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Partilha de Bens: há mesmo uma fraude? Parece que sim, mas…
05/04/2024
Temos destacado um aspecto essencial que, no entanto, sempre merecerá ser novamente destacado: a fraude é um drible. É algo com que não se contava, algo que surpreende. Desenvolver o tema, como fizemos em Divórcio, Dissolução e Fraude na Partilha de Bens: simulações empresariais e societárias (Editora Atlas), distancia-se do catálogo, vale dizer, da listagem: é possível chamar atenção para o que é mais comum, mas o elemento inusitado, a via ou meio inesperado, sempre surgirá como sítio em que se urde algo: o drible. Pior: nos esportes, a finta (ou driblagem) faz-se nos limites da regra do jogo. Já as fraudes patrimoniais dispõem de espaço mais amplo para se concretizarem: o vasto ambiente age para enganar não é o lícito, mas o ilícito. E o adversário (sic!) aquele ainda é cônjuge ou companheiro[a]. Um jogo oculto, dissimulado, sem dar oportunidade para resistência. A expressão econômico-financeira da perfídia afetiva.
Calibrada a diferença entre o esporte e as relações afetivas, a referência se recupera na essência, na intenção, no ânimo: fintar o outro, enganá-lo, passá-lo a bem de uma meta (em inglês: goal). E nunca se esqueça: um jogo em que o atacante sabe que ataca e o defensor não faz ideia de que está sendo atacado, de que deveria se defender, que deveria ao menos saber que se está jogando. Em pleno ambiente de continuidade da relação afetiva (casamento ou união estável), o cônjuge ou convivente tem por meta fraudar o patrimônio comum para se beneficiar e portanto precisa fintar seu meeiro. E isso pode ser feito com um corte seco, simples, mas eficaz; mas isso também pode ser feito criatividade e sofisticação, do que é exemplo o chapéu de calcanhar no futebol. O que importa – e nem todo jogador de futebol sabe disso, infelizmente – é superar o adversário em direção ao gol ou, se na defesa, para os afastá-los do próprio gol. Infelizmente, há quem se divirta com firulas inúteis que, somadas às dezenas, não tem o valor de um só gol de pico de chuteira. É preciso ensinar: importa o gol. E fraudadores sabem bem disso: pode ser de mão, de cabeça, de bico de chuteira; desde que gol. Mas pode ser necessário, sim, sofisticar: de letra, de bicicleta, chapelando o zagueiro na área. Importa o gol; a meta: sair com mais dinheiro que o outro.
Fraudes são um setor (sic!) que demanda inovação intensiva. Vai daí que descobrir fraudes que foram praticadas é uma atividade que exige questionamento amplo: imaginar e reimaginar até onde a criatividade poderia levar a ousadia do agente. Por isso chamamos a atenção, em meio aos exemplos que demos, para a importância da postura do investigador, partindo do termômetro que, corretamente aplicado, indica a existência ou, no mínimo, a probabilidade de algo fora do lugar. Avança-se pelos esforços para identificar o que seria(m) a(s) irregularidade(s), chegando ao trabalho de buscar demonstrar como se comprometeu a equalização patrimonial para garantir um indevido protagonismo nos ativos comuns. E – é bom não se esquecer! – isso pode ser conseguido, inclusive, criando impactos indevidos no passivo comum, maculando a conta final a ser partilhada: o chamado patrimônio líquido. Papo de Direito Empresarial? Claro, não tenha dúvida. E justamente por isso, algo que facilita muito a eficácia do ardil nos meios do Direito de Família. Não se trata apenas de uma conversa estranha, mas de meios estranhos.
Estratégias empresariais e societárias para fraudes patrimoniais em matrimônios e convivências
Eis porque muitos usam de estratégias empresariais e societárias para fraudes patrimoniais em matrimônios e convivências. O objetivo do mau sócio é o mesmo do mau cônjuge ou companheiro (a): obter uma vantagem ilícita: ter para si uma parte do que deveria ser do outro. E isso se faz por meio de estratagemas (dribles) diversos, não-raro usando institutos que servem para certo fim, mas são usados com outras intenções, como os tantos exemplos que demos no livro. Sim. Exemplos. Não é possível catalogar fraudes: a criatividade é a sua marca: fazer o que não se espera; agir de forma aparentemente normal, esforçar-se para não despertar suspeita, mas com o propósito da vantagem indevida. Justamente por isso, sempre haverá uma novidade. Um exemplo claro são os criptoativos, como a bitcoin; ausente das varas de família até bem pouco, passaram a ser descobertos como fuga ao dever de partilha do patrimônio comum. Quem quer descobrir fraudes, precisa ter domínio dos cenários regulares para assim atentar-se para o que dá sinais de estar fora do lugar.
No plano da partilha do patrimônio comum, seja no casamento, seja na união estável, está-se diante de uma dificuldade inicial: definir qual é esse tal patrimônio comum para, então, estabelecer o que é devido a cada a cada um. É uma operação simples na maioria dos casos, designadamente em face da singeleza do patrimônio. Mas nem sempre. Definir o patrimônio comum pode ser, sim, uma situação complexa e, no Direito Societário, ao contrário do Direito de Família, não há qualquer dúvida a respeito: faz-se necessário um procedimento definitório específico: a liquidação, parte essencial da dissolução. Seguindo a linha de “Auditoria Patrimonial e Exame de Regularidade Econômico-Financeira para a Partilha de Bens em Divórcio e Dissolução de Convivência”, parece-nos que deveria ser alternativa posta à disposição das partes no processo de divórcio e dissolução de união estável: pedir a liquidação do patrimônio comum, sem ter que provar desvios ou qualquer indício de má conduta: inventariar e auditar o patrimônio comum deveria ser faculdade posta à disposição das partes. Afinal, trata-se de direito acessório à titularidade do patrimônio. Por que dificultar? Esse é um questionamento interessante: pedir uma auditoria não deveria ser direito de ambos os co-titulares?
Mas vamos dar um passo atrás. Vamos pela base. Como tomamos o cuidado de demonstrar em Divórcio, Dissolução e Fraude na Partilha de Bens: simulações empresariais e societárias (Editora Atlas), patrimônio é um conjunto de relações jurídicas, o que inclui faculdades (patrimônio ativo) e obrigações (patrimônio passivo). No caso do casamento, em certos regimes, bem como da união estável em que não há contratação expressa de um regime de bens, passa-se algo análogo ao que se vê num contrato de sociedade: forma-se um patrimônio comum. Mas estamos nos referindo ao contrato de sociedade em sentido largo: sem personalidade jurídica. É diverso quando se constituiu formalmente uma sociedade (contratual, a exemplo da sociedade limitada, ou estatutária, a exemplo da sociedade anônima). E a diferença está no fato de que, neste último caso, cria-se uma pessoa jurídica, distinta de seus membros: personalidade jurídica própria, existência própria e patrimônio próprio. E, assumindo o risco da redundância didática, frisamos: personalidade, existência e patrimônio distintos das personalidades, existências e patrimônio de seus sócios. Esse encapsulamento das relações jurídicas ativas (faculdades) e passivas (obrigações) na pessoa jurídica da sociedade facilita – e muito! – as discussões patrimoniais na hipótese de dissolução; e essa facilidade aumenta em face da obrigação de se manter uma escrituração contábil (artigo 1.179 do Código Civil), com documentos que comprovem os registros escriturais.
Na sociedade em comum (sem personalidade jurídica), como no casamento e na união estável com patrimônio comum (comunhão, ainda que parcial), não há encapsulamento das relações jurídicas com expressão econômica que sejam comuns, nem há uma correspondente escrituração contábil – que atenda aos múltiplos requisitos legais e regulamentares – que dê uma segurança correspondente às sociedades personificadas. Não se forma uma pessoa jurídica com escrituração contábil formal, nem mesmo um patrimônio de afetação. Decorre dai que o patrimônio comum partilhável é, em muitos aspectos, uma projeção, uma estimativa se não há uma auditoria e avaliação adequada (realizada sem um dever de guardar registros e documentações). Algo que é simples em relação à titularidades ativas que merecem registro (imóveis, veículos, quotas ou ações, debêntures, contas bancárias); mas fica toda uma gama de relações jurídicas de fora, como joias, obras de arte, dinheiro em espécie, ouro etc. As dúvidas florescem policromáticas em ambientes dessa natureza, como flores desabrocham em jardins adubados.
Claro, nem sempre quem suspeita haver coelho nesse mato está correto. É preciso salientar ser comezinho deparar-se com um patrimônio que se revela abaixo das expectativas do cotitular que não se encarregava de sua gestão. Supor mais ou menos riqueza é próprio do ser humano. Somos seres que estimam e, não raro, nos lascamos por inteiro justo por avaliar equivocadamente, não raro com ambição ou desdém (conforme o caso). Quem aprecia boas tragédias gregas ou shakespearianas bem o sabe: a origem da tragédia é um erro de cálculo, se suposição ou, enfim, de estimação. Nas tragédias, como nos sítios por onde caminhamos agora, neste ensaio, o motor desse engano são as paixões; não só a paixão amorosa, sexual, religiosa, mas todas as outras: ódio, inveja, possessividade, desejo de vingança, desejo de morte (de matar ou morrer) etc. (conferir NOVAES, Adauto. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1988). Há paixões próprias que resultam dos conflitos amorosos e das separações.
E com tais acirramentos lidam mais os advogados de família do que os de empresa. Embora não nos sejam estranhos, entre clientes, o chilique e o ódio rasgado, o interesse financeiro geralmente permite compor soluções negociadas que atendam a ambos. No império dos sentimentos e das emoções, nem sempre se tem aí uma via que se pode sequer sugerir, quanto mais percorrer. De qualquer sorte, importa destacar, a esta altura, que o começo não raro é uma estimativa e, na esmagadora maioria dos casos, não se trata de algo confiável. Mas é o motivador de uma investigação. Infelizmente, não são poucos os casos em que partes são enganadas com tranquilidade pelo simples fato de não se mostrarem aptas a aquilatar minimamente quais seriam os seus direitos, vale dizer, qual seria o patrimônio comum a partilhar.
A suspeita, portanto, não basta. É preciso demonstrar que efetivamente houve um recuo patrimonial inexplicável e, assim, forçar uma inversão da prova, vale dizer, demandar que o cônjuge ou companheiro que tinha a gestão do patrimônio comum, como todo e qualquer administrador, faça a prova da regularidade de seus atos. E ele(a) deverá colacionar elementos objetivos que receitem e fundamentem o recuo e/ou o ajuste patrimonial, nisso compreendido ativo e passivo. O pior é que, como dissemos há pouco, ao contrário do que se passa com as sociedades simples e empresárias que, por força do artigo 1.179 do Código Civil, estão obrigadas a manter uma escrituração contábil regular, devidamente calçada em acervo documental que lhe prove a veracidade, o mesmo não se passa com o patrimônio comum afetivo (embora, notem bem, não seja proibido fazê-lo). A auditoria do que poderíamos chamar de contas domésticas é um desafio enorme e, sim, constitui ambiente que facilita aqueles dribles. Assim, não havendo escrituração contábil para narrar a história patrimonial (das obrigações e das faculdades: propriedades, créditos etc), será preciso historiar por outros meios.
Em todo o mundo, um dos caminhos usados para tal aferição são as declarações de imposto de renda. Ali listam-se – ou deveriam estar listados – receitas, bens, obrigações (empréstimos) etc. Outro meio que, alhures, são franqueados pelo Judiciário para os litigantes são os extratos de contas bancárias e cartões de crédito. Entre nós, contudo, há ainda resistência sobre franquear acesso a tais informações, num apego extremo à privacidade econômico-financeira individual, o que só é possível desconsiderando a comunhão voluntária a que se entregaram as partes que, recorde-se, poderiam ter recorrido a mecanismos jurídicos para a separação patrimonial. Há mecanismos regulares para garantir que o que é meu é meu e o que é seu é seu e, enfim, conjugamos apenas os corpos e os sentimentos. Assim, quem aceitou compor um patrimônio comum por meio de casamento ou união estável, aceita a comunhão econômico-financeira correspondente, ainda que nos limites do regime, como na comunhão parcial de bens.
Essa superproteção de qualquer das partes é uma postura que permite que o próprio Judiciário seja passado para trás. Nunca é demais lembrar que, nos casos Sharland versus Sharland e Gohil versus Gohil, julgados pela Suprema Corte do Reino Unido em 2015, os juízes chamaram a atenção para o fato de que não era apenas a parte contrária que estava sendo enganada, mas também a própria Corte, levando-a a proferir uma decisão que não foi correta: se a parte houvesse agido em conformidade com seu dever de lealdade processual, a decisão seria diversa. Esse é um aspecto crucial: a função constitucional do órgão julgador deve lhe ser cara e, assim, o juiz ou câmara não deve renunciar ao seu lugar de direito, à sua importância e relevância. Dir-se-á haver nisso um assoberbamento das funções judiciárias em momento em que os tribunais, em todas as instâncias, estarem submetidos a uma agenda intensa. Não nos parece ser o caso: se a regra fosse dar às partes, ambas, por meio de perito e assistentes-técnicos, acesso a declarações de imposto de renda e extratos bancários e de cartão de crédito, toda essa fase de equalização das relações individuais, para a definição do que seja efetivamente o patrimônio comum constituiria trabalho de tais experts, cabendo ao magistrado exclusivamente a decisão dos pontos que se mostrassem controversos. Nisso haveria uma evolução e tanto: uma gestão judiciária focada na eficiência para compensar o alto volume de ações. Aliás, voltando ao diálogo entre o Direito de Família e o Direito de Empresa, será proveitoso lembrar ser essa a lógica da Lei 11.101/05: na falência e na recuperação de empresas, cabe ao magistrado a decisão das questões jurídicas; é o administrador judiciário que se ocupa do amplo movimento de questões burocráticas.
Precisamos evoluir para considerar absolutamente regular, nos processos de divórcio (casamento) e dissolução (união estável), procedimentos de auditoria e avaliação com abrangência ampla para determinar o que é o patrimônio comum e, assim, qual o valor de cada meação. E isso deve se concretizar com amplo acesso, por auxiliares de confiança do juízo e das partes, que permitam tal trabalho. É o caso, reiteramos, de declarações de imposto de renda e extratos bancários e de cartão de crédito, pois permitem que se apure uma história patrimonial, apesar da inexistência de escrituração contábil para a azienda doméstica. A partir de tais levantamentos, é possível se formar mais que um retrato, mas um filme do que foi e é o patrimônio comum; e desse filme, vistos pelos olhos de experts em auditória, podem exsurgir indicações de fraudes ou, pelo contrário, um atestado de absoluta regularidade.
A clareza sobre o que se tem e o que se passa renova as relações (que tendem à animosidade) e podem aconselhar acordos que irão beneficiar aos envolvidos. Afinal, o ressentimento é mau mentor e pode descartar equações do tipo todos-ganham por todos-perdem. Os casos são muitos, lamentavelmente. Detalhe: no âmbito do Direito Societário, há toda uma mestria (experiência, prática, técnica, pessoal especializado) focada em dissoluções não-prejudiciais ou, mais do que isso, benfazejas para os sócios, proporcionando condições (fruto de planejamento jurídico, econômico e financeiro) para que sigam bem suas vidas separadas. Desatar o conflito e colocar os envolvidos em bons trilhos próprios, segundo projetos corretamente articulados. Não se trata, de jeito maneira, de utopia. Compartilhar uma solução é um caminho possível e atende às previsões do Código de Processo Civil.
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