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Nota relativa à pandemia de coronavírus e suas repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil

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Bruno Miragem

Bruno Miragem

27/03/2020

A escala de contaminação pela doença do coronavírus (COVID-19), causado pela síndrome respiratória aguda grave coronavírus 2 (SARS-CoV-2), deu causa à declaração, pela Organização Mundial da Saúde, de uma pandemia, em razão de alastrar-se por todos os continentes do planeta. No Brasil, a Portaria nº 188, de 3 de fevereiro de 2020, do Ministério da Saúde, declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional, cabível em situações que demandem o emprego urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública, nos termos do art. 2º do Decreto 7.616/2011, em razão de situação epidemiológica.[1] Em seguida, a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispôs sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.

Trata-se de uma situação reconhecidamente excepcional, cujas repercussões sociais e econômicas, bem como as restrições à liberdade e propriedade individual não encontram paralelo na história brasileira recente. Associam-se a adoção de comportamentos voluntários, com o estímulo das autoridades, dos especialistas em saúde e dos meios de comunicação, visando prevenir e atenuar a velocidade de transmissão da doença, reduzindo a circulação e aglomeração de pessoas, ampliando a permanência das pessoas, o quanto possível, em suas residências, e retardando ou suspendendo decisões negociais em diversos âmbitos de sua atuação. Por outro lado, o Poder Público vem adotando medidas de polícia administrativa, determinando restrições de funcionamento de diversas atividades e estabelecimentos empresariais, suspensão temporária da prestação de serviços públicos e privados, dentre outras iniciativas.

O impacto destas medidas sobre amplos setores da economia é perceptível. Apenas para dar o exemplo mais visível, no transporte aéreo e no turismo a redução, cancelamento ou adiamento de viagens e eventos já repercutem de modo intenso.[2] Em relação aos serviços privados e públicos de saúde – para o qual se dirige parte significativa do esforço coletivo, de modo a permitir que possa preservar sua capacidade de atendimento quando do aumento do número de pessoas infectadas no país –traçam-se estratégias para enfrentar o ápice da contaminação, sem deixar de antecipar a dificuldade de que isso se dê a contento. O consumo como um todo é afetado pela redução da atividade econômica e a incerteza sobre as medidas, seja o tempo de sua duração, ou a intensidade em que devam ser adotadas.

Estes fatos geram impactos de toda ordem nas relações obrigacionais. No âmbito dos contratos já celebrados, de trato sucessivo ou diferido no tempo, há questões relativas às dificuldades do seu cumprimento, e danos que possam resultar, a exigir respostas do direito obrigacional, tanto na perspectiva do direito privado geral, quanto das situações especiais que podem ter lugar, tanto nas relações interempresariais, quanto nas relações de consumo.

A pandemia e o cumprimento dos contratos

A pandemia do coronavírus, suas repercussões sociais e econômicas, e as medidas de polícia editadas pelo Poder Público para seu enfrentamento, são circunstâncias a que se submetem os particulares, sem que possam evitá-las. Tratando-se de indivíduos que celebraram contratos, tendo por pressuposto determinada realidade fática que veio a ser substancialmente alterada, de modo a dificultar ou impedir seu cumprimento posterior, devem incidir as soluções previstas na legislação para tais situações. Porém, é preciso distinguir, em relação a contratos cujos efeitos se projetam no tempo, aqueles cujo objeto compreende prestações sucessivas ou periódicas, e os de simples diferimento entre o momento da sua celebração e o da realização da prestação, de que modo a pandemia perturba a relação contratual.

Há situações em que, em razão das medidas adotadas pelo Poder Público ou por particulares, torna-se impossível o cumprimento (por exemplo, a locação de uma casa noturna para realização de evento, que não poderá ocorrer em razão da proibição expressa da municipalidade ou do Estado de que ocorra em determinado período). Em outras, não há uma impossibilidade caracterizada desde logo, mas incerteza quanto à possibilidade no momento da execução porvir, como é o caso recorrente de quem tenha adquirido passagens aéreas para viagens em data futura próxima, para destinos em que medidas de polícia local restringem ou impedem o ingresso pessoas no território (fechamento de fronteiras). Uma terceira situação é de contratos celebrados e em execução, sobre os quais a pandemia do coronavírus e as circunstância fáticas a que dá causa, repercutem na expectativa de cumprimento da prestação ajustada de um determinado modo, em consideração à natureza e finalidade do contrato.

Impossibilidade de cumprimento

A impossibilidade de cumprimento pode ser definitiva ou temporária. No primeiro caso, há obstáculo à realização da prestação que não deve desaparecer ou se atenuar com a fluência do tempo. No segundo caso, a impossibilidade se circunscreve a certo período, indicando que poderá ainda ser realizada, mas não no prazo originalmente previsto.[3] Da mesma forma, pode ser absoluta ou relativa, de modo que, no primeiro caso, extingue a obrigação e libera o devedor; na segunda, há dificuldade ou onerosidade da prestação, o que mantém o devedor vinculado e responsável pelo cumprimento.

Há contratos em que os fatos decorrentes da repercussão da pandemia de coronavírus tornam impossível o cumprimento. Tais fatos, tanto podem ser decorrentes das medidas de polícia adotadas pelo Poder Público e às quais se subordinam os particulares, quanto a repercussão do seu comportamento razoável, visando reduzir a exposição ao risco de contágio, como ocorre com a suspensão de determinadas atividades, independentemente de determinação estatal. São, como regra, situações que os contratantes não podem impedir ou evitar, caracterizando-se hipótese de caso fortuito ou de força maior, previsto no art. 393, parágrafo único, do Código Civil: “O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. São consequências da caracterização do caso fortuito ou de força maior: a) a ausência de responsabilidade do devedor pelo inadimplemento a que tenha dado causa (art. 393, caput, do Código Civil); e b) a resolução dos contratos a que tenha tornado impossível o cumprimento (arts. 234, 248 e 250 do Código Civil). A resolução dá causa à extinção dos efeitos do contrato e, dentro do possível, a restituição das partes ao estado anterior.

No caso de contratos que não possam ser cumpridos em razão de fatos inevitáveis pelos contratantes, em decorrência da pandemia de coronavírus e das suas consequências (medidas adotadas pelo Poder Público ou por terceiros), esta será a solução aplicável. Em casos nos quais uma das partes tenha realizado o pagamento da sua prestação, sendo credora da contraprestação, a eficácia de resolução implica a restituição do que foi pago, extinguindo-se o contrato, sem responsabilidade do devedor que não cumpriu porque não pôde.

Em contratos duradouros, a impossibilidade de cumprimento pode ser transitória. Nestes casos, as partes tem direito à resolução, se esta for do seu interesse, ou podem manter o vínculo, reajustando em comum acordo o conteúdo da prestação devida. É o caso de escolas cujas aulas tenham sido suspensas, ou prestadores de serviço cuja atividade seja impedida ou restringida pelas medidas de polícia administrativa, o que pode envolver tanto contratos de consumo, como contratos civis ou empresariais. Neste caso, destaca-se a utilidade das regras de interpretação do negócio jurídico presentes no Código Civil, recentemente alteradas pela Lei 13.874/2019. Em especial, as que referem que a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que corresponder à boa fé (art. 113, §1º, III), e “a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.” (art. 113, §1º, V).

Incerteza de cumprimento ou de utilidade da prestação

As repercussões da pandemia de coronavírus vem dando causa a uma segunda situação comum em relação aos contratos já celebrados, que diz respeito à incerteza sobre o cumprimento. No caso de contratos cuja prestação ainda não seja exigível, porque fixado seu cumprimento até ou em certa data, o fato de não ser possível determinar o termo final para os esforços de enfrentamento à pandemia, bem como o período de vigência das medidas de polícia atuais ou a necessidade de adoção de outras providências pelo Poder Público no futuro, dão origem à incerteza quanto à possibilidade de cumprimento no momento em que ajustada a realização da prestação.

A incerteza de cumprimento tem solução prevista pelo Código Civil, por intermédio da denominada exceção de inseguridade (ou insegurança), prevista no art. 477, mas que restringe-se às situações em que a diminuição do patrimônio do devedor dá causa à dúvida sobre sua capacidade de cumprir – o que, salvo situações específicas, não é o caso das situações causadas pela pandemia. Uma extensão do conceito pode ser admitida, por interpretação, para admitir outras circunstâncias que não apenas a redução do patrimônio do devedor como causa de dúvida sobre o cumprimento, de modo a abranger as repercussões da pandemia no tempo. Nestes casos, permitindo a antecipação do cumprimento ou a resolução do contrato.

Outra situação é a do denominado inadimplemento antecipado, que no direito brasileiro não conta com previsão legal expressa, mas resulta de elaboração doutrinária baseada nos efeitos da boa-fé, e por analogia ao art. 477 do Código Civil. É geralmente tratada a partir do exame do comportamento do devedor, anterior ao vencimento da obrigação, que permite ao credor concluir pela impossibilidade de adimplemento futuro da prestação. Como bem registrou Ruy Rosado de Aguiar Júnior, é a quebra da confiança sobre o futuro adimplemento.[4] Ainda que tal hipótese seja invocada, tradicionalmente, mediante identificação do comportamento culposo do devedor (é o seu comportamento que que coloca em dúvida o cumprimento futuro), nada impede que de fatos estranhos às partes gere a mesma dúvida (como é o caso daqueles relacionados às repercussões da pandemia), deles resultando o direito de resolução, com retorno das partes, tanto quanto possível, ao estado anterior ao contrato (com a restituição de prestações já realizadas).

Tais soluções tem especial utilidade tanto em contratos civis e empresarias, nos quais a capacidade de cumprimento da prestação no futuro (entrega de mercadorias, prestação de serviços especializados) é colocada em dúvida, quanto contratos de consumo, como é o caso do transporte aéreo, pacotes turísticos, locações ou contratação de serviços para eventos ou festas familiares, dentre outros, tornam-se incertos. Neste último caso, não há necessariamente vício do serviço, a dar causa à responsabilidade do fornecedor (art. 20 do Código de Defesa do Consumidor), que, porém, não se exonera de deveres acessórios decorrentes do próprio contrato ou da legislação (deveres de informação e esclarecimento, de atendimento conforme normas regulatórias do setor, p. ex.) e os aqueles que resultem da própria incidência da boa-fé.

Além da incerteza sobre o cumprimento futuro, acrescenta-se a própria incerteza sobre a própria utilidade da prestação, o que abre a possibilidade, igualmente, de revisão do contrato. A partir de sua origem mais distante, da teoria da pressuposição de Windscheid,[5] pela qual a manifestação de vontade dos contratantes se dá em vista de pressuposições que, uma vez alteradas, permitem exonerá-los do que foi pactuado, e seu ulterior desenvolvimento, pela teoria da quebra da base do negócio jurídico, de Karl Larenz,[6] merece reconhecida atenção doutrinária e jurisprudencial no direito brasileiro, em especial nos contratos de consumo (art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor).[7] Em relação aos contratos civis e empresariais, onde é diversa a distribuição dos riscos do contrato, é de admitir que as circunstâncias e repercussões da pandemia do coronavírus permitam, de acordo com o exame do seu impacto concreto nas relações contratuais em curso, a aplicação da teoria da imprevisão para revisão do contrato (art. 317 do Código Civil), ou de modo a permitir sua resolução por onerosidade excessiva, conforme o caso (art. 478 do Código Civil).[8] Sob certas condições, pode discutir-se o direito de renegociação, baseado na boa-fé e na conservação do negócio jurídico. Não se excluam, ainda, situações excepcionais em que o incumprimento dos contratos tomados individualmente, possa repercutir em todo o sistema de contratos a ele associados, fomentando a possibilidade de renegociação pelas partes ou sua modificação fundada na exceção da ruína.[9]

Expectativa legítima de cumprimento

As repercussões da pandemia de coronavírus também se produzem em relação à expectativa de cumprimento de determinados contratos, e sua eventual frustração. No caso dos contratos de seguro, os efeitos da pandemia sobre uma diversidade de garantias contratadas podem ser distintos. Nos seguros de pessoas celebrados no Brasil (em especial, no seguro sobre a vida), é recorrente a cláusula de exclusão da cobertura securitária (riscos excluídos) de morte causada por epidemias e pandemias declaradas por autoridade competente, o que é o caso. Seu fundamento legítimo é evitar que eventos cuja extensão imprevista supere de modo expressivo o cálculo do risco originalmente definido pela técnica atuarial, comprometa a solvência do segurador. Até o momento, o número de mortes em razão da pandemia no mundo, não parece comprometer a solvência de seguradores e, menos ainda, de resseguradores. Na perspectiva de segurados e beneficiários do seguro de vida (e também dos seguros viagem, considerados contratos de consumo) pode sustentar-se a pretensão ao pagamento da indenização eventual, mesmo com a presença da cláusula em questão, em razão de vício de informação sobre riscos excluídos no momento da contratação, gerando a expectativa de cumprimento nos termos da oferta (arts. 30 c/c 46 do Código de Defesa do Consumidor). Em outros seguros, especialmente empresariais, eventual exclusão de cobertura de riscos de pandemia, previstos expressamente na apólice, tendem a afastar expectativa de cumprimento do contrato de modo diverso.

Outra é a situação dos planos de assistência à saúde. A opção do legislador brasileiro é de assegurar a cobertura, por intermédio de um plano-referência, às “doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde” (art. 10 da Lei 9.656/1998), o que ora inclui a causada pelo coronavírus. A exceção feita pela lei aos “casos de cataclismos, guerras e comoções internas, quando declarados pela autoridade competente” (art. 10, inciso X), não afasta ou restringe a cobertura em questão. Tratando-se do objeto principal do contrato a assistência à saúde e os riscos a ela inerentes, é de exigir-se interpretação que preserve a própria causa do contrato, bem como que se interprete restritivamente as exceções à regra geral.[10] Há, portanto, expectativa legítima de cumprimento do contrato por parte dos consumidores dos planos de assistência à saúde, tutelada pelo Direito. Neste sentido, inclusive, corretamente decidiu a Agência Nacional de Saúde Suplementar ao já incluir o exame para detecção do coronavírus no rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituem a referência básica de cobertura obrigatória, nos termos da lei (Resolução Normativa n. 453, de 12 de março de 2020).

A pandemia e os preços de produtos e serviços

A formação de preços de mercado, para produtos e serviços, submete-se à racionalidade expressa pela conhecida lei econômica da relação entre oferta e demanda. Com o devido cuidado, entretanto, para assegurar a intervenção constitucionalmente definida para a proteção do consumidor (artigo 5º, XXXII e artigo 170, V, da Constituição), e da livre concorrência (artigos 170, IV, e 173 da Constituição).

Uma das repercussões da instabilidade social causada pela pandemia do coronavírus pode ser a elevação de preços de produtos em razão do aumento da demanda. O Código de Defesa do Consumidor relaciona entre as práticas abusivas, vedadas ao fornecedor, a elevação sem justa causa de preços (art. 39, X), regra cuja origem tem sede nas normas de proteção à livre concorrência. [11] Todavia, não se confunde com a de aumento arbitrário de lucros previsto na legislação concorrencial, nem pressupõe a existência de abuso de posição dominante.

Conforme sustenta a doutrina “em princípio, numa economia estabilizada, elevação superior aos índices de inflação gera uma presunção – relativa, é verdade – de carência de justa causa”. [12] Em um regime de livre-iniciativa, contudo, a ausência de controle direto de preços não permite que se impeça o fornecedor de readequar os preços de seus produtos e serviços, inclusive para – se entender correto – aumentar sua margem de lucro. Há abuso quando ao lado do aumento excessivo (elemento quantitativo) isso se dê de forma dissimulada (elemento qualitativo), de modo a evidenciar o aproveitamento da posição dominante frente ao consumidor (desigualdade de posição contratual), caracterizando-se deslealdade negocial que deve ser investigada e demonstrada caso a caso.

Pandemia e responsabilidade civil

A pandemia de coronavírus repercute também sobre a responsabilidade civil. São variadas as situações que podem ser objeto de exame. Dadas as características da doença e seu modo de contágio, não se cogita da responsabilização individual da pessoa enferma, pela contaminação de outras pessoas, uma vez impossível a determinação do nexo de causalidade nos casos de contágio por vírus que transmitem pelo ar. Quando se identifique comportamento doloso, há sanção penal (art. 131, do Código Penal).[13] Frente às medidas de polícia, contudo, em relação a pessoas cujas atividades estejam restringidas também tem lugar sanção penal em caso de descumprimento (art. 268 do Código Penal),[14] sem prejuízo das sanções administrativas. Eventual responsabilidade civil nestes casos, não se firma, como regra, para a reparação de danos individuais, frente a dificuldades de demonstração do dano concreto pela vítima. No plano coletivo, contudo, a exposição ao risco de contágio ou sua facilitação são suscetíveis de caracterizar danos a um grupo de pessoas ou à coletividade (art. 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor).

Duas situações, contudo, merecem atenção. As hipóteses de responsabilidade do Estado por danos aos particulares e do fornecedor em relação a danos causados ao consumidor.

Responsabilidade do Estado por danos aos particulares

No tocante à responsabilidade do Estado por danos aos particulares, observe-se, inicialmente, que a imposição de medidas de polícia, restringindo a liberdade e a propriedade, em proteção da coletividade, tem fundamento legal. A imposição de medidas como isolamento, quarentena, realização compulsória de exames, testes e tratamentos, dentre outras (art. 3º da Lei 13.979/2020), observam, nestes termos, os limites fixados na norma, em acordo com os direitos fundamentais. O mesmo se diga em relação à suspensão e interdição de atividades, objeto de normas municipais e estaduais sob a mesma justificativa. Não responde, o Estado, pelos danos causados por estas medidas excepcionais, a não ser quando demonstrado que em sua aplicação, houve, desvio de finalidade ou excesso de poder, ou mesmo quando se verifiquem desproporcionais em situações concretas, em vista da finalidade a ser atendida.

Todavia, pode responder o Estado por omissão na adoção de medidas específicas, inclusive aquelas que decorram da aplicação de determinações por ele próprio expedidas, quando demonstrado que do seu comportamento resulta danos. Neste caso, todavia, é necessário demonstrar a omissão específica do agente,[15] que tendo o dever de atuar não o faz, dando causa, por conta deste comportamento a um dano concretamente aferível.

Os esforços de contenção e retardamento dos efeitos da pandemia no Brasil – a exemplo de outros países – vem sendo adotados, dentre outras razões, pela incapacidade do sistema de saúde para atendimento simultâneo a um número elevado de casos, em especial, no caso de manifestações agudas da doença. Eventual insuficiência ou ausência da prestação adequada de serviço público de saúde a pessoas pode dar causa à responsabilidade do Estado? Em termos gerais, a pandemia é causa extraordinária (caso fortuito ou de força maior), que afasta a responsabilidade do Estado pelo dano, segundo os esforços que lhe são exigíveis, em vista da impossibilidade concreta de evitar seu resultado. Apenas quando demonstrada omissão específica em relação à providência que era possível ter sido adotada para evitar o dano (p.ex. a situação em que o serviço poderia ter sido prestado adequadamente, mas não o foi por desídia ou erro no atendimento ao paciente), deve-se cogitar de responsabilidade do Estado pelo dever de indenizar (nos termos do art. 37, §6º, da Constituição da República).

Responsabilidade do fornecedor por danos ao consumidor

Nos acidentes de consumo, o entendimento dominante, embora não expresso na lei, é de que o fornecedor não responde, perante o consumidor, por danos causados por caso fortuito ou de força maior (regime do fato do produto ou do serviço). No regime geral dos contratos, já se demonstrou que a impossibilidade de cumprimento em razão das repercussões da pandemia de coronavírus exclui, como regra, a responsabilidade do devedor. Nos contratos de consumo, a impossibilidade de cumprimento por fato não imputável ao fornecedor apenas em certos casos submete-se ao regime de responsabilidade pelos vícios de produto ou do serviço (arts. 18 a 20 do Código de Defesa do Consumidor). Quando não se trata de inadequação ou impropriedade, mas de impossibilidade ou incerteza quanto à prestação, embora seja possível reconduzir, em certas situações específicas, ao regime especial dos vícios (enquanto vícios da prestação), é de rigor trabalhar com as categorias próprias do regime de responsabilidade por inadimplemento da obrigação.

Contudo, se tenha em vista que é nas relações de consumo onde se desenvolveu primeiro –  no direito brasileiro – a noção doutrinária assentada da obrigação como totalidade, compreendendo o exame da relação entre os contratantes não apenas em vista do dever principal de prestação (o produto ou o serviço), mas também de outros deveres definidos por lei ou decorrentes da boa-fé, em vista do comportamento concreto das partes. Há, na relação de consumo, deveres acessórios e anexos reconhecidos, que não dependem, necessariamente, da possibilidade ou não de cumprimento da prestação principal. O exemplo mais candente, nas situações geradas pela pandemia do coronavírus, diz respeito ao contrato de transporte aéreo.

O cancelamento ou retardamento de voos ordenado por medidas de polícia é hipótese clara de impossibilidade por fato não imputável ao transportador.[16] Isso não o exonera, contudo, dos deveres acessórios em relação aos passageiros, como é o caso de providenciar hospedagem e alimentação pelo período da interrupção, e de concluir o transporte por outro meio. O que aliás não apenas exsurge do dever genérico de qualidade do serviço previsto no Código de Defesa do Consumidor, como também de regras específicas do contrato de transporte (art. 741 do Código Civil)[17] tomando como obrigação de resultado.[18] A violação deste deveres, que independem da prestação principal, geram responsabilidade do fornecedor.

O mesmo se diga, quanto aos contratos de consumo em geral, em relação ao dever de informar do fornecedor. A impossibilidade ou dificuldades de realização da prestação ajustada em razão das repercussões da pandemia de coronavírus, bem como os meios de mitigar os prejuízos ao consumidor, devem ser objeto de informação clara, adequada e oportuna por parte do fornecedor, sob pena de sua responsabilização.

Breves conclusões

Os efeitos da pandemia do coronavírus sobre as relações obrigacionais, tanto no âmbito das relações civis e empresariais, quanto nas relações de consumo provocam o exame dos institutos atinentes à perturbação das prestações e da impossibilidade de cumprimento dos contratos. Frente a uma realidade de riscos excepcionais, a preservação do interesse das partes no contrato rivaliza com as exigências de interesse público, representado pelas medidas de polícia e suas consequências sociais e econômicas.

Por outro lado, destaca-se a disciplina legal de uma série de relações jurídicas previstas no Código Civil, no Código de Defesa do Consumidor e em outras leis, exigindo sua interpretação em acordo com a situação na qual a impossibilidade do cumprimento dos contratos, ou as situações sobre as quais incidem as balizas da responsabilidade por danos, embora transitórias, podem ser de grave repercussão ao interesse das partes envolvidas.

Tais circunstâncias exigem do intérprete o exame da disciplina destas várias relações jurídicas envolvidas, articulando a incidência das diversas leis incidentes, emprestando-lhes sentido útil ao interesse das partes envolvidas e do interesse público a ser preservado no enfrentamento da pandemia.

Crédito da imagem: Pixabay


[1] O art. 2º, §1º, do Decreto 7.616/2011 define que: Consideram-se situações epidemiológicas, para os fins de aplicação do inciso I do caput, os surtos ou epidemias que:I – apresentem risco de disseminação nacional; II – sejam produzidos por agentes infecciosos inesperados; III – representem a reintrodução de doença erradicada; IV – apresentem gravidade elevada; ou V – extrapolem a capacidade de resposta da direção estadual do Sistema Único de Saúde – SUS.

[2] Tanto assim, que a União editou, em 18 de março de 2020, a Medida Provisória 925/2020, dispondo sobre medidas emergenciais para o setor aéreo, e definindo em seu art. 3º que “O prazo para o reembolso do valor relativo à compra de passagens aéreas será de doze meses, observadas as regras do serviço contratado e mantida a assistência material, nos termos da regulamentação vigente.” (art. 3º). Da mesma forma, estabelece que “os consumidores ficarão isentos das penalidades contratuais, por meio da aceitação de crédito para utilização no prazo de doze meses, contado da data do voo contratado.” (art. 3º, §1º). Tais disposições aplicam-se a contratos de transporte aéreo firmados até 31 de dezembro de 2020 (art. 3º, §2º). Tratando-se dos contratos já celebrados, a norma, com eficácia de lei, vê-se que com a finalidade de preservar a atividade econômica do setor aéreo, excetua o ato jurídico perfeito e seus efeitos (art. 5º, XXXVI, da Constituição da República), colocando em destaque os limites as garantias constitucionais a serem observados em situações emergenciais.

[3] Bruno Miragem. Direito civil: direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 494.

[4] Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: Aide, 2004, p. 128.

[5] Bernhard Windscheid, Lehbruch des pandektenrechts, Bd 1. 6. Aufl, Frankfurt, 1887, p. 394. Antes dele, identificando que não se tratava de exonerar-se do vínculo assumido, mas admitindo sua modificação em face da alteração das circunstâncias: Augustin Von Leyser, Meditationes ad pandectas, v. 7. Leipzig, 1744, p. 843

[6] Base do negócio jurídico entendida como “o conjunto de circunstâncias e estado de coisas cuja existência ou subsistência é objetivamente necessária para que o contrato, segundo o significado que ele dá a ambos os contratantes, possa subsistir como uma relação dotada de sentido”, conforme Karl Larenz, Base del negocio jurídico y cumplimiento de los contratos. Trad. Carlos Fernández Rodríguez. Granada: Editorial Comares, 2002, p. 95. Antes dele, sustentando a base subjetiva do negócio e a Paul Oertmann, Die Geschäftsgrundlage: Ein neuer Rechtsbegriff, Leipzig, Deichert W. Scholl, 1921, p. 37

[7] Bruno Miragem, Curso de direito do consumidor. 8ª ed. São Paulo: RT, 2019, p. 296-297 e 322.

[8] Não se perde de vista que na história, em situações emergenciais, a intervenção legislativa teve lugar para dispor sobre efeitos em grande escala do incumprimento dos contratos. O exemplo de maior destaque é a conhecida Lei Faillot, de 21 de janeiro de 1918, na França, dispondo sobre as consequências imprevisíveis aos contratos, em razão da eclosão da I Guerra Mundial (1914-1918), e facilitando sua resolução.

[9] Bruno Miragem, Direito civil: direito das obrigações. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 352.

[10]Exceptiones sunt strictissimae interpretationis. Veja-se: Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 183.

[11] Antônio Herman Benjamin, Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. São Paulo: Forense universitária, 8. ed., 2005, p. 381.

[12] Para detalhes: Bruno Miragem, Curso de direito do consumidor. 8ª ed. São Paulo: RT, 2019, p. 407 e ss.

[13] Prevê o art. 131 do Código Penal, a conduta típica: “Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio”. Pode ser passível de exame o critério para definição da gravidade da doença do coronavírus, o que se pode admitir em vista do risco de morte. Parece não ter lugar, contudo, o tipo do art. 267 do Código Penal (“Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”), considerado a já existência da pandemia, cuja causa, considerado a interpretação estrita dos elementos que integram o tipo, não se pode atribuir a quem facilite ou promova sua propagação.

[14] “Art. 268: Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.

[15] Bruno Miragem. Direito civil: Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 426.

[16] Por outro lado, registre-se o direito do transportador de recusar o transporte de pessoas que apresentem sintomas da doença do coronavírus, considerando o disposto no art. 739 do Código Civil; “O transportador não pode recusar passageiros, salvo os casos previstos nos regulamentos, ou se as condições de higiene ou de saúde do interessado o justificarem.”

[17] “Art. 741. Interrompendo-se a viagem por qualquer motivo alheio à vontade do transportador, ainda que em conseqüência de evento imprevisível, fica ele obrigado a concluir o transporte contratado em outro veículo da mesma categoria, ou, com a anuência do passageiro, por modalidade diferente, à sua custa, correndo também por sua conta as despesas de estada e alimentação do usuário, durante a espera de novo transporte.” No mesmo sentido, o art. 12 da Resolução 400, de 13 de dezembro de 2016, da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC).

[18] Bruno Miragem, Contrato de transporte. São Paulo: RT, 2014, p. 104.


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