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CIVIL

CLÁSSICOS FORENSE

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Enfiteuse e arrendamento – Distinção – Temporariedade decorrente de cláusula contratual

ENFITEUSE

REVISTA FORENSE

REVISTA FORENSE 152

USUCAPIÃO

Revista Forense

Revista Forense

03/08/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 152
MARÇO-ABRIL DE 1954
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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CRÔNICARevista Forense 152

DOUTRINA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

  • A prescritibilidade da ação investigatória de filiação natural – Alcides de Mendonça Lima
  • Inviolabilidade do lar – Sanelva de Rohan
  • Os aumentos de capital e o direito dos portadores de ações preferenciais – Egberto Lacerda Teixeira
  • As sociedade de economia mista e as emprêsas públicas no direito comparado – Arnold Wald
  • Locação total e locação parcial – Eduardo Correia
  • Conceituação do arrebatamento como crime contra o patrimônio – Valdir de Abreu
  • Os quadros de carreira e a equiparação salarial – Mozart Vítor Russomano
  • A situação dos parlamentares que se afastam de seus partidos – Nestor Massena

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

Sobre o autor

Orlando Gomes, professor da Fac. de Direito da Bahia.

PARECERES

Enfiteuse e arrendamento – Distinção – Temporariedade decorrente de cláusula contratual

– Para decidir se determinada situação jurídica configura o direito real de enfiteuse ou o direito pessoal de locação, é preciso verificar, preliminarmente, se os efeitos do ato são perpétuos ou temporários; sendo perpétuos, estará excluída a hipótese do arrendamento; sendo temporários, a do aforamento.

– A enfiteuse não se constitui sem o título, que é o contrato, e sem o modo, que é a inscrição no registro.

– O contrato por tempo indeterminado pelo qual o proprietário de terreno baldio cede o uso e gôzo dêsse bem, mediante retribuição, é de arrendamento, quaisquer que sejam os traços que o assemelhem à enfiteuse.

PARECER

Distinção entre enfiteuse e arrendamento

1. A distinção entre enfiteuse e arrendamento não oferece dificuldade quando se confronta a qualidade do direito que geram. A enfiteuse procria um direito real na coisa alheia, jus in re aliena. O arrendamento, mero direito pessoal, de crédito. A realidade do direito do enfiteuta não sofre contestação, quer se encarta o aforamento como simples modalidade do domínio (LACERDA DE ALMEIDA, “Direito das Coisas”, J. Ribeiro dos Santos, livreiro-editor, Rio de Janeiro, 1908, vol. 1º, nota C, pág. 478), como espécie de locação (HENRI DE PAGE, “Traité Elémentaire de Droit Civil Belge”, Etablissements Emile Bruylant, Bruxelas, 1948, tomo IV, 1ª parte, nº 487), ou como jus in re aliena (CLÓVIS BEVILÁQUA, “Código Civil Comentado”, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1950, vol. III, pág. 244, e os comentadores do Cód. Civil). A pessoalidade do direito do arrendatário é também incontestável. Não é difícil, portanto, distingui-los.

2. Mas, se as situações jurídicas oriundas dos dois institutos não se confundem quando se configuram por traços incisivos, não raro se apresentam sob contornos que não permitem imediata caracterização. Tantos são os pontos de semelhança que, muita vez, tergiversa o intérprete na identificação da figura que se oferece. Casos existem, com efeito, nos quais não é fácil dizer se configuram uma enfiteuse ou um arrendamento.

Os juristas conhecem essa dificuldade. E os tratadistas se esforçam por encontrar critério que facilite a distinção.

França

3. Na França, M. PICARD, no “Tratado de Direito Civil” de PLANIOL e RIPERT, ensina que, na falta de vontade claramente expressa ou de qualificação precisa, o juiz deve considerar os seguintes elementos, que, encarados em conjunto, e não tomados isoladamente, caracterizam a enfiteuse:

a) la longue durée du bail (por que é temporária);

b) la modicité de la redevance;

c) la charge de faire des améliorations ou constructions, avec possibilité de demolir ou modifier l’état des lieux;

d) enfin et surtout, lé droit de disposer, et de consentir des droits réels sur les biens dónnés à bail (ob. cit., Librairie Générale de Droit et Jurisprudence, Paris, 1926, vol. 3°, nº 1.002).

Itália

4. Na Itália, TITO CARAFFA, discorrendo sôbre a enfiteuse no “Digesto Italiano”, dirigido pelo Prof. LUCCHINI, depois de advertir que os caracteres exteriores dos dois contratos, o de enfiteuse e o de arrendamento, são totalmente semelhantes, indica o meio de os distinguir do seguinte modo:

“Per trovare il vero criterio discretivo, occorre accertare l’indole del diritto che nel contratto si è voluto accordare al concessionario dell’immobile: e a tale effetto deve seguirsi la regola generale di interpretazione che bisogna cioè indagare quale sia stata la comune intenzione delle parti contraenti, anzi che stare al senso letterale delle parole” (ob. cit., Unione Tipografica Editrice, Turim, 1895-1898, volume X, verbete Correspondente, pág. 430).

Pouco adiante, observa que “as anomalias e as impropriedades da linguagem não mudam a substância das coisas, nem seu caráter jurídico”.

Bélgica

5. Na Bélgica, HENRI DE PAGE, considerando a enfiteuse uma locação reforçada, que cria direito real, acentua, não obstante, o alto interêsse de as distinguir, lamentando que o direito moderno não possa fornecer critério seguro para a distinção. No entanto, aconselha que se analise o contrato em seu conjunto, para verificar se confere gôzo completo, do bem, de duração longa, e o exercício, das faculdades inerentes ao domínio, mediante preço mínimo, majorado todavia pelos encargos dos impostos, hipótese na qual será enfiteuse (“Traité Elémentaire de Droit Civil Belge”, Etablissements Emile Bruylant, Bruxelas, 1942, tomo VI, número 715). Acrescenta que, na dúvida, o contrato deve ser interpretado contra o credor do gôzo, sendo, pois, arrendamento (idem, ibidem).

6. Outros critérios, tão frágeis quanto os sugeridos por êsses tratadistas, têm sido lembrados, como o do exame do conteúdo jurídico da relação, o da intensidade do direito do enfiteuta, o da modicidade do fôro, o da duração do contrato, e, até, o de sua qualificação dada pelas partes. Nenhum dêles satisfaz.

Doutrina Brasileira

7. Na doutrina brasileira, a preocupação de distinguir a enfiteuse do arrendamento, antes e depois do Cód. Civil, se manifesta com o mesmo empenho que entre os escritores estrangeiros.

Já TEIXEIRA DE FREITAS ensinava que: “as locações nunca operam a desmembração do domínio, mas engendram jus in re; os aforamentos transferem o domínio útil para os enfiteutas. A duração do contrato nada influi” (“Consolidação das Leis Civis”, Jacinto Ribeiro dos Santos, Rio de Janeiro, 1915, 5ª edição, nota ao art. 607).

8. LAFAYETTE entendia que a, lei traçava uma linha clara de separação entre o contrato enfitêutico e os contratos de arrendamento, e estabelecia a distinção nos seguintes têrmos:

“No aforamento, a pensão é sempre módica, porque só tem por fim afirmar o reconhecimento do domínio direto, e compensar o proprietário da privação do seu prédio inculto ou desnudado de edifícios, e, por conseqüência, esterilizado em suas mãos. Mas, nos contratos de arrendamento, a renda representa a retribuição dos capitais imobilizados no prédio” (“Direito das Coisas”, B. L. Garnier, livreiro-editor, Rio de Janeiro, 1877, vol. 1°, pág. 385).

Como refere LAFAYETTE, a distinção entre locação a longo prazo e enfiteuse fôra feita pela lei de 4 de julho de 1776, com o intuito de cortar os abusos e inconvenientes resultantes da confusão de um e de outro.

Esta lei dispunha:

“Todos aquêles contratos nos quais se emprazaram, ou emprazarem terrenos para edificar casas, ou terras e matas incultas para abrir e melhorar com es fins de lavoura e plantio de vinhas e arvoredos foram e são verdadeiramente contratos enfitêuticos, os quais se devem julgar pelas regras dos prazos. Todos os outros contratos nos quais se aforaram ou aforarem casas já fitas, quintas habitáveis e terras frutíferas pela mesma renda em que costumavam andar, contiveram e contêm por sua natureza contratos de locação por longos tempos de anos e vidas, ou colônias perpétuas, para serem julgadas pelas outras diferentes regras por que se costumam decidir as convenções entre os rendeiros ou colonos e os seus respectivos senhorios, sem outra diferença que não seja a de serem obrigados os colonos desta nova espécie aos direitos dominicais estipulados nos seus respectivos contratos”.

Por esta disposição, o critério distintivo não estaria na intenção das partes ao celebrar o contrato, mas, sim, no seu objeto. O alvará de 10 de abril de 1821, conquanto fôsse especial, por se referir a aforamentos de terrenos da capital, como lembrava ANDRADE FIGUEIRA na discussão do projeto do Cód. Civil, viria confirmar êsse entendimento ao reduzir a aforamentos perpétuos todos os aforamentos dos terrenos desmembrados das sesmarias.

9. Antes do Cód. Civil, a confusão entre enfiteuse e arrendamento perdurava no direito pátrio, a despeito da existência de tais regras interpretativas, uma vez que nem estas nem a doutrina proporcionavam seguro critério distintivo.

Firmara-se, contudo, a norma, decorrente dos costumes, de que os aforamentos eram perpétuos. Apesar de admitida nas leis, a enfiteuse temporária não medrou em nosso País. Só a enfiteuse perpétua pura, também chamada fateosim, estêve em uso (cf. LAFAYETTE, “Direito das Coisas”, vol. 1°, pág. 376).

Quando da discussão do Projeto BEVILÁQUA, que acolhera a tradição dos aforamentos perpétuos, a questão das enfiteuses temporárias foi trazida a debate. Na sua crítica veemente à regulamentação do instituto feita no projeto, ANDRADE FIGUEIRA perguntava: “Por que não permitiram a enfiteuse temporária? Por que, nestas condições, é um contrato de arrendamento? Mas, por que não admitir, se dá as mesmas garantias e até muito mais lucro ao proprietário?” E concluía: “para que, pois, limitar, considerando arrendamento o que é um contrato diferente?” (“Trabalhos da Comissão Especial da Câmara dos Deputados”, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1902, vol. V, pág. 258). Pouco depois, respondendo ao relator, ANDRADE FIGUEIRA renova a crítica, afirmando que “não vê razão para que em um direito novo, que trata de construir, se procure ser mais rigoroso do que o foi o direito português antigo, não se permitindo às partes a faculdade de estipularem enfiteuses vitalícias ou temporárias” (“Trabalhos” cit., vol. V, pág. 269). Não obstante, prevaleceu o ponto de vista de só se admitir enfiteuse perpétua pura. O Código Civil, no art. 679, declarou, com ênfase, que o contrato de enfiteuse é perpétuo, e, no mesmo texto, determinou que a enfiteuse por tempo limitado seria considerada arrendamento, e como tal se deveria reger. Embora contrariando a tendência do direito moderno, que é infensa à perpetuidade dos contratos enfitêuticos, o legislador pátrio eliminou do nosso sistema, de modo expresso e categórico, os aforamentos temporários. Com essa orientação, que CLÓVIS BEVILÁQUA justifica como “expressão legal do direito em uso”, o Código proporcionou um critério seguro para distinguir o aforamento do arrendamento. O que caracteriza a enfiteuse, entre nós, é a perpetuidade. Se a situação jurídica se apresenta revestida de todos os caracteres da enfiteuse, mas é temporária, qualifica-se como arrendamento.

10. Òbviamente, não basta que o contrato seja perpétuo para qualificá-lo como enfiteuse. É necessário que concorram outros elementos essenciais à sua definição. O que se afirma é que a presença do requisito da perpetuidade em um contrato que aparentemente seria arrendamento é suficiente para excluir tal qualificação. Do mesmo modo, se o contrato é temporário, por maior que seja a sua semelhança com o aforamento, não possui essa qualidade, visto que a temporariedade afirma decisivamente a sua natureza de contrato de arrendamento.

Em face dos claros têrmos do artigo 679 do Cód. Civil, a enfiteuse há de ser perpétua ou não será. Parece-me que incorrem em equívoco os que admitem duas modalidades de enfiteuse: perpétua e por tempo limitado, reconhecendo, embora, que esta se rege pelas regras do arrendamento. Só há, no direito pátrio, uma espécie de enfiteuse: a perpétua, para sempre. A outra não é enfiteuse. É arrendamento. Não cria direita real, mas, sim, direito pessoal. Conseqüentemente, enfiteuse não pode ser, por isso que esta é jus in re aliena (Cód. Civil, art. 674).

Direito real de enfiteuse ou o direito pessoal de locação

11. Para decidir, portanto, se determinada situação jurídica configura o direito real de enfiteuse ou o direito pessoal de locação, o primeiro cuidado do intérprete há de ser o de verificar se os efeitos do ato são perpétuos ou temporários. Sendo perpétuos, estará excluída a hipótese do arrendamento. Sendo temporários, a do aforamento.

12. No caso, o contrato constitutivo da relação jurídica foi estipulado para vigorar por tempo indeterminado, consoante cláusula expressa.

Importa saber, por conseguinte, se a introdução de tal cláusula indica perpetuidade ou temporariedade.

A enfiteuse é perpétua quando convencionada ou instituída para sempre. k temporária (nas legislações que a admitem com essa qualidade) quando se resolve após certa duração, seja a da vida do foreiro, a de três vidas, a do decurso, de tempo certo, prefixado na lei ou na convenção, ou a do tempo que aprouver a qualquer dos contraentes.

Quando as partes subordinam a eficácia de um contrato de prestações sucessivas a tempo indeterminado, entende-se que não quiseram vincular-se até a expiração de um têrmo prefixado. Assegurando-se recìprocamente maior liberdade de ação, preservam a faculdade de, a todo tempo, resolverem o contrato, por iniciativa unilateral. Como não se prenderam por prazo, desligam-se quando apraz a um dos contraentes. A função da cláusula “por tempo indeterminado” sempre foi essa. Jamais significou perpetuidade. O que pode ser desfeito, a cada momento, não tem duração perpétua. Temporário, portanto, é o contrato destinado a vigorar por tempo indeterminado. O fato de aludir o Cód. Civil, no art. 679, à enfiteuse por tempo limitado, não significa que só admite como arrendamento a enfiteuse por prazo certo, isto é, sujeita, na sua extinção, a dies certus. Também é temporário o contrato cujo têrmo é fixado por dies incertus an ou dies incertus quando, como no caso da enfiteuse vitalícia. O que importa, enfim, é a possibilidade da rescisão, tanto mais intensa quanto dependa da vontade unilateral de um dos contraentes.

13. Ora, a presença da cláusula “por tempo indeterminado” é altamente significativa para a repulsa à hipótese de ter sido constituída uma enfiteuse, porque atenta contra a sua índole e finalidade. Ninguém se investe na condição de foreiro, da qual resultam direitos amplíssimos, quase iguais ao do proprietário, para perdê-la a todo tempo que apraza ao suposto senhorio. Mesmo nos países que admitem tão-sòmente a enfiteuse temporária, o prazo de vigência do contrato é sempre longo. Do contrário, o aforamento falharia à sua finalidade. A longa duração é tão importante que alguns juristas a destacam como traço distintivo da enfiteuse. Cessão do uso e gôzo, de terreno por pouco tempo é indício de arrendamento. Indício que é muito mais veemente quando está prevista a possibilidade de rescisão do contrato, a qualquer tempo, por declaração de vontade de uma só das partes.

14. Por outro lado, a subordinação dos efeitos do contrato a duração indeterminada, por cláusula explícita, revela a intenção das partes de se reservarem a faculdade de fazer cessar a relação, por ato unilateral de vontade, a todo tempo. Êsse jus poenitendi, que é um direito potestativo de cada contratante nos contratos por tempo indeterminado, opõe-se aberta e radicalmente à perpetuidade da relação, pois a sua existência, implicando poder de extinção do contrato, não se concebe nas relações perpétuas, nas quais é impossível.

Conseqüentemente: se no direito pátrio a enfiteuse por tempo limitado considera-se arrendamento, o contrato de duração indeterminada, extinguível como é a qualquer momento, possui, necessàriamente, a natureza da locação. Enfiteuse não é, nem pode ser, em face da disposição legal.

15. Condicionada a sua duração ao exercício do jus poenitendi por qualquer das partes, vale dizer, subordinada a sua eficácia a têrmo incerto, não pode ser qualificado como enfiteuse, aforamento ou emprazamento, por isso que lhe falta, inequìvocamente, o requisito da perpetuidade, que é essencial para a caracterização dêsse jus in re aliena. Constituiu-se, pois, um arrendamento, rescindível, a todo tempo, pela vontade de qualquer das partes.

Usucapião

16. Como todo direito real, a enfiteuse também se adquire pelo usucapião, tanto ordinário como extraordinário.

A constituição da enfiteuse por êsse modo restringe-se, contudo, a poucos casos. LAFAYETTE indica três:

1, quando o indivíduo, que não é dono do imóvel, o afora a um terceiro;

2, quando alguém, que está na posse de um imóvel sem título de enfiteuse, o possui, todavia, como enfiteuta, e paga pensão ao dono;

3, quando o verdadeiro dono do imóvel, ou por ignorar o seu domínio, ou por qualquer outro motivo, nêle se conserva, e paga, como enfiteuta, pensão a outrem, que toma como senhorio (“Direito das Coisas”, vol. 1º, § 146).

LACERDA DE ALMEIDA reproduz, com outras palavras, a lição de LAFAYETTE (“Direito das Coisas”, vol. 1°, § 80).

17. A hipótese estabelecida na consulta não se ajusta a qualquer destas circunstâncias. Por contrato escrito, fôra convencionado, para durar indeterminadamente, o arrendamento de um, bem imóvel. Por mais vivas que sejam as semelhanças entre êsse contrato e o enfitêutico, o direito pessoal, que gerou, jamais se poderá converter em direito real, pelo decurso do tempo. Nenhum locatário pode transformar-se em foreiro por usucapião.

A razão é simples e intuitiva. Se o possuidor o é, na qualidade de arrendatário, o título o impede de servir-se dessa posse para adquirir, pelo usucapião, o direito real de enfiteuse. Não se pode alegar prescrição contra o próprio título. É êste “o fundamento do próprio direito”. Se o título é um contrato de arrendamento, o direito do contratante, que nêle se funda, é o de arrendatário, e não de foreiro; direito pessoal, e não direito real. Se possui a coisa como locatário, o título, a que a possui não permite que passe a possuí-la como enfiteuta.

18. Para a aquisição de um direito real por usucapião ordinário mister se faz que o possuidor tenha justo título, isto é, que se encontre na posse da coisa em virtude de ato jurídico que seja hábil a lhe conferir determinado direito sôbre essa coisa. Se alguém, de boa-fé, celebra o contrato enfitêutico com pessoa que não é proprietária do imóvel que afora, e o inscreve no competente livro de registro, adquire, no fim de 10 anos, a condição de foreiro por usucapião. Adquire-a, porém, porque, além dos outros requisitos, tem o justo título, uma vez que o contrato enfitêutico é um dos meios pelos quais se constitui a enfiteuse. A inscrição ou transcrição de outro qualquer ato jurídico, que não seja adequado a constituí-la, não confere justo título. O fato de se levar à inscrição no oficio de Imóveis e Hipotecas um contrato de arrendamento, que não exige essa formalidade para produzir seus normais efeitos, não converte êsse ato jurídico em contrato enfitêutico, nem induz, sequer, à presunção de que as partas convencionaram a constituição de uma enfiteuse, por mais flagrantes que sejam as semelhanças. A inscrição é modo de adquirir direito real. Não se deve confundir o modo de aquisição com o titulus adquirendi. O modo é o fato que dá nascimento ou opera a transmissão de um direito, em virtude de lhe ser atribuído êsse efeito pela lei. O título é a causa jurídica ou razão de ser da aquisição ou transmissão de um direito. Na aquisição de um direito real, o modo não é senão a execução do título. Ou, para dizer, como BUFNOIR (“Propriété et Contrat”), o ato pelo qual se opera a transmissão de um direito real não é o ato em virtude do qual a transmissão se realiza.

19. Ora, se é pelo modo que o direito real se transmite, no entanto é no título que se vai encontrar a causa jurídica da transmissão. Por conseguinte, se o título não é apto para a aquisição de certo direito real, seu efeito, que é o modo, não se produz. Se, não obstante, se pretende a execução do título inadequado, utilizando-se o modo de adquirir, essa utilização mão tem a virtude de tornar apropriado o que era inábil.

20. Na constituição do direito real de enfiteuse, que recai ùnicamente sôbre bens de raiz, a distinção entre modo da adquirir e titulus adquirendi se mostra com bastante nitidez. O contrato enfitêutico é o título. A inscrição no registro, o modo. Completam-se. A enfiteuse não se constitui sem o título e sem o modo. Não basta contratar. O contrato é simplesmente a razão de ser do direito que se adquirirá com a inscrição no registro. Mas, do mesmo modo, a inscrição deve ter por fundamento o contrato que tenha por objeto a constituição do direito real de enfiteuse. Se a sua causa jurídica inexiste ou é falsa, evidentemente não se constitui. No caso, o título inscrito, ou transcrito, foi, por configuração decorrente de imperativo legal, um contrato de arrendamento, que não é causa jurídica adequada à constituição da enfiteuse. Logo, não é possível admitir que se constituiu, apesar de se ter usado o modo pelo qual se adquire êsse direito real.

21. Portanto, o contrato de arrendamento – que foi o estipulado pelas partes – não pode ser considerado justo título para a aquisição da enfiteuse, por isso que não é causa jurídica de sua constituição. E, se não é meio hábil para dar nascimento a êsse direito real, intuitivamente afasta a possibilidade de vir a ser adquirido por usucapião.

Enfiteuse X Usucapião

22. Desde que não admitimos que a enfiteuse possa se constituir por usucapião com fundamento em um contrato de arrendamento, perde todo sentido a questão que consiste em saber se o título deve ser inscrito ou transcrito. Pouco importa. A inscrição ou a transcrição, qualquer que tenha sido, foi formalidade anódina. O registro imobiliário não possui a virtude de modificar a natureza das coisas. O título de aquisição de um direito não se transforma porque tenha sido registrado como se fundamentasse a aquisição de direito diverso. O efeito não substitui a causa. Se o modo de adquirir é, como visto, a execução do titulus adquirendi, não lhe pode atribuir outro valor que não o decorrente da natureza dêste, na qual, como repisado, se encontra o fundamento do direito. Assim, a formalidade da transcrição, ou da inscrição, desde que não correspondeu a uma exigência legal, que é feita ùnicamente para os títulos constitutivos de direito real, não pode subsistir como ato capaz de constituí-lo.

23. Em cláusula contratual de têrmos insuscetíveis de dúvida, convencionaram as partes que o proprietário do terreno teria o direito irrestrito de vender ou hipotecar o bem que é objeto do contrato.

Como locador, era supérflua a ressalva. Como senhorio, ilegal.

24. Na discussão do projeto do Código Civil, ANDRADE FIGUEIRA bateu-se estrênuamente por que as regras disciplinadoras da enfiteuse tivessem caráter supletivo. Dizia êle não ver razão para que o projeto tão inconvenientemente quebrasse a tradição do direito português e modelasse o direito enfitêutico sôbre regras fatais, inquebrantáveis, como se se tratasse da segurança do Estado e não de um contrato que deve ficar à deliberação das partes contratantes (“Trabalhos da Comissão Especial da Câmara dos Deputados”, vol. V, pág. 258). Apesar de sua oposição, prevaleceu a orientação contrária. As disposições do Código sôbre a enfiteuse são de caráter imperativo. Dêsse modo, o art. 684 não pode ser alterado pela vontade das partes. Segundo êsse preceito, é assegurado ao foreiro o direito de preferência no caso de querer o senhorio vender o domínio direto ou dá-lo em pagamento. O dispositivo foi tomado do Cód. Civil português, esquecendo-se o legislador, porém, de estabelecer a sanção para a sua inobservância, como fêz a lei lusitana. Não obstante, as partes contratantes não podem eliminar o direito de opção do foreiro. Cláusula que o fizesse seria insubsistente.

Dêsse modo, se fôra enfitêutico o contrato, a disposição que reservou para o dono do terreno a faculdade de vendê-lo, sem restrição, isto é, sem afrontar o foreiro, seria nula de pleno direito.

25. Desde, porém, que não é de aforamento o contrato, tal cláusula, num arrendamento, pode ser admitida como preocupação de esclarecer que o dono do terreno não se considerava senhorio.
Mesmo, porém, que não tivesse êsse propósito, não seria suficiente para inferir-se que a introdução de norma sôbre a alienação do bem atesta a intenção de constituir enfiteuse, contrariando, embora, o preceito legal específico.

Parece-me, em conseqüência, que o dono do terreno tinha, como tem, o direito de vendê-lo a terceiro sem prévio aviso a seu ocupante. Essa obrigação corre, ao senhorio, não ao locador. Se é arrendamento, não se aplica a norma contida no art. 683 do Cód. Civil, a que faz remissão o art. 684 do mesmo Código.

26. Se, por outro lado, nada impede que, num contrato de locação, o locador conceda ao locatário o direito de opção, no caso de venda, igualmente dado lhe é declarar, embora redundantemente, que se reserva o direito de alienar o bem sem dar satisfação ao locatário (utile per inutile non viciatur).

Pagamento do fôro

27. O pagamento do fôro é uma obrigação essencial do enfiteuta. A inexistência dêsse ônus desfigura o instituto.

Admitindo ùnicamente as enfiteuses perpétuas, o Cód. Civil estabeleceu que o fôro ou pensão deve ser anual, certo e invariável. A possibilidade de ser alterado, por majoração ou diminuição, outrora admitida, ocorria por decorrência de duas particularidades, hoje estranhas à enfiteuse. A primeira, consistia na aceitação legal de enfiteuses temporárias, por vidas, com prazos de nomeação, o que permitia, na hipótese de renovação, que a pensão fôsse majorada, e cobradas, nessa oportunidade, as famosas luctuosas. A segunda, na possibilidade de ser paga a pensão em frutos, hipótese em que se denominava ração a cota era indeterminada (cf. TEIXEIRA DE FREITAS, “Consolidação das Leis Civis”, art. 614, nota 27). Atualmente a enfiteuse não pode ser renovada, em vista da sua perpetuidade, e o fôro deve ser pago necessàriamente em dinheiro.

28. Nestas condições, a renovação de contratos anteriores, com majoração do intitulado fôro, atesta que a relação jurídica não tem a natureza da enfiteuse. Como observam as maiores autoridades no assunto, entre nós, a pensão anual não é, como o aluguel, o preço dos frutos e vantagens que o ocupante extrai do bem. O seu fim é “compensar a cessão do imóvel para ser aproveitado pelo enfiteuta” (cf. LAFAYETTE e LACERDA DE ALMEIDA). Por isso, deve ser módica, em quantia certa de dinheiro. Se é paga em quantia incerta, que varia ou pode variar, fôro não é. E, como os requisitos de certeza e invariabilidade da pensão integram o conceito de enfiteuse exarado no art. 678 do Cód. Civil, a sua falta, em relação jurídica que aparentemente se apresenta como enfiteuse, basta para descaracterizá-la como tal.

À vista do exposto, a resposta aos quesitos é a seguinte:

1º O contrato por tempo Indeterminado, pelo qual o proprietário de terreno baldio cede o uso e gôzo dêsse bem, mediante retribuição, é de arrendamento, quaisquer que sejam os traços que o assemelhem à enfiteuse. A razão é clara e decisiva. No direito em vigor só se admitem aforamentos perpétuos. Se temporários, consideram-se arrendamento (Código Civil, art. 679). Todo contrato com duração indeterminada é temporário. Não pode haver, portanto, enfiteuse por prazo incerto, do mesmo modo que não existe por tempo determinado. Numa e na outra hipótese, êsses contratos têm duração limitada. Por fôrça de lei, são, conseqüentemente, contratos de arrendamento.

2º A regra de interpretação dos contratos, condensada no art. 85 do Cód. Civil, é inaplicável quando a intenção das partes se manifesta por forma que contraria a configuração legal da relação jurídica que pretenderam criar. Se a lei não admite a enfiteuse temporária, considerando-a simples arrendamento, a vontade das partes não se sobrepõe à determinação legal. A ninguém sendo lícito ignorar a lei, não prevalece uma intenção que legalmente não pode ser objetivada.

3º Se o contrato, por imperativo legal, há de ser considerado de arrendamento, não constitui justo título para a aquisição do direito real de enfiteuse pelo usucapião ordinário. O titulus adquirendi é a causa jurídica da transmissão de um direito. É preciso, portanto, que seja hábil. Um contrato de locação, òbviamente, não é título hábil para a aquisição do direito de enfiteuse. No usucapião ordinário, além dos outros requisitos, é indispensável o justo título. Como só se consuma pela conjunção de todos os requisitos, a falta de um é suficiente para impossibilitá-lo.

4° Não importa que o contrato de arrendamento tivesse sido transcrito ou inscrito no registro imobiliário. A transcrição é modo de adquirir os direitos reais. Lògicamente, deve fundar-se em causa jurídica adequada, própria, conforme. Se o título não é hábil para a aquisição do direito, o modo é igualmente impróprio, sem afetar, contudo, a natureza da relação jurídica, nem para invalidá-la, nem para transformá-la.

5º Desde que o contrato é de arrendamento, não se lhe aplica o disposto no art. 684 do Cód. Civil. O direito de preferência do ocupante de terras, no caso de sua alienação pelo dono, constitui prerrogativa que a lei confere exclusivamente ao foreiro como contrapartida do direito de prelação outorgado ao senhorio. Pode, pois, o locador vender o terreno arrendado, livremente, tanto mais quanto o reservou de modo expresso, supérfluo, aliás.

6º Por lei, a pensão do foreiro deve ser certa e invariável. Pensão que se majora, mediante sucessivas renovações do contrato, não é fôro, na acepção legal do têrmo. A invariabilidade é requisito essencial à caracterização da prestação que incumbe ao enfiteuta. Se o indigitado fôro é variável, descaracteriza a enfiteuse.

S. M. J. é o que me parece.

Salvador, fevereiro de 1954. –

I) Normas técnicas para apresentação do trabalho:

  1. Os originais devem ser digitados em Word (Windows). A fonte deverá ser Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm entre linhas, em formato A4, com margens de 2,0 cm;
  2. Os trabalhos podem ser submetidos em português, inglês, francês, italiano e espanhol;
  3. Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
  4. A folha de rosto do arquivo deve conter o título do trabalho (em português – ou inglês, francês, italiano e espanhol) e os dados do(s) autor(es): nome completo, formação acadêmica, vínculo institucional, telefone e endereço eletrônico;
  5. O(s) nome(s) do(s) autor(es) e sua qualificação devem estar no arquivo do texto, abaixo do título;
  6. As notas de rodapé devem ser colocadas no corpo do texto.

II) Normas Editoriais

Todas as colaborações devem ser enviadas, exclusivamente por meio eletrônico, para o endereço: revista.forense@grupogen.com.br

Os artigos devem ser inéditos (os artigos submetidos não podem ter sido publicados em nenhum outro lugar). Não devem ser submetidos, simultaneamente, a mais do que uma publicação.

Devem ser originais (qualquer trabalho ou palavras provenientes de outros autores ou fontes devem ter sido devidamente acreditados e referenciados).

Serão aceitos artigos em português, inglês, francês, italiano e espanhol.

Os textos serão avaliados previamente pela Comissão Editorial da Revista Forense, que verificará a compatibilidade do conteúdo com a proposta da publicação, bem como a adequação quanto às normas técnicas para a formatação do trabalho. Os artigos que não estiverem de acordo com o regulamento serão devolvidos, com possibilidade de reapresentação nas próximas edições.

Os artigos aprovados na primeira etapa serão apreciados pelos membros da Equipe Editorial da Revista Forense, com sistema de avaliação Double Blind Peer Review, preservando a identidade de autores e avaliadores e garantindo a impessoalidade e o rigor científico necessários para a avaliação de um artigo.

Os membros da Equipe Editorial opinarão pela aceitação, com ou sem ressalvas, ou rejeição do artigo e observarão os seguintes critérios:

  1. adequação à linha editorial;
  2. contribuição do trabalho para o conhecimento científico;
  3. qualidade da abordagem;
  4. qualidade do texto;
  5. qualidade da pesquisa;
  6. consistência dos resultados e conclusões apresentadas no artigo;
  7. caráter inovador do artigo científico apresentado.

Observações gerais:

  1. A Revista Forense se reserva o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores.
  2. Os autores assumem a responsabilidade das informações e dos dados apresentados nos manuscritos.
  3. As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade.
  4. Uma vez aprovados os artigos, a Revista Forense fica autorizada a proceder à publicação. Para tanto, os autores cedem, a título gratuito e em caráter definitivo, os direitos autorais patrimoniais decorrentes da publicação.
  5. Em caso de negativa de publicação, a Revista Forense enviará uma carta aos autores, explicando os motivos da rejeição.
  6. A Comissão Editorial da Revista Forense não se compromete a devolver as colaborações recebidas.

III) Política de Privacidade

Os nomes e endereços informados nesta revista serão usados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.


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