32
Ínicio
>
Artigos
>
Empresarial
ARTIGOS
EMPRESARIAL
Dissolução e Partilha de Bens (empresa, casamento e união estável): efeito patrimonial compensatório para o abuso econômico-financeiro
06/02/2024
Será educado começar este ensaio pedindo desculpas aos leitores, senão à comunidade em geral, pelo longo título. Mas por mais que tenhamos nos esforçado para alterar, simplificar e reduzir, fomos levados a mantê-lo, senão acrescer. O longo e complicado rótulo deste ensaio cumpre a função penosa de traduzir o conteúdo do texto que encabeça. Na sequência, ainda, nesta inauguração, aclarar que nossa análise se encarta no plano do estudos que começamos, há mais de uma década, e que levaram à publicação de Dissolução, Divórcio e Fraude na Partilha de Bens: simulações empresariais e societárias (Editora Atlas). Quem conhece o livro, sabe não se tratar de uma obra sobre Direito de Família, mas sobre Direito Empresarial, oferecendo luzes para advogados para eventuais sombras que questões empresariais podem lançar sobre a partilha de bens. Em fato, muitas fraudes resultam do uso de tecnologia jurídica empresarialista que, por ser estranha aos corredores em que estão as varas de família nos fóruns, pretendem confundir e, assim, enganar.
A questão que trazemos ao debate, hoje, não diz respeito a uma simulação, contudo. Ainda assim, está-se diante de uma irregularidade na gestão de fundos comuns, razão pela qual, merece ser considerada na hipótese de dissolução. Como ocorreu com o restante da matéria do livro, cabe a advertência para o olhar de fora: não se trata de especialistas em Direito de Família construindo uma análise de Direito de Família. São teóricos do Direito Empresarial construindo uma análise sobre a dissolução patrimonial. Claro, há distinções viscerais entre as áreas (menores nas chamadas famílias empresárias); mas, olhando pelo ângulo oposto, há pontos comum, pontos de contato, pontos análogos. É como uma refeição vegana e uma patuscada em churrascaria; apesar de se pretenderem absolutamente diversas, comungam-se no aspecto manducatório. E isso é basilar. A dissolução do patrimônio comum não é uma exclusividade do Direito de Família; é própria do Direito Empresarial, por igual. Ocorre na liquidação das sociedades dissolvidas, na dissolução de sociedades não-personificadas, no desfazimento dos contratos de parceria, consórcio e afins. O que importa aqui, não são sentimentos e emoções; importa valores com expressão pecuniária. Dinheiro, bens e créditos.
Se não vamos tratar de simulações empresariais ou societárias, o que poderíamos trazer de novo para o debate relativo à partilha do patrimônio comum do casal que está se divorciando ou dissolvendo a respectiva união estável? A resposta direta: acreditamos haver espaço para uma discussão sobre efeito patrimonial ativo de atos de abuso econômico-financeiro com repercussão negativa sobre o patrimônio conjugal. Não é uma perspectiva usual em Direito de Família, mas é uma referência das aziendas empresariais que pode ser útil para a correção de distorções no dever de fidúcia financeira que é próprio tanto de corporações (sociedades empresárias), quanto de casais que optaram por alguma comunhão (total ou parcial) de bens. Mais do que isso, propõe um olhar mais atento para a gestão patrimonial conjugal, em situação análoga com a proposta de boa governança corporativa: bom governo da azienda coletiva: colaboração (trabalhar junto) e jamais abuso, jamais tomar ou tratar como seu o que é coletivo, comunitário, societário, conjugal.
Vamos começar justo por aí. Tanto no casal, quanto na sociedade, é indispensável haver um comportamento coerente com a condição de partícipe daquela conjunção. É um dever de fidúcia societária que, entre casais, é traduzido como dever de fidelidade. Em ambos os casos, há uma expressão patrimonial dessa fidúcia/fidelidade: o patrimônio comum usa-se para o fim comum. O sócio não pode arbitrariamente usar o patrimônio societário (imobilizado, caixa etc) em benefício próprio; é preciso respeitar a vontade coletiva, nos termos da lei e do ato constitutivo (contrato social ou estatuto social); por coerência, a mesma referência deveria ser adotada em relação ao patrimônio comum conjugal, embora não haja falar, habitualmente, em ato constitutivo; o uso do pacto nupcial é bissexto entre nós mas, sim, poderia servir para reger questões tais. E se há quebra do dever de fidúcia, do dever de manter comportamento coerente com a condição de partícipe da coletividade?
Direito societário
No Direito Societário, não há dúvida: aquilo que o sócio desviou, deve ser devolvido: é crédito da sociedade em relação a si. E desviar em sentido amplo, a incluir o gastar sem poder: a viagem de férias que a sociedade pagou, despesas pessoais assumidas pela corporação e situações afins. A sociedade tem um crédito relativo àqueles valores usados indevidamente e, assim, eles devem ser apurados e compor o seu ativo; havendo uma dissolução, retira-se do quinhão que cabe àquele sócio o valor do seu débito para com a sociedade (formado pelo que usou indevidamente). Isso é essencial, aliás, para garantir a sustentabilidade e a higidez econômico-fincanceira da corporação. Gestões responsáveis e compromissadas são uma vantagem competitiva; sustentam empresas longevas e lucrativas. E se isso tem efeitos para além da empresa em si, beneficiando a comunidade, o Estado, fornecedores, consumidores, trabalhadores etc. Por isso há um empenho em prospectar rotinas e mecanismos de maior controle, bem como procedimentos com maior eficácia.
A utilização do mesmo critério seria possível na aferição do valor global do patrimônio comum de um casal (casamento ou união estável)? Cremos que sim, embora com atenção às particularidades que diferenciam o ambiente do mercado e o ambiente doméstico. Dito de maneira simples: no pessoal há muito de conjugal. Vida em comum toma-se em sentido amplo e, sim, compreende diversidades na unidade. O resultado disso é que não deixará de haver conjugação no simples fato de um gastar mais do que o outro, desde que faça parte do ajuste, na anuência, da vida em comum. As despesas com a educação de um (a faculdade privada, a pós-graduação), quando o outro anui, é despesa comum. O mesmo com despesas médicas, ainda que haja grande desequilíbrio. Tudo o que o casal considerou normal e comum, deve ser reconhecido como normal e comum. O excesso consentido torna regular o desequilíbrio em receitas e/ou despesas; é o ordinário, o habitual, o que se dá para lá e cá. É melhor, jurídico e ético recusar a pretensão de uma revisão pretérita causada pelo rancor da dissolução, senão for para reconhecer a dificuldade ou impossibilidade do recálculo de pagamentos e beneficiário.
Entretanto, pode haver uso do patrimônio comum fora do ajuste conjugal, isto é, fora do que as partes consideravam normal e comum. Um exemplo: valores passados a terceiros por conta de infidelidade emotiva e/ou sexual; receitas não exigidas pelo mesmo motivo, como emprestar um carro ou imóvel; despesas, como no aluguel de um imóvel para o(a) amante; claro, usamos os exemplos mais picantes, que tocam mais forte e são mais facilmente assimilados. Contudo, não é preciso que a ausência de fidúcia patrimonial esteja diretamente relacionada à infidelidade emocional e/ou sexual. Importa essencialmente resultar de uma apropriação, como direito individual e pessoal, do que é conjugal ou, ainda, tem efeitos conjugais (como no caso da contração de débitos, incluindo o oferecimento de garantias). Nesses casos, faz-se recomendável recompor a contabilidade conjugal (em sentido largo, já que habitualmente não há registros contábeis da movimentação econômico-financeira doméstica). Reconhecer que o cônjuge deve os valores apropriados (ainda que resultem de avaliação ou estimativa, conforme o caso) para o montante global a partilhar. E o mais comum é fazê-lo por meio de compensação em relação ao que lhe é devido, embora possa ocorrer de dever mais do que tem o direito a receber.
Observe-se que o elemento central do argumento/proposição não é subjetivo, ou seja, não é a má-fé, embora ela seja facilmente reconhecida nas hipóteses de infidelidade emotiva e/ou sexual, vale dizer, na traição. Cuida-se de questão que se deve tomar por perspectiva diversa: como ocorre no dever de fidúcia societária, considera-se um elemento objetivo no comportamento (comissivo ou omissivo) da pessoa em relação a um patrimônio que é comum, ou seja, que não é só seu. Quem retira (desvia, portanto) do casal para transferir para algo que não é considerado comum e normal pelo cônjuge/companheiro, apropria-se de bem alheio: metade do valor. Posso fazê-lo para a minha irmã, para uma entidade religiosa ou mística ou de outra natureza, para algum movimento ou causa. O destino não é o que importa aqui. O ilícito está na ausência de anuência/adesão do cotitular do patrimônio comum, a caracterizar uma apropriação indevida de sua meação. Se o bem é comum, deve haver consentimento (que pode, inclusive ter contornos especificados em pacto próprio: nupcial, nas relações afetivas, no ato constitutivo ou pacto parassocial, nas relações corporativas).
Nem se fale em dever de vigilância, de desconfiar. Seria um absurdo e contraria o princípio da presunção de boa-fé, o direito de confiar. Não estamos obrigados juridicamente a ficar vigiando e desconfiando e fuçando e conferindo e perguntando e checando e duvidando e cobrando e… cáspite! Eis a receita do inferno. Não haveria casamento (nem sociedade empresária) sem uma presunção de boa-fé a sustentar um direito de confiar que, se prestarmos atenção, fortalece a ideia do dever de fidúcia. Assim, diante da descoberta, abre-se um direito de reagir e exigir a recomposição patrimonial, direito esse que, havendo dissolução do vínculo, cria uma situação de necessária recomposição da azienda para adequada definição do que cabe a cada parte. No entanto, pode ocorrer, por igual, haver anuência posterior, a recompor os pilares do comum e do normal. O cônjuge descobre as doações para sua sogra ou seu cunhado e a aceita. Trata-se de ratificação (que não precisa ser expressa; pode ser tácita): ainda que em momento posterior, o ato individual é compreendido como uma expressão da gestão comum do patrimônio coletivo.
Um último ponto deve ser abordado: não é válido, nem eficaz, o consentimento obtido mediante fraude. Sim, ao final fomos obrigados a enfrentar a questão pelo ângulo da simulação, razão pela qual se deve atentar para o corte sistêmico: a análise, aqui, considera elementos subjetivos. É possível – e não é raro – que a anuência seja obtida enganando o parceiro. Começando os exemplos pela pimenta, o dinheiro que seria para o(a) irmão(ã), é para o(a) amante; o que se apresenta como um investimento em determinado negócio, na verdade são despesas com jogos de azar; o contrato que é aprovado para certa finalidade, na verdade tem por fim produzir efeito diverso, pessoal, sem vantagem para o casal; a garantia que se ofertou com a explicação de certo contexto, tem contexto diverso (beneficiário, motivação, orientação, implicações, impactos etc). E a isso pode se somar diversas outras situações em que a compreensão do que se passa é maculada e a expressão da vontade não é consciente e efetivamente livre.
CLIQUE E CONHEÇA O LIVRO!
LEIA TAMBÉM