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Auditoria Patrimonial e Exame de Regularidade Econômico-Financeira para a Partilha de Bens em Divórcio e Dissolução de Convivência

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Auditoria Patrimonial e Exame de Regularidade Econômico-Financeira para a Partilha de Bens em Divórcio e Dissolução de Convivência

Gladston Mamede
Gladston Mamede

05/03/2024

Não nos listamos entre aqueles que se aprazem com a ruína alheia, não somos daqueles que se incomodam com o bom sono dos outros. Eis porque escrevemos Divórcio, Dissolução e Fraude na Partilha dos Bens: simulações empresariais e societárias; para tentar auxiliar aqueles que lutam por seus direitos em meio a uma sociedade em que o desenvolvimento econômico-jurídico cria demandas para a preservação adequada de direitos e o cumprimento de deveres. Basta uma conversa com advogados que atuam na área de família para verificar que nas dissoluções de vínculo conjugal ou de união estável, há uma preocupação cada vez maior com a ocorrência de fraudes, nomeadamente aquelas que se utilizam de tecnologias do Direito Empresarial e do Direito Societário. Daí a ideia de construir uma narrativa que procura dar uma noção de como funciona esse meio – o empresarial, o mercantil – e como seus meandros poderiam ser eventualmente usados para criar simulações lesivas. Claro, fraudes não se arrolam; as melhores estão sempre fora da lista, ou seja, tendem a não ser descobertas justo por não constarem do rol do que habitualmente se faz. É preciso, então, treinar o olhar.

Famílias empresárias

O problema é ainda maior quando se está diante do que se pode chamar de famílias empresárias, ou seja, de patrimônio que é essencialmente uma azienda empresarial. Não é incomum o estabelecimento de um jogo de pique-esconde que pode ser sustentado pelo manejo astucioso da legislação processual. Sim: muitos compreendem o processo civil como um jogo que permite fugir à finalidade de resolver o litígio em seu mérito, dando a cada um o que é seu. No caso da partilha de bens, quando se está diante de patrimônio vasto, heterogêneo e, principalmente, com implicações empresariais, isso é terrível. O acesso à informação é algo vital e deve (ou deveria) ser compreendido como algo regular, embora sempre se noticiem resistências, como se o normal do Direito fosse esconder e não revelar. Eis um debate que precisa ser travado e acompanhado de perto: a extensão do princípio da informação. E um debate que está no Direito Societário, é bom frisar-se. Ainda que se deva tomar cautelas para impedir o vazamento de dados estratégicos para os concorrentes, não se deve tolerar procedimentos voltados a ocultar informações essenciais sobre a administração societária aos sócios: o titular de quotas ou ações é cotitular desse bem coletivo que é o capital social investido na sociedade simples ou empresária.

O processo de gestão de acervos comuns, incluindo empresariais e familiares, não deveria jamais admitir um monopólio que ofuscasse a faculdade de saber o que se passa, sob pena de comportar – senão facilitar – malfeitos. E, infelizmente, eles são comuns (em empresas e famílias), o que deixa patente uma falha jurídica gritante. No mercado aberto de capitais, vira e mexe se tem notícia de não-controladores surpreendidos com desconformidades altamente prejudiciais a seus direitos patrimoniais. No caso das Americanas S.A., a troca da administração societária, em janeiro de 2023 levou à descoberta do que foi chamado de inconsistências contábeis que resultaram no empobrecimento dos acionistas; a ação (AMER3), que era negociada a R$ 12,00 em 11 de janeiro, estava quotada a R$ 0,71 em 20 de janeiro, terminando o ano abaixo de R$ 1,00. Quem contava com R$ 1.200.000,00, teria apenas R$ 100.000,00. Isso é empobrecer. Mais: isso é trágico. As limitações ao fluxo de informações verdadeiras premiam a má-fé, pune a boa-fé. Em termos globais, torna-nos partícipes de uma gente que precisa desconfiar de tudo; isso não traduz paz.

Não é preciso muito esforço para refletir sobre a mesma questão no âmbito das relações afetivas: casamento e união estável. Haveria mesmo um ambiente familiar se aplicássemos o mesmo pseudo dever de desconfiar? Que casal é esse? Que família é essa? Parece-nos óbvio que tal cenário agride a família em sua natureza. Não há famílias de tubarões; o acasalamento entre tais animais se faz por agressão (o macho morde a fêmea para segurá-la; realiza a cobertura e se vai); filhotes de tubarão não crescem com a genitora e há registros de irmãos se devorando. Eis a expressão analógica do dever de desconfiar. Preferindo a cultura pop, lembre-se que, nos anos 1980, a banda inglesa Culture Club fez sucesso cantando esse paradoxo: “Everyday is like survival/You’re my lover not my rival” [todo dia é como sobreviver/você é meu amante, não meu rival]; “Karma Chameleon” foi composta por George O’Dowd, Jon Moss, Mikey Craig, Phil Pickett, Roy Hay e estava no álbum Colour by Numbers (Virgin Records, 1983). Por fim, mantendo-se em sítios jurídicos, invoque-se a cabeça do artigo 226 da Constituição da República: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. A desconfiança como regra não seria compatível com tal previsão.

Os cônjuges e os conviventes têm um dever familiar de boa-fé, o que inclui não só o dever de bom governo do patrimônio comum – nas hipóteses em que há um patrimônio comum, mas traduz-se num direito de confiar que é o anverso do dever de fidúcia, de fidelidade (que não pode se limitar a sexo e afeto). Estando assim obrigados, deles também se exige a prestações de informação verdadeira e completa. E esse dever, por imperativo lógico, alcança a partilha de bens se há separação. A questão é tão série que, em alguns Estados norte-americanos, o dever de informação, quando desrespeitado (declarações omissas ou incompletas, inexatas), conduz à punição do autor, nomeadamente penalidades pecuniárias por desrespeito à jurisdição pública. Em fato, é um inegável e grave tipo de litigância de má-fé, não observando à principiologia processual, nomeadamente em contextos da proteção especial anunciada pelo artigo 226 da Constituição.

Auditoria patrimonial

As coisas, contudo, poderiam ser bem diferentes se a postura diante da dissolução e da partilha fosse diversa. Uma prática que não ocorre no Brasil é, mesmo em face de um divórcio consensual, estabelecer-se uma auditoria prévia dos bens para aferir o exato valor do patrimônio e atestar a regularidade de sua gestão. É preciso não focar no fato – o estado patrimonial de momento – mas ao processo, a evolução. Não se deve procurar por uma fotografia, mas por um filme. Somente assim se afere a existência, ou não, de boas práticas na gestão econômico-financeira da coletividade e, por decorrência, se chega a uma adequada definição do que é devido a cada um. E não deveria ser procedimento que demandasse indícios de ilicitude ou falhas; dever ser procedimento facultado a qualquer dos envolvidos como exercício de suas faculdades patrimoniais. Se é [também] meu, tenho o direito de pedir uma auditoria. Não deveria ser preciso justificar ou fundamentar as suspeitas; quero um exame do que [também] é meu é razão forte o bastante. Um exercício regular do direito resultante da cotitularidade patrimonial. Precisamos evoluir nesta direção.

É uma falha encarar tal fase e procedimento como sendo um trabalho de detetives em romances policiais. Não é essa a ideia (embora possa se tornar, havendo indicativos de irregularidades). O auditor, em princípio, está apenas aferindo a regularidade patrimonial. Portanto, o procedimento de auditoria econômico-financeira deve ser compreendido como um momento de certificação da regularidade do processo de gestão. E o que se deveria esperar por resultado é a afirmação de que está tudo em ordem. A finalidade não deveria ser descobrir o que se fez de errado, mas atestar que tudo foi feito de forma correta. E nisso há uma relevância. Aliás, as auditorias de companhias abertas, feitas anualmente, não cumprem a função de investigar fraudes, mas de atestar boa conduta econômico-financeira. É claro que, durante esse trabalho, os auditores podem – e habitualmente o fazem – indicar inconformidades de ordem diversas, a incluir ilícitos. Mas não se parte da percepção do desconforme para o trabalho de auditoria; parte-se da necessidade de aferir e atestar a regularidade e, assim, dar segurança a todo o processo.

Quem gere o patrimônio comum é responsável por fazê-lo adequadamente; se ambos o fazem, ambos são responsáveis por seus atos; a auditoria não olhará para esse ou para aquele, mas para todos os atos. E uma situação análoga à auditoria contábil de uma sociedade profissional com administração coletiva. Não se está atrás de fulano ou beltrano; examinam-se os atos de todos os sócios, ainda que sejam doze. Verifica-se e atesta-se a adequação. Não parte da apresentação de indícios de malfeitos. Não depende de suspeitas fundadas. Isso é o melhor, como os checapes anuais: os exames se fazem independemente de sintomas de doença; fazem-se para aferir a saúde e, graças a Deus, habitualmente ouve-se que está tudo bem, embora com os reproches de estilo: álcool, sedentarismo, tabaco, frituras etc. Em partilhas mais complexas, nomeadamente de casais empresários e/ou com patrimônio diversificado, essa fase deixaria mais claro o que se passou e a precisa situação em que o patrimônio comum se encontra. Insistimos: não uma resposta ao ilícito (ou seu indício), mas uma afirmação/atestação da regularidade. É uma verificação patrimonial que trabalha em favor de todos os envolvidos, inclusive o Judiciário, facilitando a dissolução e a definição das meações. Em se tratando de comunhão parcial, ainda permitiria definir adequadamente o que forma o bolo partilhável e o que não forma, incluindo a investigação sobre eventual sucessão real, entre outras. Examinar para aclarar, para facilitar, para que todos os i’s tenham o seu pingo.

O profissional ou equipe apontados para o trabalho, assim, não se focam em determinado ponto (aquele que uma das partes apontaria), mas procederia uma análise completa de todos os elementos econômico-financeiros, revisando-os; isso incluirá, mas não se limitará, aos registros contábeis de eventual atividade negocial (simples ou empresária), mas incluirá exame das declarações fiscais (essencialmente, declarações de imposto de renda),  registros bancários, movimentações financeiras e mobiliárias, participações societárias, aquisições e alienações de bens (a incluir eventual oneração), materiais (móveis e imóveis) e imateriais, entre outros pontos. O laudo final pode, eventualmente, indicar ilícitos ou indícios de ilícitos e, assim, recomendar investigações mais acuradas e especializadas. O Judiciário, assim, teria uma delimitação extremamente útil e produtiva: a definição do que está regular e do que talvez não esteja, vale dizer, não apenas os pontos duvidosos indicados pelo auditor, mas também eventuais impugnações que as partes fizessem às suas conclusões. A demanda se tornaria menor, mas específica; a instrução se restringiria. Há um outro ponto relevante: mais do que atestar a regularidade e afastar dúvidas sobre a gestão patrimonial, é possível fazer-se, concomitantemente, uma avaliação dos ativos para orientar a partilha. 

Uma última observação: em processos consensuais de separação, nada impede que a contratação de experts para proceder a uma verificação e avaliação do patrimônio seja ajustada amigavelmente entre as partes, assinando compromisso que a regule em minúcias. Parece loucura, mas não é. Se à dissolução do vínculo afetivo não corresponde rusgas, mesmo patrimoniais, a intervenção de experts permite não apenas definir o montante global a partilhar, mas o modelo ou modelos que podem ser utilizados, permitindo a adesão àquele que seja mais vantajoso para os envolvidos diretamente (os que estão a se separar) ou indiretamente, como familiares, empresas controladas etc. É um investimento que substitui o conflituoso, descarta o improviso, atesta a inexistência de fraudes e mantém um olhar atento para o futuro: o melhor para o pós-dissolução. Por esse caminho, evitam-se ampliar os impactos econômico-financeiros negativos do fim do relacionamento afetivo, embora seja indispensável grande maturidade emocional. É a tecnologia contábil e jurídica sendo utilizada para o planejamento estratégico do patrimônio. 

Mantendo o dever do sigilo que é próprio dos conflitos familiares, podemos contar uma história sem nomes, sem lugares. Decidiram divorciar-se. Gente de posses, como se diz por aí. Muitas posses. Podres de rico, dizem por aí. Não foi nada simples; pelo contrário, o pau quebrou e houve quem rodasse a baiana. Falamos o que não devia/Nunca ser dito por ninguém, como cantava a Legião Urbana, também nos anos 1980: “Ainda é cedo”, composição de Renato Russo, gravada no álbum Legião Urbana (EMI Brazil: 1985). Mas ninguém tocou fogo no circo. Lá isso não. Decidido o divórcio, os profissionais cuidaram do resto. O patrimônio foi levantado por grande empresa de auditoria contábil e, a partir do levantamento, houve um cuidadoso planejamento patrimonial. Pelo que sabemos, nada de irregular: tudo certinho, nos trinques. Isso não quer dizer que havia dois montes iguais na mesa. Que nada. Em bens de uso, como casas, carros e coisas do tipo, houve meu e seu. Entre os ativos empresariais houve meu, seu e mesmo nosso. Sim! Ainda são sócios em holdings e parceiros em investimentos comuns. Desfazer isso daria prejuízo e dinheiro não comporta desaforo. Estão divorciados há muito tempo e continuam muito ricos. Alguns leitores até sabem de quem estamos falando. Não há tantos ricos por aí. O divórcio e a partilha foram bem planejados e executados. Eles ainda têm alguns investimentos em comum. O casamento ruiu, o patrimônio, não. Não carecia, né?

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