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Locac?a?o residencial e pandemia
Felipe Quintella
06/04/2020
Vamos, hoje, para o sétimo artigo da série sobre os impactos do novo coronavírus no Direito Civil. Discutirei, agora, o assunto sobre o qual mais tenho sido consultado pelos seguidores: locação residencial, dentro da temática dos Direitos das Obrigações e dos Contratos.
Em síntese, a dúvida mais recorrente que me tem sido enviada nas mensagens dos seguidores é: há o que se possa fazer, nos casos de locação residencial, se o locatário sofreu impacto econômico negativo em razão da pandemia?
Parece-me que, primeiramente, seja necessário estabelecer uma importante premissa: em uma discussão abstrata, não se pode perder de vista que consideraremos locadores em abstrato e locatários em abstrato, assim como contratos de locação residencial em abstrato. Aqui, no entanto, com a especificidade de que os locatários em abstrato sofreram impacto econômico negativo (igualmente abstrato) em razão da pandemia.
Por que a ressalva é relevante?
Porque, nos casos concretos, encontraremos, sem dúvida, muitas situações em que o locador (ainda) não sofreu impacto da crise, e em que o locatário, arrimo de família, perdeu o emprego. Mas, com certeza, também encontraremos muitas situações em que os aluguéis oriundos da locação constituem a fonte de renda da família do locador, que já sofreu impacto negativo da pandemia, em virtude do crescente inadimplemento. Encontraremos, por certo, até mesmo casos em que o locador é pessoa idosa, do grupo de risco da COVID-19, que complementa a aposentadoria com os aluguéis; que os usa para pagar plano de saúde e comprar remédios. E casos em que o locatário, ainda que tenha sofrido impacto negativo, é pessoa que tem uma boa reserva financeira, que lhe dá segurança por algum tempo.
Ou seja, neste momento delicado e de absoluta excepcionalidade, é imperioso tomar o cuidado de não fazer generalizações infundadas, quaisquer que sejam.
As considerações, neste artigo, serão abstratas. Nos casos reais, todas as circunstâncias relevantes devem ser cuidadosamente consideradas.
Rogo, ainda, aos leitores, que não desistam da leitura no meio do caminho. A explicação é extensa. Tentarei ser o mais objetivo e didático possível, mas preciso de que vocês leiam o texto até o fim.
Pois bem.
No primeiro artigo da série, tratei da aplicação das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva a negócios jurídicos, em virtude dos impactos da pandemia.
Por esse motivo, diversas pessoas me perguntaram se tais teorias também se aplicariam, especificamente, aos contratos de locação residencial.
Sim, em tese. Os contratos de locação residencial são negócios jurídicos e geram obrigações; logo, estão dentro do escopo de aplicação de ambas as teorias.
No entanto, ao examinarmos os pressupostos que configuram o suporte fático de aplicação tanto da teoria da imprevisão, quanto da teoria da onerosidade excessiva, concluímos que a situação econômica do locatárionão altera o equilíbrio contratual.
Como assim?
Conforme o art. 317 do Código Civil, para que seja autorizada a revisão do negócio por aplicação da teoria da imprevisão, é preciso que a alteração imprevisível das circunstâncias fáticas seja tal que cause “desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução”. Ou seja: o valor da locação precisa ter sido alterado pelas circunstâncias imprevisíveis. Em outras palavras, aquele imóvel não justifica mais o valor pactuado a título de aluguel; a crise causou desvalorização.
No entanto, não é o que ocorre na hipótese abstrata em exame, em que o impacto da crise foi sobre a situação econômica do locatário.
Por sua vez, conforme o art. 478 do Código, é possível a resolução por onerosidade excessiva — ou, na hipótese do art. 479, a revisão —, quando, em razão da alteração imprevisível das circunstâncias fáticas, “a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra”.
Ocorre que, na hipótese que ora se examina, não foram alteradas as circunstâncias internas do contrato, mas as circunstâncias particulares de um dos sujeitos, o locatário. Consequentemente, ainda que se pudesse suscitar que o pagamento dos aluguéis se tornou excessivamente oneroso — o que não é verdadeiro no sentido do art. 478, porque as prestações não se desequilibraram —, não se poderia alegar extrema vantagem para o locador, justamente porque — insisto — não foram alteradas as circunstâncias internas do contrato; as prestações não se desequilibraram.
Logo, concluo que não se poderia discutir revisão ou resolução de contratos de locação residencial, por aplicação das teorias da imprevisão ou da onerosidade excessiva, pelo fato de o locatário ter sofrido impacto negativo da pandemia do novo coronavírus.
Não obstante, é evidente que, em grande parte dos casos — provavelmente, na maior parte dos casos —, o impacto econômico negativo da pandemia sofrido pelo locatário acarretará o inadimplemento da obrigação de pagar os aluguéis.
Por esse motivo, abstratamente, eu diria que é muito recomendável a negociação entre locador e locatário, para fins de alteração — ainda que temporária — do valor do aluguel, por meio da ferramenta jurídica obrigacional da novação objetiva (art. 360, I do Código Civil de 2002). Ressalto que o art. 18 da Lei de Locações — Lei nº 8.245/1991 — admite expressamente a novação do valor do aluguel nos contratos de locação.
Consiste a novação objetiva em uma nova obrigação, que será negociada entre os mesmos credor e devedor, que devem entrar em acordo sobre extinguir uma obrigação anterior e substituí-la por uma nova, com objeto diverso, sem necessidade de intervenção do juiz.
Aqui, especificamente, trata-se do acordo entre locador e locatário para, ainda que por certo prazo — por exemplo, enquanto perdurar a pandemia —, substituir o valor originalmente ajustado de aluguel por um novo valor, que o locatário possa pagar nas circunstâncias atuais.
Com a novação, provavelmente, será possível evitar o inadimplemento, conservando-se o negócio jurídico.
Por fim, lembre-se: a novação se dá no campo da autonomia privada; depende de acordo entre os sujeitos do contrato. Nisso, em muito, diverge da revisão ou resolução por aplicação das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, que ocorrem no campo da interferência do Estado nas relações privadas.
Em outras palavras: a revisão ou a resolução do contrato por aplicação das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva podem ser pleiteadas em juízo, cabendo ao juiz decidir; a novação, não.
No entanto, estou certo de que, na maior parte dos casos, provavelmente haverá espaço para a negociação, justamente porque a outra alternativa certamente é muito pior para ambas as partes…
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