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José dos Santos Carvalho Filho

José dos Santos Carvalho Filho

19/05/2020

A federação, como forma de Estado adotada no Brasil, nasceu em 1787, com a Constituição dos Estados Unidos da América, depois da declaração de independência de treze colônias britânicas em 1776. A Constituição Federal pátria declara que o Brasil é uma República Federativa (art. 1º, CF), constituída, em sua organização político-administrativa, de entes autônomos – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (art. 18, CF).

Como lembra Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o federalismo cresceu como dualista, deixando estanques as esferas da União e dos Estados-membros. Depois, converteu-se em cooperativo, pelo qual deveria sobressair o propósito de colaboração entre as pessoas federativas. (1) Na verdade, o dualismo criava um abismo entre a soberania federal e as autonomias estaduais por falta de uma necessária interlocução. Mediante a cooperação, no entanto, todos se postariam lado a lado, desenvolvendo esforços comuns para satisfazer o interesse dos cidadãos.

Na visão etimológica, federação se origina do latim foedus e tem o sentido de pacto, aliança, associação. E nem poderia ser de outro modo. Marcada pela descentralização política, na qual devem conviver pessoas federativas diversas, dotadas algumas vezes de competências próprias, a federação funciona melhor na medida em que se fortalecem os laços oriundos do pacto federativo. Daí porque é considerada por muitos como inevitável palco de conflitos políticos e sociais.

A federação, todavia, não é uma unanimidade como forma de Estado. Para alguns, a federação é considerada forma mais democrática, permitindo maior contato entre os indivíduos e os governos locais e, por meio destes, haveria acesso ao governo central. Além disso, a descentralização seria fator que tornaria mais sólido o regime democrático.

Na opinião de outros, porém, a modernidade exigiria governo forte, como se dá no Estado unitário, em razão de solicitações muito intensas, o que não ocorre numa federação. Ademais, emerge a dificuldade de planificação. Corretas as observações de Dalmo de Abreu Dallari:

“O Estado federal dificulta, e às vezes impede mesmo, a planificação, pois é constitucionalmente impossível obrigar uma unidade federada a enquadrar-se num plano elaborado pela União”. (2)

Comparadas as várias federações existentes, depois de mais de dois séculos a partir da primeira, a perspectiva sobre elas sinaliza grande diversidade quanto à eficiência desse modelo. Daí ser cabível perscrutar por quais razões seu desempenho sofre tamanhas oscilações. Muitas podem ser alinhadas, mas destacamos duas delas.

Uma delas é maturidade social da sociedade que integra o Estado federal. Sociedades mais maduras oferecem maior respaldo à mecânica federativa, a começar pelo sentimento do predomínio coletivo sobre o individual e pela consciência da cidadania no regime democrático. Em termos sociológicos, já se disse sobre a maturidade social:

“A maturidade social é a saída do mundo pessoal para o mundo comunitário de ideias equivalentes ou não, participando para o surgimento de mais ideias e a expansão do mundo que se vive”. (3)

A maturidade social é alcançada pela evolução dos padrões de educação e cultura, de respeito aos valores éticos que devem inspirar a relação entre as pessoas, de discernimento sobre o sentido de cidadania e, enfim, dos padrões que devem marcar a pacífica convivência social e a reverência aos direitos de terceiros. Por meio dela é que se chega à maturidade política.

A outra razão está no federalismo cooperativo, cuja escora, como se disse, descansa na efetiva colaboração entre os entes federativos na busca do bem comum. Em termos de formalização constitucional, esse regime, como acentua Guilherme Peña de Moraes, “é desenhado pela repartição de competências em plano vertical, de modo que as entidades federativas são coordenadas”. (4)

Na Constituição, é o art. 23 que traça as linhas da competência comum entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, relacionando em diversos incisos os serviços administrativos objeto da competência. Ocorre que – observa Ana Paula de Barcelos – “a Constituição não estabelece desde logo uma regra geral acerca de como deve ser a coordenação entre os entes no exercício das diferentes competências do art. 23, o que a rigor deverá ser feito pela legislação de cada tema”. (5)

Logicamente, se o dispositivo trata da competência comum de todas as entidades da federação, será obviamente exigível que entre elas se forme um elo de cooperação mútua, de forma a permitir o esforço de todas para executar a atribuição constitucional. O art. 23, parágrafo único, da CF, confirma essa imposição, prevendo que leis complementares “fixarão normas para a cooperação” entre as pessoas federativas, alvitrando o equilíbrio do desenvolvimento e o bem-estar em âmbito nacional.

Ficou, assim, implicitamente reconhecido que o só fato de haver matérias sob a competência administrativa comum de todos os entes federativos não basta para que se perfaça o movimento cooperativo entre eles. Na verdade, a definição dessa cooperação é tão difícil que o Constituinte teve que admitir a edição de leis complementares para dar materialidade à competência comum do art. 23. Houvera a consciência associativa, sequer a lei seria exigível.

A competência comum, conforme bem consignou Paulo Roberto de Figueiredo Dantas, é a “capacidade, conferida aos diversos entes públicos, de pôr em prática os preceitos estabelecidos pelas normas constitucionais e também infraconstitucionais, por meio de um conjunto de ações concretas destinadas à satisfação do interesse público”. (6) De fato, de nada valem os preceitos se não houver as ações concretas que traduzam o exercício da função gestora do Poder Público.

Não obstante, a competência comum do art. 23 da CF revelará mera peça teatral se as atribuições conjuntas não forem distribuídas adequadamente, considerando uma série de aspectos, como a prevalência do interesse, a extensão territorial e as especificidades de cada esfera federativa.

Contudo, se a sociedade não tiver maturidade social (e política), os governantes não terão interesse em identificar o que caberá a quem, bem como em perceber quão difícil é conviver com três graus autônomos no regime federal.

Por outro lado, a falta da cooperação entre as pessoas federativas dificulta ou impede o exercício da competência comum. Aí estaremos diante do federalismo “descooperativo”, na base do “cada um por si e Deus por todos”.

A verdade é que nosso processo histórico aponta para uma terrível dificuldade de os governantes se conduzirem mediante colaboração recíproca. Ao contrário, a competência comum acaba dando lugar a inúmeros conflitos para atender a interesses pessoais, eleitorais, partidários e outros antagônicos ao regime cooperativo, deixando-se de lado o mais importante – o interesse público.

A pandemia da COVID-19 veio a confirmar isso. Ao invés de empregar a união, as unidades federativas criaram conflitos sobre competência comum – conflitos esses que demonstram a “descooperação” entre elas. Nos bastidores, há interesses políticos, ideológicos, eleitoreiros, que criam fendas no processo de combate à doença.

Na Medida Provisória 926/2020, a União atraiu para si, aparentemente de forma exclusiva, uma série de medidas para o combate à pandemia. Houve conflito interfederativo. O STF, porém, decidiu que as referidas providências não afastam a competência concorrente de Estados, Distrito Federal e Municípios. (7) A consequência foi que cada ente federativo tem adotado métodos e metas diversos, provocando grande insegurança jurídica na sociedade.

Em outra vertente, o STF, com votos vencidos, entendeu, em outro litígio interfederativo, que a competência para impor restrições de transporte intermunicipal e interestadual, durante a crise gerada pela pandemia, não retrata monopólio da União, porque não haveria como atender a todas as peculiaridades regionais, além de violar a autonomia estadual, distrital e municipal. (8)

Enquanto isso, contaminações e óbitos crescem aos milhares, guindando o Brasil ao cenário mundial como um dos campeões de incompetência e ineficiência no que toca ao enfrentamento da COVID-19.

Isso é federação. Mas é evidente a falta de maturidade social para enfocar o que é realmente relevante. Além disso, nosso federalismo “descooperativo”, ao invés de unir, distancia os entes federativos entre si e deixa os governos à deriva. A sociedade está perplexa, mas é preciso ter humildade para reconhecer as nossas dificuldades, carências e falta de noção do interesse público.

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NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1)      MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 1989, p. 45.

(2)      DALMO DE ABREU DALLARI, Elementos de Teoria Geral do Estado, Saraiva, 30ª ed., 2011, p. 257.

(3)      Maturidade Social, site https://psicologiaparatodos202.wordpress.com/2017/07/01/maturidade-social/, acesso em 14/5/2020.

(4)      GUILHERME PEÑA DE MORAES, Curso de Direito Constitucional, Gen/Atlas, 4ª ed., 2012, p. 331.

(5)      ANA PAULA DE BARCELOS, Constituição Federal Comentada (obra colet.), Gen/Forense, 2018, p. 487.

(6)      PAULO ROBERTO DE FIGUEIREDO DANTAS, Curso de Direito Constitucional, Atlas, 2012, p. 555.

(7)      ADI 6.341, julg. 15.4.2020.

(8)      ADI 6.343, julg. 30.4.2020 (ainda não concluído em 16.5.2020).


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