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Contratação emergencial e fast track licitatório em tempos de crise
Rafael Carvalho Rezende Oliveira
03/04/2020
A pandemia do Covid-19, causada pelo novo coronavírus, tem apresentado inúmeros desafios para os diversos ramos do direito, especialmente a partir da constatação de que o ordenamento jurídico, muitas vezes, não possui ferramentas efetivas e adequadas para lidar com a excepcionalidade da situação de urgência na saúde pública global.[1]
No Brasil, proliferaram, nos últimos meses, diplomas normativos, em diferentes esferas federativas, com a fixação de normas temporárias e excepcionais para o enfrentamento da crise, destacando-se, para os fins do presente ensaio, regras especiais para contratações emergenciais pela Administração Pública.
Em situação de anormalidade, o próprio ordenamento jurídico reconhece, portanto, medidas excepcionais (legalidade extraordinária) para o atendimento do interesse público. Em razão das circunstâncias fáticas excepcionais, que demandam atuações estatais urgentes, admite-se, no “estado de necessidade administrativo”, a preterição das regras que são aplicadas ordinariamente à Administração Pública, abrindo-se caminho para aplicação de uma legalidade excepcional ou alternativa.[2]
O estado de necessidade administrativo funciona como verdadeira causa de exclusão da ilicitude de uma atuação administrativa contra legem, tendo em vista que a atuação será submetida à uma “legalidade alternativa”. A natureza contra legem da atividade administrativa relaciona-se com o seu “confronto face à legalidade jurídico-positiva que normalmente rege a Administração Pública, sabendo-se, no entanto, que a mesma é substituída, desde que se verifiquem os pressupostos do estado de necessidade administrativa, por uma legalidade excepcional”.[3]
Nesse contexto, em razão da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, foi promulgada a Lei 13.979/2020, alterada pela MP 926/2020, para dispor sobre as medidas a serem adotadas para o enfrentamento da situação emergencial.[4]
Trata-se de lei temporária que tem a sua vigência restrita à duração do estado de emergência internacional pelo coronavírus responsável pelo surto de 2019, cabendo ao Ministério da Saúde a edição de atos normativos necessários à sua regulamentação e operacionalização (arts. 7º e 8º).
Além das medidas elencadas no art. 3º (isolamento; quarentena; realização compulsória de exames e testes; restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País; requisição de bens e serviços etc.),[5] o legislador instituiu nova hipótese de dispensa de licitação e relativizou algumas exigências formais no certame e na própria contratação direta, naquilo que poderíamos denominar de “fast track licitatório”, com a simplificação e abreviação do rito procedimental.
Nesse contexto, o art. 4º da Lei 13.979/2020, alterado pela MP 926/2020, prevê a dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. A dispensa em comento é temporária, vigente enquanto perdurar a emergência de saúde pública e os respectivos contratos serão imediatamente disponibilizados em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (art. 4º, § 1º e § 2º).
Admite-se, excepcionalmente, a contratação de fornecedora de bens, serviços e insumos de empresas punidas com a declaração de inidoneidade ou com a suspensão para participar de licitação ou contratar com o Poder Público, quando se tratar, comprovadamente, de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido (art. 4º, § 3º).
A aquisição direta de bens e a contratação direta de serviços, na forma do art. 4º-A da Lei 13.979/2020, não se restringe a equipamentos novos, desde que o fornecedor se responsabilize pelas plenas condições de uso e funcionamento do bem adquirido.
Nas contratações diretas, com dispensa de licitação na forma do art. 4º-B da Lei 13.979/2020, presumem-se atendidas as condições de: a) ocorrência de situação de emergência; b) necessidade de pronto atendimento da situação de emergência; c) existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e d) limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.
O legislador consagrou procedimento simplificado para contratações relacionadas ao combate à pandemia gerada pelo coronavírus, afastando algumas exigências formais tradicionalmente previstas na Lei 8.666/1993, inclusive aquelas direcionadas para as contratações diretas, e na Lei 10.520/2002.
A simplificação formal do procedimento de contratação, com dispensa de licitação, na presente hipótese, pode ser assim exemplificada:
a) Desnecessidade de elaboração de estudos preliminares quando se tratar de bens e serviços comuns (art. 4º-C da Lei 13.979/2020);
b) Somente será exigido o Gerenciamento de Riscos da contratação somente será exigível durante a gestão do contrato (art. 4º-D da Lei 13.979/2020);
c) possibilidade de apresentação de termo de referência e projeto básico simplificados (art. 4º-E da Lei 13.979/2020);[6]
d) constatada a eventual restrição de fornecedores ou prestadores de serviço, a autoridade competente, excepcionalmente e mediante justificativa, poderá dispensar a apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista ou, ainda, o cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação, ressalvados a exigência de apresentação de prova de regularidade relativa à Seguridade Social e o cumprimento do art. 7º, XXXIII, da CRFB (art. 4º-F da Lei 13.979/2020).
O legislador estabeleceu, ainda, o “fast track licitatório” para o pregão, com a abreviação do rito procedimental. Na realização de licitação, na modalidade pregão, eletrônico ou presencial, relacionada ao enfrentamento da emergência, os prazos dos certames serão reduzidos pela metade e os recursos administrativos (art. 4º-G, caput e § 2º, da Lei 13.979/2020).[7]
É dispensada, ainda, a realização de audiência pública prevista no art. 39 da Lei 8.666/1993 para as licitações realizadas para contratações que objetivem o enfrentamento da emergência (art. 4º-G, § 3º, da Lei 13.979/2020).
Os contratos celebrados com fundamento na Lei 13.979/2020, terão prazo de duração de até seis meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da situação de emergência de saúde pública (art. 4º-H da Lei 13.979/2020).
Verifica-se que, ao contrário dos contratos emergenciais tradicionais que possuem o prazo máximo de seis meses, vedada a prorrogação para além desse período (art. 24, IV, da Lei 8.666/1993), os contratos emergenciais relacionados ao combate ao coronavírus permitem prorrogações sucessivas e necessárias à superação da situação emergencial.
Registre-se que os prazos dos contratos emergenciais, celebrados sob a égide da Lei 13.979/2020, serão respeitados mesmo após o término da vigência da referida Lei, que ocorrerá com o fim do estado de emergência de saúde internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019 (art. 8º da Lei 13.979/2020).
É prevista, ainda, maior flexibilidade nas alterações unilaterais dos contratos. A Administração Pública pode prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, em até cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato (art. 4º-I, § 3º, da Lei 13.979/2020). Interessante notar que o exercício dessa maior flexibilidade de alteração unilateral depende de previsão expressa no contrato, devendo ser observados, no caso de omissão contratual, os limites do art. 65, § 1º, da Lei 8.666/1993.
Em conclusão, verifica-se que o momento de crise abriu espaço para uma espécie de experimentalismo jurídico, com a instituição de uma legalidade extraordinária para o enfrentamento da crise na saúde pública.
No futuro, ultrapassado o momento de crise, revela-se conveniente a análise dos pontos positivos e negativos das referidas normas excepcionais, inclusive para nortear o aprimoramento da legislação aplicável às contratações públicas em situação de normalidade.
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[1] Sobre os remédios do Direito Administrativo no enfrentamento da pandemia, vide: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Direito Administrativo e coronavírus. Disponível em: ?https://blog.grupogen.com.br/juridico/2020/03/16/direito-administrativo-e-coronavirus/?Acesso em: 01/04/2020.
[2] CORREIA, José Manuel Sérvulo. Revisitando o estado de necessidade. In: ATHAYDE, Augusto de; CAUPERS, João; GARCIA, Maria da Glória F.P.D. Em homenagem ao professor doutor Diogo Freitas do Amaral. Coimbra: Almedina, 2010, p. 733-738.
[3] OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003, p. 998.
[4] O tema foi abordado em nossa recente do livro: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos, 9 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020.
[5] O § 1º do art. 3º da Lei 13.979/2020 dispõe que as medidas restritivas “somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”.
[6] O termo de referência simplificado ou o projeto básico simplificado conterá (art. 4º-E, § 1º, da Lei 13.979/2020): a) declaração do objeto; b) fundamentação simplificada da contratação; c) descrição resumida da solução apresentada; d) requisitos da contratação; e) critérios de medição e pagamento; f) estimativas dos preços obtidos por meio de, no mínimo, um dos seguintes parâmetros: f.1) Portal de Compras do Governo Federal; f.2) pesquisa publicada em mídia especializada; f.3) sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo; f.4) contratações similares de outros entes públicos; ou f.5) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores; e g) adequação orçamentária. Os preços obtidos na estimativa não impedem a contratação pelo Poder Público por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, hipótese em que deverá haver justificativa nos autos, bem como será dispensada, excepcionalmente, mediante justificativa da autoridade competente (art. 4º-E, §§ 2º e 3º, da Lei 13.979/2020).
[7] Na redução pela metade do prazo, se o prazo original for número ímpar, este será arredondado para o número inteiro antecedente (art. 4º-G, § 1º, da Lei 13.979/2020).
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