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Revista Forense

CLÁSSICOS FORENSE

PENAL

REVISTA FORENSE

Títulos em branco – Nota promissória – Aval – Falsidade ideológica

FALSIDADE IDEOLÓGICA

NOTA PROMISSÓRIA

REVISTA FORENSE

REVISTA FORENSE 152

TÍTULOS EM BRANCO

Revista Forense

Revista Forense

04/08/2022

REVISTA FORENSE – VOLUME 152
MARÇO-ABRIL DE 1954
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto,

Abreviaturas e siglas usadas
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CRÔNICARevista Forense 152

DOUTRINA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

  • A prescritibilidade da ação investigatória de filiação natural – Alcides de Mendonça Lima
  • Inviolabilidade do lar – Sanelva de Rohan
  • Os aumentos de capital e o direito dos portadores de ações preferenciais – Egberto Lacerda Teixeira
  • As sociedade de economia mista e as emprêsas públicas no direito comparado – Arnold Wald
  • Locação total e locação parcial – Eduardo Correia
  • Conceituação do arrebatamento como crime contra o patrimônio – Valdir de Abreu
  • Os quadros de carreira e a equiparação salarial – Mozart Vítor Russomano
  • A situação dos parlamentares que se afastam de seus partidos – Nestor Massena

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

Sobre o autor

João Eunápio Borges, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais.

PARECERES

Título em branco – Nota promissória – Aval – Falsidade ideológica

– O preenchimento abusivo de uma nota promissória, subscrita em branco, constitui defesa de caráter pessoal que o coobrigado, vítima do abuso, pode opor contra o autor do preenchimento e contra qualquer portador de má-fé.

– O gerente é um preposto com amplos poderes de representação; quem com êle trata o faz com o próprio estabelecimento que representa.

– Interpretação do art. 298 do Código Penal.

PARECER

Foi submetida ao meu exame a seguinte consulta:

A. D., residente na cidade de Ouro Fino, sul do Estado de Minas Gerais, necessitando de numerário, conseguiu o aval de B. P. e C. R. em uma nota promissória de Cr$ 24.000,00.

A. D., como emitente do título, levou-o ao Banco Crédito e Comércio de Minas Gerais, S.A., agência de Jacutinga, neste Estado, e aí, por intermédio do gerente, Sr. J. P. S., fêz o desconto do mencionado título de Cr$ 24.000,00.

Vencido o débito, A. D. procurou novamente seus avalistas B. P. e C. R. e, uma vez que, apesar de seu crédito limitado, tinha a confiança dos mesmos para pequenas operações bancárias, alegou que iria reformar o título de Cr$ 24.000,00 com pequena amortização e dêles conseguiu o aval em branco em uma nota promissória que, levada ao Banco citado, na mesma praça, foi preenchida para Cr$ 130.000,00 e descontada por essa importância.

Essa operação se repetiu por diversas vêzes. Vencido o título, A. D. procurava seus avalistas B. P. e C. R., conseguia os avais; levando o título ao Banco, aumentou para Cr$ 450.000,00, depois para Cr$ 650.000,00, duas reformas sem amortização de Cr$ 650.000,00, vencendo-se a último título em 2 de janeiro de 1953.

Surpreendidos com as notícias de suas, responsabilidades, requereram os avalistas um inquérito policial, no qual o emitente do título confirmou detalhadamente as manobras fraudulentas e a alteração da vontade dos avalistas, acrescentando: que tais manobras foram resultantes de um conluio entre êle e o gerente do Banco Crédito e Comércio de Minas Gerais.S.A., agência de Jacutinga, Sr. J. P. S., cabendo a êste último a metade do produto das transações.

Ouvido o gerente J. P. S., êste, como era natural, negou a sua participação no caso, dizendo tratar-se de operação bancária normal.

Apesar da negativa, inúmeros indícios revelam a participação dolosa do gerente, avultando entre os indícios sua prosperidade financeira em curto espaço de tempo, com ordenado exíguo, o que resulta provado por depósitos em bancos e aquisições de imóveis.

O inquérito, segundo tudo indica, concluirá pela conivência do Sr. J. P. S., alinhando o relatório do Dr. delegado os indícios do conluio existente entre A. D., emitente do título, e J. P. S., gerente do Banco emprestador.

O que se deseja saber é:

1. Se, provado o conluio entre A. D. e o gerente e a alteração intencional da vontade dos avalistas, se verifica a falsidade ideológica dos avais.

2. Em caso afirmativo, se o Banco deve ser considerado portador de má-fé, dada a qualidade de preposto desempenhada pelo seu gerente.

3. Se os avalistas podem discutir proveitosamente no executivo que lhes será movido pelo Banco, alegando falsidade ideológica dos avais, má-fé do Banco, decorrente da atuação de seu gerente, e quais as cautelas necessárias e aconselháveis à defesa dos avalistas.

Títulos em branco

1. Juridicamente, a questão proposta reveste-se de extrema simplicidade, e sua solução decorrerá naturalmente da prova dos fatos alegados e da exata observância dos princípios e normas que disciplinam a criação, a circulação e a exigibilidade dos títulos em branco.

2. Admitidos expressamente pela Lei Uniforme de Genebra (art. 10), os títulos em branco sempre foram reconhecidos pela doutrina e pela jurisprudência. Entre nós, apesar das restrições de JOÃO ARRUDA, a legitimidade e a validade dos títulos em branco constituem questão absolutamente pacífica.

3. Será título em branco o papel suscetível de transformar-se em título de crédito, por conter uma ou mais assinaturas cambialmente utilizáveis, seja do emitente, seja do aceitante, seja de avalista ou de qualquer coobrigado (WHITAKER, “Letra de Câmbio”, 4ª ed., ns. 40 e 41; VIVANTE, “Trattato di Diritto Commerciale”, 5ª ed., nº 1.111).

4. Evidentemente, um título em branco, enquanto tal, isto é, enquanto não integrado com todos os requisitos impostos pela lei, é apenas um título de crédito in fieri, em potência, não é ainda um título de crédito.

5. Assim, não será “letra de câmbio” o escrito a que falar qualquer dos requisitos enumerados no art. 1° da Lei Cambial; não será “nota promissória” o escrito a que faltar qualquer dos requisitos enumerados no art. 54 (arts. 2º e 54, § 4º, da Lei Cambial), presumindo a lei, no interêsse de terceiros de boa-fé, que os requisitos essenciais constantes de um título completo foram lançados ao tempo da emissão.

6. Quer isso dizer que, estando completa uma nota promissória, quando exigido o seu pagamento, a lei presume, para os efeitos cambiais, que ela tenha nascido completa, isto é, que as firmas do emitente e de seus avalistas tenham sido lançadas ao tempo da emissão.

7. E, perante um portador de boa-fé, não terão os devedores nenhuma defesa baseada na circunstância de haverem emitido uma nota promissória em branco, isto é, sem os requisitos essenciais a que a lei condiciona a existência e a validade de tais títulos.

Em face do título completo, formalmente válido, é indiferente – quanto aos direitos do portador de boa-fé e quanto à defesa oponível pelos devedores – o fato originário da subscrição em branco.

Sòmente contra os portadores de má-fé, admite a lei qualquer prova em contrário à presunção juris tantum que ela estabelece (arts. 3° e 54, § 4°) de terem sido os requisitos essenciais lançados ao tempo da emissão.

Portador de boa-fé

8. Para o caso em exame é, pois, questão fundamental a determinação de quem seja ou possa ser considerado “portador de boa-fé”.

Fique, assim, bem claro que, ao se referir ao portador de boa ou de má-fé, a lei tem em vista ùnicamente o portador de uma letra completa, aquêle que já a recebeu completa.

“Antes de tudo, e evidentemente, portador de boa-fé é aquêle que recebeu a letra completa, e nenhum motivo teve para suspeitar da sua aparente regularidade”.

“Para êste, o título é o que lhe parece ser, nada podendo contrariar a confiança que nêle porventura depositou” (WHITAKER, ob. cit., nº 51).

Mas, continua WHITAKER:

“Se o portador teve conhecimento de que a letra foi completada posteriormente à emissão, a questão torna-se mais difícil de resolver, porque é então necessário indagar se a letra foi preenchida de acôrdo com a vontade, sem a vontade ou contra a vontade do subscritor”.

9. Resulta, pois, do ensino de WHITAKER – sòlidamente apoiado em nossa lei – que a boa-fé só se presume para o portador que, ao receber uma letra completa, ignorava a circunstância de haver sido subscrita originàriamente em branco. Aos que – embora recebendo-a completa – conhecem a sua origem inicial de título em branco, incumbe o dever de indagar se o preenchimento da letra não foi feito abusivamente por algum de seus antecessores na posse do título. Porque, em tal caso, o subscritor cuja firma foi abusivamente utilizada tem incontestável direito à reparação de seu prejuízo. E “a exceptio doli é, em tal caso, oponível, não só contra o autor direto do abuso e contra os que dêle participaram, como ainda contra os que dêle tiveram oportuno conhecimento” (WHITAKER, obra cit., nº 52).

Má-fé

10. A má-fé pode consistir, pois, no simples conhecimento de que o título foi subscrito em branco, aliado à falta de diligência no informar-se acêrca da extensão e dos limites da verdadeira vontade do subscritor.

No mesmo sentido, sem discrepâncias, a doutrina italiana. Veja-se, por exemplo, a lição de MOSSA:

“La mala fede a riguardo del titolo, rilasciato in bianco, ma acquistato in pieno, può consistere nella semplice conoscenza, o dovere di conoscenza, dell’originaria creazione in bianco, e del riempimento del titolo ad opera dei possessori precedenti.

Codesta conoscenza espone il possessore alie eccezioni per d’abusivo riempimento, ma naturalmente a quelle soli eccezioni di abusivo riempimento che potevano opporsi al possessore che aveva diritto di riempire il titolo” (LORENZO MOSSA, “La cambiale secondo la Nuova Legge”, número 458), isto é, o conhecimento, ou o simples dever de conhecimento relativo à originária subscrição em branco, expõe o portador – que recebeu o título já completo – a tôdas as exceções oponíveis ao possuidor que tinha o direito de preencher o título”.

Do mesmo teor é a lição de GIUSEPPE VALERI (“Diritto Cambiale Italiano”, Parte Especial, nº 183, pág. 145) e dos demais cambialistas italianos.

11. Fique, pois, sòlidamente assentado que não é portador de boa-fé, para os fins que nos interessam, aquêle que, sabendo, ou tendo obrigação de saber, que o título, a êle oferecido, fôra subscrito em branco por qualquer dos coobrigados, não empregou a diligência habitual e necessária para saber se o preenchimento do título foi feito de acôrdo com a vontade daquele subscritor.

12. E a boa-fé não é apenas um conceito ético. Como superiormente demonstra GELLA, é ela um conceito totalmente jurídico e um elemento integrante da idéia, do direito. E não existe boa-fé, para os fins jurídicos, quando a pessoa não procede com a necessária cautela e diligência:

“Y porque la conducta que en sus negocios observan loa hombres probos impone la diligencia, esta deviene también un concepto determinante de la buena fé, de tal modo que non es posible conceder la protección al tenedor de un título de crédito cuando aun no conociendo los defectos que invalidan el documento en cuestión, debiera haberlos conocido, y los sabría en efecto si hubiera observado esa diligencia media, ese cuidado normal que es corrente observar en el comercio de los hombres” (AGUSTÍN VICENTE Y GELLA, “Los títulos de crédito”, nº 38, pág. 84).

13. Não rode, pois, ser considerado portador de boa-fé um Banco cujo gerente – que é o seu representante na agência a seu cargo – aceita para descontar notas promissórias como aquelas referidas na consulta. Mesmo que não se conseguisse provar a alegada conivência e participação do gerente, no crime de que o acusam, a sua falta de diligência média, de cuidado normal, em tais casos, é denunciadora e reveladora de má-fé, no sentido jurídico da expressão. Mesmo excluído o dolo, não se afastaria de seu procedimento a má-fé e a culpa grave com que teria agido, e que o tornam vulnerável a tôdas as ações e exceções oponíveis aos autores do indevido preenchimento dos títulos avalizados em branco.

14. Resumindo esta primeira parte: o preenchimento abusivo de uma nota promissória subscrita em branco constitui defesa de caráter pessoal que o coobrigado – vítima do abuso – pode opor: a) contra o autor do preenchimento; b) contra qualquer portador de má-fé. Considerando-se portador de má-fé qualquer pessoa que, embora haja recebido o título completo e formalmente válido, conhecia ou tinha obrigação de conhecer, ou informar-se sôbre as circunstâncias relativas à subscrição do título e ao seu preenchimento ulterior.

Situação jurídica dos que recebem o título ainda incompleto

15. Examinemos agora a situação jurídica dos que recebem o título ainda incompleto, ainda em branco, nessa fase embrionária em que, contendo uma ou mais assinaturas cambialmente aproveitáveis, o pedaço de papel tem possibilidade de se converter num título cambial, é uma nota promissória ou uma letra da câmbio, em potência, mas, por falta do devido preenchimento dos requisitos essenciais, não adquiriu ainda a natureza de título cambial.

16. No caso em exame, suponhamos que o impresso suscetível de converter-se em nota promissória, e contendo apenas a assinatura dos futuros avalistas (futuros, sim, porque só se tornariam tais depois de preenchido o título) B. P. e C. R., suponhamos que o título, assim incompleto, tenha sido levado ao Banco e aí, na presença do gerente, tenha sido preenchido pelo emitente A. D. e entregue ao Banco, para desconto.

E admitamos, para argumentar, que o gerente, perante quem o título foi preenchido, o houvesse descontado com a mais cândida e absoluta boa-fé. Seria o Banco, nesse caso, um portador de boa-fé, contra quem os avalistas estivessem impedidos de opor eficazmente qualquer defesa baseada nas circunstâncias criminosas que rodearam a obtenção de seu aval?

Não. Já vimos anteriormente que, no caso, portador de boa-fé é única e exclusivamente aquêle que “recebeu a letra completa e nenhum motivo teve para suspeitar de sua regularidade”.

Negociação do título ainda incompleto

17. Quanto à negociação do título ainda incompleto, do mesmo modo que a sua emissão, não se rege ela pelas normas do direito cambial, mas (por não se tratar ainda de título cambial) está sujeita aos princípios do direito comum.

Os que adquirem o título em branco, adquirem naturalmente o direito de preenchê-lo. Mas, adquirem um direito limitado e um direito derivado, não autônomo. Limitado, no sentido de que o preenchimento do título há de fazer-se rigorosa e estritamente nos têrmos do acôrdo (contrato de preenchimento) havido entre os subscritores do título em branco e o seu primitivo tomador. Se o aval em branco foi dado para um título de Cr$ 20.000,00, o papel que o contém só poderá transformar-se, legìtimamente, em uma nota promissória de Cr$ 20.000,00.

18. Além de limitado, o direito adquirido, com o título era branco, é um direito derivado, no sentido de que não o ampara a autonomia que constitui característico dos direitos e obrigações cambiais. Quem adquire título em branco, não adquire direito de natureza cambial.

Assim, se o portador preenche a letra de acôrdo com as instruções de seu antecessor na posse do título, mas, em divergência com os têrmos da autorização a êste realmente concedida pelos signatários do título em branco, qual a conseqüência?

19. Ficará êle (apesar de sua possível boa-fé) sujeito a tôdas as exceções oponíveis contra o primitivo tomador. Isso porque, ao contrário do que acontece com a letra completa, a transferência da letra em branco é apenas uma cessão e só tem os efeitos de uma cessão, sendo, pois, “claro que a defesa oponível contra o primitivo tomador também o será contra os cessionários dêste, reservando-se as prerrogativas da autonomia cambiaria exclusivamente para benefício do endossatário do título completo” (WHITAKER, obra citada, nº 53).

20. Isso é, aliás, pacífico em direito cambial. O título em branco é arma de dois gumes e de manejo perigosíssimo para todos, uma vez que a subscrição e a circulação dos títulos em branco, atuando-se em um terreno que GIORGIO OPPO denomina de “pré-cambiário”, expõem subscritores e portadores a graves riscos, deixando-os ao desamparo do direito cambial. E a exclusão dos efeitos cambiais é, segundo o mesmo OPPO, absoluta, não tolerando qualquer limitação ou distinção entre boa-fé ou má-fé e culpa do adquirente do título, sujeito sempre às imposições de um contrato de preenchimento que êle pode, de boa-fé, ignorar:

“Non rileva che egli creda che l’accordo abbia un certo contenuto e neanche che egli sia o meno concretamente in grado di effetuare un riempimento conforme agli accordi; come il sottoscrittore sopporta il rischio di un riempimento contrario agli accordi nei confronta del portatore che abbia ricevuto in buona fede il titolo già riempito, cosi il portatore sopporta il rischio di non potere rispettare gli accordi e quindi di effetuare un riempimento invalidabile dal sottoscrittore” (GIORGIO OPPO, “Titolo Incompleto e titolo in Bianco”, na “Rivista di Diritto Commerciale”, 1951, pág. 189).

Perigosíssimo para o subscritor, vítima da confiança que depositou no tomador infiel.

Êste pode preencher o título e, embora fazendo-o contra as instruções recebidas, basta que o transfira, assim completo, a um terceiro de boa-fé, para que o subscritor – que nada poderá alegar contra êste – seja compelido a pagar um título forjado criminosamente pelo primeiro tomador.

21. Mas, o título em branco – quando circula incompleto – é também perigosíssimo para os sucessivos portadores, mesmo de boa-fé, que suportam o risco de efetuar um preenchimento conforme as instruções de seu antecessor na posse do título, mas destituído de valor perante o signatário do título em branco.

Porque simples cessionários do primeiro tomador, não adquirem mais direitos do que êste, ficando expostos, na conformidade do direito comum, a tôdas as exceções oponíveis àquele. Mesmo que hajam recebido o título por endôsso. É que, do mesmo modo que o endôsso posterior ao vencimento do título tem a forma do endôsso, mas os efeitos de simples cessão, também o endôsso anterior ao nascimento do título (o título em branco não é ainda um título cambial) tem apenas a forma do endôsso, mas os efeitos da cessão.

22. Antes, pois, de preenchido o título, não é o subscritor um devedor cambiário, e o fato de passar o título às mãos de terceiros não lhe tira nem restringe o direito de opor a qualquer adquirente tôda e qualquer defesa que tiver, baseada na inobservância das instruções que houver dado ou do contrato que houver celebrado, relativamente ao preenchimento do título.

Não há, pois, que apelar para o rigor cambial, para o formalismo, e para a autonomia de direitos e obrigações, em face de um título em branco, destinado a ser, mas que não é, ainda, um título cambial.

No caso é absolutamente irrelevante a boa-fé do portador que houver preenchido o título. O signatário se defenderá vitoriosamente contra êle, provando simplesmente que o preenchimento do título foi feito em desacôrdo com o pactuado com o primeiro tomador do título incompleto.

“Vi è solo da osservare che non può essere attribuita rilevanza nè alla buona fede dell’autore del riempimento circa l’esistenza di accordi idonei a legittimarlo, nè all’apparenza communque intesa e determinata della legittimità di un certo riempimento” (GIORGIO OPPO, trab. citado, pág. 188).

23. Não constitui novidade o que ensina o ilustre professor da Universidade de Pádua.

Já vimos, no mesmo sentido, a lição de WHITAKER. E todos os grandes comercialistas, antigos e novos, ensinam a mesmíssima coisa. Seria fácil multiplicar as citações. Limitemo-nos a mais duas. Eis o que, a respeito, dizia VIVANTE:

“Il sottoscrittore può opporre non solo al suo immediato prenditore, ma a chiunque ricevette il titolo in bianco, come ad un mero cessionario, le eccezioni opponibili al prenditore. E infatti, chi a ricevuto il titolo in bianco e lo ha successivamente riempito, non può dire di aver acquistato un diritto cambiario, perchè il titolo mancava nel momento del’acquisto dei requisiti essenziali alla cambiale; non può dire neppure di aver acquistato un diritto autonomo, poichè questa posizione non spetta che al legittimo possessore di un titolo di credito, e la cambiale in bianco non è un titolo di credito destinato alla circolazione, nè per la volontà dell’emittente nè per volontà del legislatore” (VIVANTE, “Trattato di Diritto Commerciale”, 5ª edição, vol. 3°, nº 1.114).

24. E finalmente BONELLI, sustentando igualmente a oponibilidade, contra quem quer que haja recebido o título ainda incompleto, da defesa que o subscritor tiver contra o primeiro tomador, afirma, em síntese:

a) que tais exceções podem ser opostas por todos os signatários que hajam firmado o título antes de seu preenchimento;

b) que, para ilidirem a ação cambial que lhes propuser o portador do título, bastará que provem ùnicamente:

1) que o título foi entregue em branco;

2) que existia um limite (e que tal limite foi transposto) à faculdade de preenchimento (BONELLI, “Della Cambiale”, pág. 205, nº 102).

25. Em resumo, pois, na doutrina uniforme de todos os mestres do direito cambial, o subscritor do título em branco:

a) contra aquêles que, a qualquer título, o receberam ainda incompleto, mesmo que estejam de boa-fé, poderá êle opor vitoriosamente tôda e qualquer exceção ou defesa, que teria contra aquêle a quem entregou o título;

b) contra o portador – que haja recebido o título já completo – poderá êle opor eficazmente as mesmas exceções, se aquêle portador houver procedido de má-fé na aquisição do título. E, como vimos, a falta de diligência e de cuidado normais significa má-fé.

Sobre a consulta

26. No caso referido na consulta, A. D. procurou os avalistas B. P. e C. R. – avalistas em uma nota promissória de Cr$ 24.000,00 – alegando que ia reformar êsse título e “dêles conseguiu o aval em branco em uma nota promissória que, levada ao Banco citado, na mesma praça, foi preenchida para Cr$ 130.000,00 e descontada por essa importância. Essa operação se repetiu por diversas vêzes”.

Uma vez consigam provar que o título foi levado ao Banco, ainda incompleto, e só aí foi preenchido, se fôr provado igualmente o abuso praticado pelo Sr. A. D. contra os avalistas, tornar-se-á de todo supérflua a prova da má-fé e da participação do gerente no ato criminoso praticado pelo Sr. A. D.

Mesmo que o gerente houvesse agido de boa-fé, seria oponível ao Banco a defesa que assiste aos avalistas contra o autor do criminoso abuso de confiança.

Porque o Banco não seria, perante os avalistas, um portador cambiário, munido de um direito autônomo contra êles. Havendo adquirido de A. D. um título sabidamente incompleto, o Banco o teria obtido com todos os riscos decorrentes de um preenchimento em desacôrdo com a vontade dos subscritores. E, como vimos, a questão se regerá pelo direito comum, não prevalecendo, no caso, para a defesa dos avalistas, as restrições do art. 51 da Lei Cambial.

27. Admitido, porém, que o Sr. A. D. haja completado os títulos antes de levá-los ao Banco, e apresentado ao gerente, para desconto, notas promissórias perfeitamente formalizadas, as circunstâncias de que se teria revestido o desconto de tais promissórias caracterizam exuberantemente, para os fins cambiais, a completa má-fé do portador.

Vimos com efeito que só é portador de boa-fé aquêle que “nenhum motivo teve para suspeitar de sua aparente regularidade”.

E, no caso, o Sr. gerente do Banco – mesmo que não se prove sua participação no criminoso preenchimento – agiu de má-fé, porque êle tinha todos os motivos para suspeitar da “aparente regularidade” das notas promissórias apresentadas a desconto.

O gerente, mais do que ninguém, estava em condições de saber, pelo próprio cadastro do Banco, que não havia entre avalistas e avalizado relações de negócios que justificassem tais avais; de conhecer a situação dos diversos coobrigados. Mais do que ninguém, deveria êle achar estranho e anormalíssimo que, coincidindo sempre com o vencimento dos títulos anteriores, aparecesse o emitente no Banco, não para a reforma e amortização do título vencido, mas para o desconto de outro, de quantia muitíssimo superior. E deveria achar ainda mais surpreendente que tais títulos trouxessem, invariàvelmente, os avais dos mesmíssimos signatários do modesto título inicial de Cr$ 24.000,00, que, coisa nunca vista em modesta agência do interior, com umas cinco reformas se elevou a mais de um milhão de cruzeiros…

Qualquer gerente, por mais ingênuo e inexperiente que seja, acharia inexplicável a sucessão de tais avais e, sobretudo, o progressivo crescimento dos títulos avalizados. E encontraria em tudo isso, não apenas um, mas inúmeros motivos para suspeitar da regularidade de tais títulos e para sentir-se no rigoroso dever de não aceitá-los, sem certificar se, prèviamente, junto aos avalistas, de que êles não estavam sendo vítimas de seu avalizado.

Mesmo admitindo-se, pois, a “inocência” do Sr. gerente, é fora de dúvida que êle teria agido sem observar aquela diligência média, aquêle cuidado normal que é corrente observar no comércio bancário e que, como vimos, é um dos elementos integrantes do conceito de boa-fé.

28. As circunstâncias narradas na consulta geram, porém, a convicção de que seria impossível o êxito das manobras fraudulentas, de que foram vítimas os avalistas, se o Sr. A. D. não contasse com a conivência e a indispensável colaboração do gerente de Jacutinga.

O procedimento dêste gerente fugiu a tôdas as normas e praxes uniformemente seguidas pelos bancos, sobretudo pelas agências menores, que não têm possibilidades de ultrapassar os limites inflexìvelmente fixados pela administração central.

É assim que, normalmente:

a) Os bancos não emprestam quantias de vulto a pessoa de “crédito limitado”.

Por melhores e mais idôneos que sejam os avalistas, os bancos recusam sistemàticamente o desconto de títulos cujos emitentes não estejam em condições de pagá-los. E o Sr. A. D. não tinha crédito para as quantias que lhe foram emprestadas…

b) Os títulos vencidos, quando não pagos no vencimento, são reformados com a amortização usual de 20%. Excepcionalmente, permitem reformas com amortização menor. E, quando muito, toleram – em casos excepcionalíssimos – que a reforma se faça apenas com o pagamento dos juros, pelo prazo da prorrogação.

Em vez, porém, da reforma dos títulos vencidos, o que se verificou, segundo a consulta, foi a sucessiva substituição, por ocasião do vencimento, de um título de Cr$ 24.000,00 por outro de Cr$ 130.000,00; dêste por um de Cr$ 450.000,00; dêste por um de Cr$ 650.000,00, etc.

29. Caracterizada – e provada que seja – a má-fé com que, no caso, terá agido o gerente de Jacutinga, não há a menor dúvida de que o Banco Crédito e Comércio de Minas Gerais, S.A., se tornou, em relação aos títulos mencionados na consulta, e para os fins do direito cambial, portador de má-fé, contra o qual os avalistas se defenderão vitoriosamente, se o Banco quiser acioná-los.

O gerente, na agência que dirige, representa o Banco e, nos têrmos do art. 75 do Cód. Comercial, o obriga por todos os atos que praticar no exercício de suas funções. Os preponentes, ensina CARVALHO DE MENDONÇA, “são responsáveis para com terceiros, por todos os atos dos gerentes no desempenho de suas funções, isto é, não só pelas obrigações por êles contraídas, como pelos delitos e quase-delitos por êles também cometidos” (“Tratado de Direito Comercial Brasileiro”, 2ª ed., vol. 2°, nº 484, pág. 472).

Nem se exonera o preponente da responsabilidade “alegando abuso de confiança ou excesso dos poderes conferidos ao gerente” (autor, obra e lugar citados acima).

É o gerente um preposto com amplos poderes de representação. Quem trata com o gerente, trata com o próprio estabelecimento que êle representa. Daí a definição de VIVANTE, segundo a qual o gerente, cujos atos obrigam o preponente, como se por êle mesmo praticados, “é o representante permanente que o comerciante designou para o exercício de seu comércio, em um lugar determinado” (“Trattato di Diritto Commerciale”, vol. 1º, pág. 287, nº 267).

Donde resulta ser apenas um corolário de tais normas e princípios a afirmação de CARVALHO DE MENDONÇA, de que as pessoas que tratam com os funcionários de um banco, em geral, e sobretudo com os seus gerentes “ficam amparadas e garantidas como se tratassem com a própria administração” (ob. cit., vol. VI, 3ª parte, nº 1.389, pág. 91).

30. Examinemos finalmente a questão relativa à falsidade ideológica dos avais.

No que se refere à defesa dos avalistas contra o Banco, não tem, data venia, maior importância a conceituação do delito cometido pelos que preencheram abusivamente as notas promissórias. Em direito cambial, constitui êle o “abuso no preenchimento do título em branco”.

E WHITAKER afirma que tal abuso “constitui uma violação da lei penal, mas não se confunde com a falsidade” (ob. citada, nº 55, pág. 103). Porque, enquanto “o objeto da falsidade é a forma, o objeto do abuso é a própria essência da obrigação”. E, encarando as conseqüências da falsidade e do abuso no preenchimento, em face tão-sòmente do portador cambial de boa-fé, conclui que “num e noutro caso, há um crime a punir; mas, quem sofre as conseqüências patrimoniais dêste crime, no primeiro caso é o adquirente do título, no segundo o próprio signatário da declaração abusivamente escrita” (ob. cit., nº 55, pág. 104).

31. Como se vê, WHITAKER considera ùnicamente a falsidade material, uma vez que sòmente ela interessa ao direito cambial, como geradora de exceções reais, oponíveis erga omnes, sem embargo da boa-fé do portador.

Mas, se falsidade, no sentido jurídico, compreende tôda alteração da verdade, conforme a expressão de CUJÁCIO: “falsum fraudulenta veritatis mutatio vel suppressio, in detrimentum alterius facta” (apud CARVALHO DE MENDONÇA, obra cit., vol. VII, nº 282), e se, nos têrmos do art. 298 do Cód. Penal, constitui falsidade ideológica inserir ou fazer inserir em um documento “declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sôbre fato jurìdicamente relevante”, é evidente que o abuso no preenchimento das notas promissórias caracterizou justamente o crime de falsidade ideológica.

*

Diante do exposto, assim respondo aos quesitos formulados:

Ao primeiro – O abuso no preenchimento das notas promissórias constitui o crime de falsidade ideológica capitulado no art. 298 do Cód. Penal, tenha ou não tenha havido qualquer conluio entre A. D. e o gerente. Basta que se tenha verificado “a alteração intencional da vontade dos avalistas” por parte de A. D.

Ao segundo – Sim. Ficando claro que a prova do conluio, a que se refere o quesito anterior, não é condição necessária para que se considere de má-fé o portador dos títulos (ns. 26 e 27 da parte expositiva dêste parecer).

Ao terceiro – Sim. Quanto “às cautelas necessárias e aconselháveis à defesa dos avalistas”, suponho que elas se tornem desnecessárias ou supérfluas. Não creio que o Banco Crédito e Comércio de Minas Gerais, S.A., superiormente dirigido por homens de bem, banqueiros ilustres e probos, proponha qualquer ação contra os avalistas, com base nos avais a que se refere a consulta.

Se o fizer, é porque não se terá convencido da verdade dós fatos gravíssimos, ali narrados. Nessa hipótese, tudo dependerá exclusivamente da prova a ser feita relativamente aos fatos alegados. E “as cautelas necessárias e aconselháveis à defesa dos avalistas” se concentrarão em tal prova, para cuja plenitude e perfeição hão, de concorrer, em grande parte, os indícios, e presunções apontados na consulta e denunciadores da ativa participação do gerente de Jacutinga no crime cometido por A. D.

É o que, salvo melhor juízo, me parece.

Belo Horizonte, abril de 1953. – João Eunápio Borges, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais.

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  3. Devem apresentar o título, o resumo e as palavras-chave, obrigatoriamente em português (ou inglês, francês, italiano e espanhol) e inglês, com o objetivo de permitir a divulgação dos trabalhos em indexadores e base de dados estrangeiros;
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