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Imprevisão, multa e juros em razão da pandemia
Luiz Antônio Scavone Júnior
30/03/2020
Vou ser direto e objetivo, como exige o momento. Muito se tem discutido sobre a repercussão da pandemia nos contratos em geral e, no âmbito do direito imobiliário, posso mencionar os contratos de locação, de compromisso de compra e venda e de alienação fiduciária de bem imóvel.
Em razão da parcial quarentena, muitas famílias perderam suas rendas de tal sorte que fatalmente haverá repercussão no cumprimento dos contratos.
Com efeito, a obrigação com fonte contratual impõe responsabilidade, que nada mais é que a consequência do descumprimento da obrigação, no caso com fonte contratual, que recai sobre o patrimônio do devedor.
Essa é a regra dos arts. 789 do CPC e 391 do CC.
Nada obstante, a responsabilidade contratual demanda culpa do devedor, que não será responsabilizado na medida em que o descumprimento não decorrer da sua conduta.
É lição velha, que decorre dos artigos 393 e 396 do Código Civil:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora.
Portanto, a primeira conclusão dos fatos, que não é regra geral e dependerá da demonstração do atingimento da capacidade de pagamento em razão da pandemia, é a impossibilidade de considerar a mora para o devedor atingido pelos efeitos econômicos da pandemia.
Se não há mora, a obrigação estará suspensa enquanto perdurar a causa e não são aplicáveis as suas consequências insculpidas no art. 395 do Código Civil:
Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que a sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Em suma, aquele que, atingido pela paralisação econômica parcial, demonstrar – caso a caso – que perdeu a sua capacidade de pagamento pelo evento imprevisto e irresistível a qualquer esforço (fortuito externo) não sofrerá as consequências da mora – justamente porque não haverá mora por ausência do elemento subjetivo – e estará isento do pagamento dos juros de mora e das perdas e danos que eventualmente estão prefixadas na cláusula penal enquanto perdurar a causa que afasta a mora (CC, art. 396 – moratória).
Não estará, a princípio, liberado de cumprir a obrigação, mas ficará isento da sanção habitual pelo seu descumprimento relativo à mora quanto ao tempo do pagamento.
Nesses casos, se não houver acordo entre credor e devedor, imagino que seja essa a solução que decorre do sistema.
E a questão terá que ser resolvida individualmente, de acordo com as peculiaridades do caso concreto.
Deveras, aquele que fabrica e vende álcool em gel provavelmente experimentará ganhos excepcionais, mas aquele que vive do comércio presencial enfrentará sérias dificuldades para cumprir suas obrigações.
Ainda questionam a possibilidade de aplicar a teoria da Imprevisão em razão na onerosidade excessiva.
Como se sabe, em razão da imprevisão insculpida nos arts. 317, 421-A, 478 e 479 do Código Civil, abrir-se-iam as possibilidades de revisão do contrato ou da sua resolução:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo [revisá-lo], a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
…………………………………………………………………………………………….
III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.
Desses dispositivos, algumas premissas e consequências importam para o momento.
A primeira delas é que, no meu sentir, não há que se aplicar a revisão dos valores devidos como consequência do art. 317 do Código Civil, o que afirmo na exata medida em que não haverá desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, ou seja, a prestação decorrente do contrato (aluguéis, parcelas de financiamento etc) estarão em consonância com aquilo que foi pactuado no momento da contratação.
A revisão do contrato é sempre excepcional e limitada, a teor do art. 421-A do Código Civil.
Até hoje, a regra insculpida no art. 317 do Código Civil foi praticamente ignorada pelos Tribunais.
E ainda que se queira pensar nessa desproporção, não haverá extrema vantagem para quem quer que seja.
Deveras, pela análise histórica da tramitação do projeto que se transformou na Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) a mens legis, que decorreu nitidamente do temor dos diversos planos econômicos da década de 1980 e da primeira metade da década de 1990, era conter a desproporção gerada questões cambiais extremas e hiperinflação de tal sorte que as discussões e redações preliminares do dispositivo tratavam de desvalorização da moeda.
Na verdade, a norma contida no art. 317 sempre foi vista em conjunto e como uma decorrência da imprevisão insculpida no art. 478 do Código Civil.
Posta dessa maneira a questão, a par de oscilações doutrinárias, também no caso da revisão do contrato e não da resolução, a extrema vantagem para uma das partesé requisito sine qua non.
Isto porque o evento imprevisto, imprevisível e irresistível a qualquer esforço (CC, art. 393) gera duas possibilidades ao prejudicado – e notem que uso o termo “prejudicado” tendo em vista que haverá um polo com “extrema vantagem” – quais sejam: a revisão ou a resolução (CC, arts, 317 e 478).
Portanto, diante de:
a) evento imprevisto, imprevisível e irresistível a qualquer esforço (CC, art. 393);
b) gerador de extrema vantagem para uma das partes (CC, art. 478);
O prejudicado poderá requerer:
a) revisão (CC, art. 317); ou,
b) resolução do contrato (CC, art. 478).
Esse requisito da extrema vantagem em qualquer das soluções (revisão ou resolução) decorre, inclusive, da norma de se extrai do art. 479 do Código Civil que permite àquele que experimentou vantagem se oferecer para a revisão, evitando a resolução do contrato.
E não existe requisito fraco como sustentaram alguns.
A lei exigiu a “extrema vantagem” para autorizar o prejudicado a requerer a revisão ou a resolução.
As premissas que norteiam a justiça contratual, que decorrem da boa-fé objetiva, determinam que o reequilíbrio contratual deve ser aplicado apenas no caso de desequilíbrio que gere excessiva vantagem para uma parte e uma excessiva desvantagem para a outra.
O artigo 478 do Código Civil estabelece, assim, requisitos para a imprevisão:
a) o contrato deve ser de execução continuada ou de execução diferida;
b) deve haver profunda alteração nas condições para o cumprimento da obrigação em razão de fatos imprevisíveis e extraordinários;
c) imprescindível – e insisto muito nesse ponto – que esteja presente a extrema vantagem para a outra parte.
No caso da pandemia, a prestação não se tornará excessivamente onerosa com extrema vantagem para a outra parte no contrato.
Pelo contrário, quem terá vantagem é o devedor que poderá desconsiderar mora por ausência do elemento subjetivo enquanto durar a causa que o atinge e continuar usufruindo do imóvel. Ou seja, poderá atrasar o pagamento e não sofrerá as sanções habituais pela mora.
O imóvel continua e continuará à disposição.
O inquilino não poderá devolver o imóvel antes do prazo sem sofrer a multa e o comprador do imóvel não poderá desfazer o contrato, devolvendo o imóvel sem as consequências do inadimplemento.
Da mesma forma, durante a causa excepcional e irresistível não se admitirá a resolução do contrato de compra de imóvel ou o despejo em função do contrato de locação, mas a obrigação persiste.
De mais a mais, a função social do contrato (CC, art. 421) que extrapola os limites dos interesses individuais dos contratantes, indica a profunda necessidade, neste momento, de manutenção dos pactos, cujo cumprimento determinará a recuperação econômica que será imprescindível para a paz social, objetivo maior do direito.
O que resta ao prejudicado pela pandemia, agindo de boa-fé (CC, arts. 113 e 422) é demonstrar cabalmente que sofreu a consequência econômica que lhe tolheu a capacidade de pagamento e negociar e nem todos conseguirão demonstrar que foram atingidos.
Aliás, ouso afirmar que a negociação nesse momento é obrigatória.
Seria mesmo até uma condição da ação decorrente da boa fé objetiva que, nas palavras do saudoso prof. Miguel Reale, “exige a boa-fé apresenta dupla faceta, a objetiva e a subjetiva. Esta última – vigorante, v.g., em matéria de direitos reais e casamento putativo – corresponde, fundamentalmente, a uma atitude psicológica, isto é, uma decisão da vontade, denotando o convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito. Já a boa-fé objetiva apresenta-se como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal. Tal conduta impõe diretrizes ao agir no tráfico negocial, devendo-se ter em conta, como lembra Judith Martins Costa, “a consideração para com os interesses do alter, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tutelado”. Desse ponto de vista, podemos afirmar que a boa-fé objetiva se qualifica como normativa de comportamento leal. A conduta, segundo a boa-fé objetiva, é assim entendida como noção sinônima de “honestidade pública”. Concebida desse modo, a boa-fé exige que a conduta individual ou coletiva – quer em Juízo, quer fora dele – seja examinada no conjunto concreto das circunstâncias de cada caso.” (Miguel Reale. A Boa-é no Código Civil. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm> acesso em 09/04/2020).
Nessa exata medida, parece razoável supor que, antes de judicializar a questão dos efeitos da pandemia nos contratos, as partes têm o dever decorrente da boa-fé insculpida nos arts. 113 e 422 do Código Civil, de provar que buscaram – ao menos tentaram – a composição sob pena de faltar condição específica da ação consubstanciada no interesse processual, na modalidade necessidade do provimento jurisdicional.
Para Anderson Schreiber, “o dever de renegociar não é, como se vê, o dever de obter um certo resultado, mas sim um dever de comportamento. Desdobra-se em dois aspectos fundamentais: (a) para quem sofre o desequilíbrio, o dever de renegociar impõe informar prontamente o desequilíbrio contratual ao outro contratante, formulando um pleito de revisão do contrato; (b) para quem se beneficia do desequilíbrio, o dever de renegociar impõe analisar, com seriedade, o pleito eventualmente apresentado pelo outro contratante e respondê-lo, ainda que para negá-lo – o que, ao menos, indicará ao contratante que sofre a excessiva onerosidade qual o caminho a adotar.” (Anderson Schreiber. Dever de Renegociar. Disponível em: <https://blog.grupogen.com.br/juridico/2018/01/16/dever-de-renegociar/> acesso em 09/04/2020)
Posta assim a questão, é possível considerar que o dever de negociar com supedâneo no art. 422 do CC é uma condição específica da ação de revisão.
Na sua ausência, o juiz poderá considerar inexistente o interesse-necessidade do provimento jurisdicional e, quando não, caso entenda, com fundamento no art. 5º, XXXV da CF, que não deve extinguir o processo, a ausência dessa demonstração pelo autor pode determinar a suspensão do andamento do feito até que haja essa demonstração.
Em parte admitindo essa consequência, eis o que deduziu o TJDF: “Conclamo as partes à autocomposição, pois elas mesmas têm o conhecimento exato de suas capacidades econômicas e de mitigação de prejuízo para fins de manutenção, ao fim, do Contrato. (…)” (Agravo de Instrumento – Processo 0707596-27.2020.8.07.0000).
Se a questão for judicializada, é preciso lembrar que o art. 916 do CPC permite, no âmbito da execução, o parcelamento como direito subjetivo (para alguns potestativo) do devedor que pode optar por pagar 30% e parcelar o restante em seis pagamentos mensais e consecutivos com juros e correção.
É um bom parâmetro para negociação por extensão desse dispositivo processual.
Por fim, algumas decisões, para todos os gostos, já se manifestam no foro: algumas negando o direito à revisão, outras revisando os valores e reconhecendo o desequilíbrio – e transferindo, portanto, todos os ônus da pandemia para uma das partes, o locador – outras indeferindo a inicial.
O certo é que essa discussão vai ser interminável pois os projetos de lei que tramitam no Congresso estão parados.
Sendo assim, nessa reflexão preliminar sobre os contratos diante da pandemia, concluo que:
- Demonstrada cabalmente a impossibilidade de pagamento em razão da triste efeméride que nos assola, a sanção habitual pelo descumprimento da obrigação não se aplicará. Em suma, não haverá mora, a obrigação ficará suspensa e não são aplicáveis juros moratórios e multas enquanto perdurar a situação excepcional;
- A obrigação não resta prejudicada, o vínculo obrigacional continua hígido – a dívida deverá ser paga – e não é o caso de aplicar a teoria da imprevisão por ausência do elemento objetivo extrema vantagem para o locador ou para o vendedor de um imóvel, o que se aplica aos demais contratos;
- A função social do contrato, que desborda dos interesses particulares nele traduzidos, indica a manutenção dos pactos para que a recuperação econômica se dê observando a paz social, objetivo maior do Direito;
- A judicialização dos efeitos da pandemia nos contratos demandará prova, como condição da ação, de que o prejudicado pelo menos tentou a negociação prévia das bases econômicas do contrato como decorrência dos deveres de lealdade e cooperação insculpidos nos arts. 113 e 422 do Código Civil.
PL 1179 de 2020 do Senado (aprovado no Senado e ainda em tramitação – 12/04/2020)
Contratos em geral
Art. 3º.
– Suspendem-se os prazos prescricionais e decadenciais a partir da vigência até 30/10/2020, sem prejuízo dos prazos já suspensos pelas causas legais vigentes.
Art. 6º.
– Não são retroativas as causas de caso fortuito e motivo de força maior em razão da pandemia (para proteção dos credores);
Art. 8º.
– O direito de arrependimento do art. 49 do CDC (venda fora do estabelecimento e arrependimento no prazo de 7 dias) não se aplica para “delivery” de produtos de consumo imediato e de medicamentos.
Locação:
Art. 9º.
– Suspendem-se as liminares dos art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX (permanecem, portanto, as liminares nas ações de despejo para temporada; morte do locatário que não deixa sucessor da locação – art. 11 – e no despejo decorrente de obras urgentes determinadas pelo Poder Público), o que se aplica até 30/10/2020, limitando-se a suspensão às ações propostas a partir de 20/03/2020 (e as liminares já cumpridas, já que se trata de efeito retroativo?);
Art. 10 – foi retirado no substitutivo
– Previa que, provada a alteração econômico-financeira decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração (a maioria da população estará enquadrada) o locatário RESIDENCIAL (comercial, também será afetado) poderia suspender o pagamento dos aluguéis vencidos de 20/03 até 30/10/2020.
– Previa, a partir de 30/10, pagamento dos meses suspensos na ordem de 20% a cada mês. Portanto, em 5 pagamentos mensais cumulados com os aluguéis vincendos.
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