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Uma Clínica, um Hospital, um velho e bom advogado

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Uma Clínica, um Hospital, um velho e bom advogado

Gladston Mamede
Gladston Mamede

16/10/2023

O lançamento de “Estruturação Jurídica de Empresas” pela Editora Atlas lança um foco de luz sobre essa arte e técnica de que tanto carecemos para um desenvolvimento vigoroso e seguro das atividades empresariais no Brasil. Fazer o desenho normativo de uma corporação é uma arte da boa advocacia. E, mais do que isso, é um investimento valioso para os que se aventuram a tocar uma atividade negocial. E não é tecnologia jurídica nova (embora haja sempre novidades), é preciso destacar. Há décadas bons trabalhos jurídicos têm produzido resultados dignos de aplauso. 

No final dos anos 1970, ao criar o contrato social de uma sociedade civil (em conformidade à legislação então vigente), uma clínica médica que reuniria 15 profissionais de saúde, um velho advogado do interior, desses de pouca prosa e muito estudo, fez constar uma cláusula que previa algo estranho: o capital social dividia-se em 15 quotas de igual valor. A cada sócio correspondia uma quota e o contrato era expresso ao defini-las como sendo indivisíveis em relação à sociedade. Mais do que isso, o parágrafo primeiro esclarecia que a alteração dessa previsão de indivisibilidade demandaria aprovação da totalidade dos sócios. O parágrafo segundo, previa ser regular a constituição de condomínio para as quotas em resultado de sucessão hereditária, devendo ser indicado o representante do condomínio. A cessão hereditária de quotas estava assegurada. A cessão por venda ou doação só seria possível com a aprovação da totalidade dos demais sócios, reconhecido o direito de recesso com pagamento do valor apurado para os haveres em 24 parcelas iguais, monetariamente corrigidas. No entanto, esse direito (de recesso) só seria adquirido após o quinto exercício fiscal. Até lá, todos os sócios se comprometeram a manter o capital investido na sociedade.

Sim, uma previsão incomum. E justo por isso, quando a sociedade estava finalmente constituída, o velho advogado – Deus o tenha em sua Glória; morreu há muito – entregou a cada um dos sócios uma cópia do ato constitutivo e, mais do que isso, um conjunto de documentos sobre a constituição da sociedade. Entre eles, atas das reuniões que foram realizadas e nas quais constaram as discussões que levaram à redação do ato constitutivo: a ideia de paridade, de esforço igual e conjunto, de aceitação de qualquer novo sócio por todos os demais, a proposição conjunta de manutenção do investimento e de não fracionamento, mesmo causa mortis, de um conceito peculiar de coletividade, avizinhado da ideia de cooperativismo, embora com distinções. O sinalagma plurilateral, expressado no instrumento de contrato social, estava comprovado adrede pelas atas e por outros documentos: a atividade negocial (prestação de serviços de saúde) seria tocada por uma coletividade intuitu personae e, mais do que isso, com expressa contratação de um mecanismo de equidade no exercício das faculdades sociais.

Com o advento do Código Civil, em 2002, foi convocada uma assembleia geral para discutir o futuro da sociedade em face da novel legislação. Uma das propostas era transformá-la em sociedade simples limitada. Mas o que fora uma clínica já era um hospital com expressão em toda a região. E um negócio com bom fluxo de caixa e lucratividade; mais do que isso: um negócio promissor. Como se não bastasse, a morte de alguns dos sócios originais trouxera novos sócios, em três situações diversas: (1) médicos; (2) não-médicos; e (3) condomínios de herdeiros e meeiro. Nesses dois últimos casos, participações societárias sem correspondente participação na realização pessoal nos atos de realização do objeto social. A aposentadoria de sócios criava situação igual. Colocada em votação, venceu a proposta de transformação para sociedade empresária limitada, mantida a estrutura de quotas indivisíveis e demais regras. A ninguém interessara, até então, o exercício do Direito de Recesso. Mas as coisas estavam por mudar.

Foi nesse instante em que o mercado começou a revelar suas pretensões oportunistas. O momento em que o equipamento jurídico – o contrato social e demais plataformas normativas e estrutura documental adjacente – precisa demonstrar sua qualidade, sua capacidade de atender à coletividade social e à empresa. Vale dizer: é nessa hora em que o Direito precisa funcionar, nomeadamente pelo fato de que, por meio de pretensões judiciais, pode-se pretender criar caminhos alternativos, nem sempre os mais corretos, mas eventualmente eficazes. Infelizmente, é uma verdade para a qual não se pode fechar os olhos: ações judiciais podem ser meio para se fisgar um direito, uma faculdade, usando por isca uma tese jurídica que busca demonstrar pretensas ilicitudes, a incluir abusos jurídicos, a bem de constituir, judiciariamente, uma vantagem econômica. Não é uma situação nova, é claro. A judicialização como estratégia para ganhos é realidade antiga e desafia advogados que se encarregam da redação de instrumentos contratuais.

Aquisição de cotas por terceiros

Uma situação repetiu-se duas vezes: a pretensão de aquisição de quotas por terceiros que desejavam participar do negócio. Já não era mais uma clínica, mas um hospital com boa clientela, nome com penetração mercadológica, ampliando negócios, parcerias, quadro de pessoal. Em ambos os casos, não houve aprovação pela totalidade das demais quotas; aliás, sequer por metade dos quotistas. A recusa fez-se mediante a oferta de apuração de haveres; mas todos sabiam que o grande valor de mercado era uma aposta não passível de compor a avaliação: a empresa tinha um horizonte potencial invejável. Claro, isso poderia não ocorrer; o mercado não se expressa com certezas matemáticas e, justo por isso, são múltiplas as histórias de negócios promissores que acabaram oferecendo resultados pífios ou quebras surpreendentes. Mas para além do aviamento apurável, a operação dava sinais promissores de crescimento futuro. Daí a pretensão de aproveitarem-se de tais vantagens, vendendo quotas com ágio (ou prêmio: um plus ao valor apurável dos haveres).

A vedação à alienação seria lícita ou constituiria um abuso ao direito do sócio?

A questão que se colocou era: a vedação à alienação seria lícita ou constituiria um abuso ao direito do sócio? Aquelas limitações não seriam excessivas, dificultando o exercício das faculdades societárias, nomeadamente nos condomínios sobre quota única? Não seria abusivo impedir o fracionamento da quota? Em lugar do direito de recesso, com apuração dos haveres (ou seja, do valor atual da empresa), não seria mais justo ou mais adequado prever-se direito de preferência, permitindo ao quotista apurar sua vantagem de mercado, ainda que em face dos demais quotistas? Os argumentos, contudo, construíram-se sobre uma compreensão canhestra da empresa e da sociedade por ela responsável, sociedade essa que funcionava de acordo com um mecanismo jurídico que vinculava os aderentes e seus sucessores hereditários: a quota é herdada com as características jurídicas (lícitas, obviamente) que tenha. Ao(s) sucessor(es) corresponde um direito de ação contra ilegalidade (inclusive abusos); mas não um direito de fugir ao licitamente contratado: a quota é uma fração do contrato e assim se transfere.

Essencialmente, as previsões do contrato amoldavam-se inteiramente ao Código Civil na regência que dá a uma sociedade empresária limitada, designadamente pelo fato de não se ter eleito a regência supletiva da Lei 6.404/76, como é facultado. Assim, por força de lei, há regência supletiva da sociedade simples. Embora possa não interessar a esse ou aquele sócio (originário ou sucessor causa mortis), o certo é que foi constituída uma sociedade empresária intuitu personae, atribuindo-se força à coletividade, ainda que em desproveito de oportunidades individuais; noutras palavras, estabeleceu-se uma azienda para a qual importam as oportunidades coletivas. E isso, nos termos em que contratado, é lícito. Aliás, o contrato foi tão cauteloso que, apesar da regência do artigo 1.029 do Código Civil, cuidou de garantir, ele próprio, o direito de recesso e dar regência equilibrada à faculdade, preservando faculdades jurídicas de cada sócio. Como se não bastasse isso, a defesa da higidez do ato constitutivo ainda encontrava alicerce na documentação que demonstrava que aquele sistema de quotas de valor igual constituía causa eficaz para o ajuste plurilateral. Em suma, o que o contrato social fazia era privilegiar o coletivo; as pretensões contra ele buscavam privilegiar o ganho individual imediato (em desproveito dos restantes que não participariam do ágio e, mais do que isso, se haveriam de conviver com cessionário que se lhes impusesse.

Como essa história termina? Nós lhes contamos. O que era uma sociedade civil e poderia ter seguido como sociedade simples (comum, em nome coletivo, em comandita simples ou limitada), tornou-se uma sociedade empresária. Após décadas, 15 quotas de mesmo valor, algumas com um herdeiro (como resultado do inventário), algumas com condomínio de sócios. Não mais uma clínica de consultórios, mas um hospital. Houve uma tentativa de aquisição de oito ou nove quotas, mas a possibilidade de um malogro após um longo processo judicial desestimulou o interessado que, enfim, formulou uma oferta vantajosa pela aquisição da totalidade do capital social, com pagamento de um ágio representativo. Um negócio que foi vantajoso para todos e não apenas para alguns, refletindo exatamente a vontade coletiva dos quotistas quando firmaram o contrato social originário. Um resultado que, aliás, é fruto direto da competência jurídica de um advogado que, hoje, já não está entre nós. Um belíssimo trabalho jurídico, não só pela redação da plataforma normativa primária (o ato constitutivo; no caso, um contrato social), mas pelo cuidado de construir prova acessória que desse arrimo à preservação do sinalagma coletivo.

Constituição de estruturas societárias diversas do comum

Existem diversas histórias parecidas: constituição de estruturas societárias diversas do comum, arquitetas para expressar ajustes sociais específicos, fora do habitual. São exemplos fáceis as sociedades educacionais que, tendo por objeto escolas ou faculdades, formam-se com sócios professores. E sociedades profissionais em geral (dentistas, engenheiros etc) que podem evoluir para empresas de envergadura. Para tais situações, uma advocacia societarista inquieta – vale dizer, que não se faça acabrunhada – é o arranjo para solidez, segurança e estabilidade, deixando suas marcas profundas no sucesso do empreendimento, da atividade negocial e, enfim, da empresa. É motivo de preocupação, senão de lamúria, o baixo interesse do mercado pela tecnologia jurídica que, como as demais (tecnologia da informação, logística, equipamentos), é igualmente fundamental para um mercado e para a economia nacional.

É esse caminho e esse método que nos orientou a construir a teoria das plataformas normativas como território de um agir advocatício indispensável para as empresas brasileiras. Um diálogo que está apenas começando, mas que precisa ser levado adiante: toda empresa necessita de um advogado para atuar segundo a lei, sem ter problemas jurídicos e, mais do que isso, em condições jurídicas de gerar os melhores resultados. O amadorismo jurídico reinante nos meios mercantis é, por si só, um desafio: uma demanda vasta que deverá ser atendida com urgência, nomeadamente em face da ampliação da concorrência internacional. Não mais competimos com a loja ao lado ou a indústria da cidade ou do Estado vizinho. A competição é cada vez mais global e, com um clique, o concorrente atende ao nosso cliente. Não pode haver fragilidades jurídicas em tal cenário.


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