de advogado, caso haja a intervenção destes para a cobrança.
O que se percebe, de tudo o que se disse, é que a crise epidemiológica causada pelo COVID-19 tem atingido não apenas a saúde e a vida das pessoas, mas também das relações jurídicas, que estão sendo assoladas pelos efeitos maléficos do vírus. Se já não bastasse o medo que assola os indivíduos, as incertezas jurídicas causam um clima maior de terror, levando os operadores do direito a buscarem soluções equânimes e justas que olhem não apenas para o sofrimento de uma das partes, mas principalmente para a justiça contratual e social, o que só é possível fazer por meio das lentes de uma análise econômica macro do direito, e não apenas de uma visão micro contratual.
Crédito da imagem: Reprodução/Brasil Acontece
[1] No mesmo sentido, REQUIÃO, Rubens. Considerações jurídicas sobre os centros comerciais (“shopping centers”) no Brasil. In: ARRUDA, José Soares; LÔBO, Carlos Augusto da Silveira (Coord.). Shopping centers. Aspectos jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984. p. 130), João Carlos Pestana de Aguiar (AGUIAR, João Carlos Pestana de. O fundo de comércio e os “shopping centers”. In: ARRUDA; LÔBO. Op. cit. p. 191) e João Augusto Basilio (BASILIO, João Augusto. Shopping center. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 32).
[2] BELMONTE, Alexandre de Souza Agra. Natureza jurídica dos shopping centers. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1989. p. 51.
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