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Marcus Abraham

Marcus Abraham

03/06/2020

A Lei Complementar nº 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) – completou 20 anos em maio de 2020, dentro de um contexto absolutamente inesperado para quem a acompanha desde a sua promulgação em 4 de maio de 2000, quando então pretendia-se, por ela, introduzir uma nova cultura na Administração Pública brasileira, baseada no planejamento, na transparência, no controle e equilíbrio das contas públicas e na imposição de limites para determinados gastos e para o endividamento.

Refiro-me à conjuntura fiscal atual decorrente da pandemia da COVID-19, com uma drástica queda de arrecadação e aumento inesperado de gastos – ambos não contemplados nas leis orçamentárias vigentes –, fatos que estão impondo a suspensão temporária de diversos dispositivos da LRF, tanto pela aplicação do seu próprio artigo 65, através da decretação de calamidade pública da União, dos Estados e Municípios, como também por decisão do STF (ADI 6.357) e por propostas de alterações legislativas e constitucionais que estão vindo à luz nestes últimos dias (PLP 39/2020 e PEC 10/2020).

No início da pandemia, assistimos à decretação de estado de calamidade pública federal por meio do Decreto Legislativo nº 06/2020 (o mesmo se repetindo com os demais entes federativos) e o acionamento das medidas de exceção presentes no artigo 65 da LRF, afastando temporariamente uma série de limitações e condicionantes em relação ao aumento de gastos e endividamento, sobretudo dispensando o cumprimento de metas fiscais previstas na LDO e suspendendo o mecanismo da limitação de empenho.

Não bastasse isso, o Ministro do STF Alexandre de Moraes deferiu a medida cautelar requerida pela AGU para, concedendo interpretação conforme à Constituição Federal aos artigos 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal e 114, caput, in fine e § 14, da Lei de Diretrizes Orçamentárias/2020, desobrigar: 1) da demonstração de que os gastos não afetarão as metas de resultados fiscais previstas na LDO; 2) da necessidade de compensação por meio de redução de outras despesas ou pela criação ou majoração de tributos ou fonte de arrecadação; 3) da apresentação de estimativa do impacto orçamentário-financeiro e da declaração do ordenador da despesa de que aqueles gastos têm adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

E, sendo o endividamento (e não o mero aumento na tributação) o remédio financeiro mais indicado pelos economistas no momento para custear as novas despesas de enfrentamento da pandemia, e ainda havendo outras “travas fiscais” – tanto na LRF como na Constituição, em especial o seu art. 167, inciso III, que veda a realização de operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital –, estão sendo atualmente realizadas alterações na legislação fiscal e constitucional.

A primeira modificação normativa refere-se ao PLP 39/2000, aprovado esta semana por ambas as Casas legislativas (sendo agora encaminhado para sanção), que estabelece o denominado “Programa Federativo de Enfrentamento da Covid-19” e altera alguns dispositivos da LRF, prevendo a suspensão do pagamento de dívidas dos Estados, DF e Municípios para com a União, bem como a reestruturação de operações de crédito interno e externo e a entrega de recursos da União, na forma de auxílio financeiro, aos entes subnacionais.

Ou seja, trata-se de uma Lei Complementar que permitirá o auxílio financeiro aos Estados, Distrito Federal e Municípios, cujo valor poderá ultrapassar R$ 60 bilhões, exclusivamente para o enfrentamento da pandemia da Covid-19.

Além disso, tivemos a aprovação da PEC nº 10/2020, conhecida por “PEC do Orçamento de Guerra”, ensejando a promulgação, em 07 de maio de 2020, da Emenda Constitucional nº 106, incluindo novos dispositivos ao ADCT da Constituição Federal de 1988, para criar uma estrutura orçamentária mais “flexível” ao orçamento geral que temos, com o objetivo de permitir novos gastos para enfrentar a COVID-19.

Permite-se a criação de uma espécie de “orçamento paralelo” que facilite as contratações, o aumento de despesas públicas e de endividamento, tudo de maneira mais transparente e juridicamente segura a possibilitar o controle dos gastos.

Através das novas regras constitucionais de natureza temporária (apenas para o período de calamidade pública), também não será mais necessário indicar a fonte de financiamento dos gastos, que poderão ser custeados pela emissão de dívida pública, afastando-se a aplicabilidade da conhecida “regra de ouro” prevista no inciso III do artigo 167 da Constituição, que veda o endividamento para o pagamento de despesas correntes, além de autorizar o Banco Central do Brasil a comprar e vender títulos de emissão do Tesouro Nacional e outros ativos mobiliários nos mercados secundários local e internacional.

Ainda em relação à suspensão de dispositivos da LRF, também não podemos nos esquecer de que, logo em seus primeiros anos de vigência, esta lei teve contra si ajuizadas algumas ações diretas de inconstitucionalidade (sendo a principal a ADI 2238, de 04/07/2000, apensadas para julgamento conjunto as ADIs 2256, 2241, 2261 e 2365). A consequência inicial – e que durou quase vinte anos – foi a suspensão cautelar dos artigos 9º, § 3º; 12, § 2º e 23, §§ 1º e 2º. Com o julgamento em agosto de 2019 de parte das ações, tivemos a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 56, caput e 57, caput, sendo que ainda aguarda-se a conclusão de julgamento (voto pendente do Ministro Celso de Mello), com a manutenção da suspensão dos efeitos dos artigos 9º, § 3º e 23, §§ 1º e 2º.

Nossa opinião é a de que, após um fecundo período de correção de rumos nas finanças públicas nacionais com a promulgação da LRF, pautado pela busca do equilíbrio fiscal, os últimos anos – não levando em consideração os recentes acontecimentos calamitosos, extraordinários e imprevistos – têm demonstrado que a falta do rigor no respeito de suas normas pode trazer sérios riscos para a economia e para a sociedade brasileira, impondo-se uma efetiva mudança de cultura fiscal e postura do gestor público.

De fato, o caos e a irresponsabilidade fiscal que assolavam nosso país antes da edição da LRF foram significativamente reduzidos e equacionados nos primeiros anos de sua vigência. O fim das políticas clientelistas e eleitoreiras, das despesas desprovidas de legitimidade, do desequilíbrio entre receitas e despesas públicas (e a consequente geração de déficits impagáveis a partir de dívidas sem lastro) foram alguns dos principais alvos a serem atacados com a edição da LRF e que precisam, hoje, ser relembrados pelos nossos governantes.

Os erros do passado não podem ser repetidos.

Chama-nos a atenção também o fato de que há, ainda, mecanismos legais previstos na LRF não regulamentados desde a sua edição. É o caso do Conselho de Gestão Fiscal (art. 67) e da necessidade de imposição de limites para a dívida pública federal.

Fora estes, há outros dispositivos que merecem aperfeiçoamento, com o propósito de fechar as “brechas normativas” que vêm permitindo a alguns gestores públicos adotar meios alternativos para se desviarem das regras de equilíbrio e responsabilidade fiscal previstas na LRF e não sofrerem as sanções pelo seu descumprimento.

Destes, destacaria: a) forma de contabilização de despesas de pessoal, especialmente no que se refere à possibilidade ou não de dedução (para não atingir os limites fixados na lei) dos valores pagos aos terceirizados, aos aposentados e despesas tributárias que incidem nos pagamentos de pessoal (IR e Contribuições); b) definição objetiva das despesas (sobretudo em relação às despesas correntes) que podem ser financiadas com o uso de receitas variáveis como os royalties; c) fixação das despesas que devem ser necessariamente quitadas dentro do mesmo mandato, em reforço à vedação prevista no art. 42 (do uso de “restos a pagar”); e d) especificação dos limites de empenho que devem ser obrigatoriamente cumpridos por todos os poderes de cada ente.

Mas, ao fim e ao cabo, passadas duas décadas da edição da LRF, é inegável reconhecer que, graças ao nosso progresso democrático e institucional, hoje o Brasil possui instituições públicas sólidas, capazes de dar efetividade aos preceitos da lei, materializados no tripé do planejamento orçamentário, da transparência e do equilíbrio fiscal, diretrizes inequivocamente imprescindíveis para a realização dos objetivos da República brasileira constantes do artigo 3º da nossa Constituição: construir uma sociedade livre, justa e solidária, desenvolver o país, acabar com a pobreza e a marginalização e minimizar as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos.

Apesar dos seus 20 anos recém-completados, a Lei de Responsabilidade Fiscal é uma obra jurídica dinâmica e inacabada, que exige constante evolução e aperfeiçoamento. Garantir sua efetividade, permitindo a discussão da qualidade e dimensionamento das receitas e das despesas, com o necessário controle das finanças públicas, faz parte de um projeto de desenvolvimento nacional sustentável.

FONTE: JOTA

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