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Estados, discriminação de rendas e reforma constitucional

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19/07/2021

REVISTA FORENSE – VOLUME 143
SETEMBRO-OUTUBRO DE 1952
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Francisco Mendes Pimentel
Estevão L. de Magalhães Pinto

Abreviaturas e siglas usadas
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Revista Forense 143

CRÔNICA

DOUTRINA

PARECERES

NOTAS E COMENTÁRIOS

BIBLIOGRAFIA

JURISPRUDÊNCIA

LEGISLAÇÃO

SUMÁRIO: A discriminação de rendas e o regime federativo. Exemplo norte-americano. A evolução do problema no Brasil colonial e imperial. A fase republicana. Vantagens da discriminação rígida. Como os Estados poderão aumentar as suas receitas. As ações e títulos ao portador. Outras fontes e expedientes de tributação. Taxas rodoviárias. Contribuição de melhoria. Impostos territorial e de transmissão “causa mortis“. Receitas federais e estaduais nos Estados Unidos. Práticas condenáveis do fisco estadual brasileiro. Decréscimo da renda da União e aumenta das estaduais e municipais após a Constituição. Conclusões.

Estados, discriminação de rendas e reforma constitucional

ALIOMAR BALEEIRO

Professor da Faculdade de Direito da Universidade da Bahia

I

Implantada firmemente no tronco da Constituição, a discriminação das rendas bem poderia ser considerada tema serôdio e já ultrapassado para debates, se, ainda recentemente, não houvesse sido desfraldada aos ventos de ampla publicidade a bandeira da revisão da Carta Magna em vigor, sob fundamento de que as receitas públicas, no texto dela, foram distribuídas de modo injusto e insuportável para os Estados.

Não é licito aos estudiosos de finanças públicas a atitude de indiferença a êsse ataque frontal à Constituição de 1946, quando o desferiu ilustre governador de Estado que, atualmente, preside ao maior partido político nacional. A tese revisionista, na parte relativa à discriminação de rendas, já fôra posta em debate desde 1951, encontrando-se entre seus defensores o nobre deputado BROCHADO DA ROCHA, líder de outro grande partido.

Estamos, pois, diante duma controvérsia inteiramente atual e grávida das maiores conseqüências econômicas, políticas e sociais para tôda a Nação.

O problema da discriminação das rendas, como é óbvio, não tem sentido para os países de tipo unitário, como a França, Itália, Uruguai, a maioria das nações, aliás. Peculiaridade das federações, nasce com o aparecimento da primeira delas no mundo, os Estados Unidos, na Convenção de Filadélfia em 1787, muito embora já se esboçasse, nas, confederações e Estados compostos. Aliás, é mais exato dizer-se que foi a discriminação de rendas a causa última e decisiva da criação da figura jurídica e política do Estado federal, como novidade do fim do século XVIII.

Recordam-se todos que, declarada a Independência em 1776, após a consolidação pelas armas contra a Metrópole, as treze colônias americanas confederaram-se e assim viveram penosamente de 1781 a 1787. A Confederação dirigia a guerra mas não podia exigir impostos diretamente do povo. Deveria ser mantida pelas contribuições dos 13 Estados nada dispostos a fornecê-las, enquanto as mais duras e humilhantes provações eram infligidas à nascente República, desde as exigências e revoltas justas do exército caloteado até os resgates extorquidos pelos piratas levantinos que não tinham o mínimo respeito ao pavilhão hasteado nos navios americanos.

MADISON, apoiado por WASHINGTON, HAMILTON e outros, enviou aos Governos dos Estados a famosa circular em que os concita a conceder à Confederação o poder de decretar impostos alfandegários específicos sôbre chá, açúcar, café, cacau e álcool e de 5% ad valorem sôbre outras mercadorias importadas. Essa medida investiria de duplo vigor o poder central, porque não só lhe asseguraria recursos próprios mas também a competência de dirigir o comércio com o estrangeiro. Malogrou-se o esfôrço, mas disso resultou, afinal, depois de várias peripécias que todos aprendemos no curso de ginásio, a Convenção de Filadélfia e a Constituição de 1787, ainda em vigor: um compromisso dos Estados entre si, delegando o poder de tributar, sem dêle abrir mão, a um govêrno superior, mas integrado pelos representantes do povo de todos êles.

Essa foi a mais importante novidade do Estado federal, pois as confederações sem poder fiscal direto não eram desconhecidas da História. Esta mostrara que acabavam pelo malôgro irremediável, tanto que não sobreviveram no mundo contemporâneo.

Mas a Constituição americana limitou-se a entregar à competência do Congresso o direito de decretar impostos a fim de pagar as dívidas e prover à defesa e ao bem-estar geral dos E.U.A., reservados ao govêrno federal, com exclusividade, apenas os direitos alfandegários, mas proibidos os de exportação. A isso se limita a discriminação de rendas no sistema constitucional americano. Algumas regras de construção jurisprudencial, como as relativas a imunidade recíproca, completam êsse escasso arcabouço de direito expresso.

É, pois, um sistema tributário flexível, que deixa enorme campo à competência concorrente, dentro do qual União, Estados e Municípios pastam com liberdade de movimentos sôbre o patrimônio dos contribuintes.

Veremos, depois, as conseqüências práticas dessa flexibilidade, que foi copiada pela Argentina, quando, sob as inspirações de ALBERDI, elaborou a Constituição de 1853. Esta, aliás, nesse particular, pouco difere do texto peronista de 1949. A jurisprudência norte-americana é larga e irrestritamente invocada pelos melhores doutrinadores argentinos, tal a semelhança dos dois sistemas eminentemente flexíveis. Disso, prova exuberante é o precioso livro de CARLOS ADROGUÈ, fundamentado nas decisões de tribunais norte-americanos.

II

A Federação, no Brasil, resultou de lenta evolução de mais de século e orientou-se gradativamente para solução diversa: a rigidez na distribuição das rendas entre os governos.

Das instituições lusitanas, recebemos municípios fortes e que já exerciam o poder de tributar com mais vigor do que os próprios monarcas, originàriamente confinados nas rendas dominiais e regalianas. Não raro, a Coroa portuguêsa recorria aos bons ofícios das Vereanças Municipais do Brasil para que fôssem lançados tributos destinados a interêsses comuns com a Metrópole, ou sòmente desta. LÚCIO DE AZEVEDO esclarece com vários exemplos históricos essa afirmativa. O pagamento da tropa recrutada para expulsão dos holandeses, o dote da infanta D. Catarina, futura rainha de Inglaterra, a ajuda para remodelação de Lisboa após o terremoto, são casos bem conhecidos e que atestam a prática do apêlo real à tributação dos Municípios. A desenvoltura insolente dêstes, no Brasil, não se limitava às questões protocolares de precedência, mas chegou até a destituição de um governador-geral.

Ora, após a Independência, as linhas mestras da futura discriminação de rendas iriam esboçar-se mercê do Ato Adicional de 1834, que criou as Assembléias Legislativas Provinciais com poder de decretar impostos.

Os impostos das províncias iriam abrir um caminho entre os do Govêrno Imperial e os dos Municípios. O Ato Adicional não discriminou tributos, limitando-se a estatuir que as Províncias e Municípios “não prejudiquem as imposições gerais do Estado” (art. 10, § 5°), isto é, do Govêrno nacional.

Desde 1835, o cons. Mel. Nascimento Castro e Silva propunha que se apartassem nitidamente os impostos provinciais, já que a lei nº 99, de 31-10-1835, se limitara a reservar ao Império longo rol de tributos. Era a discriminação rígida que defendia aquêle estadista. Não foi ouvido, de sorte que até a queda do trono vigorou a confusão, invadindo as Províncias a competência tributária da Fazenda nacional. Vários relatórios nos dão notícia dessa caótica fase das finanças nacionais.

A Constituição de 24-2-1891, em face dessa experiência dos males da flexibilidade, envereda firmemente pela solução contrária, dividindo os impostos entre a União e os Estados. Êstes, através de suas constituições e leis orgânicas, fariam o quinhão dos Municípios. A partilha não foi fácil, pois os anais da primeira Constituinte republicana mal abafam os ecos dos debates entre RUI, JOSÉ HIGINO e AMARO CAVALCANTI, na defesa da União, dum lado, contra JÚLIO DE CASTILHOS e outros, no lado oposto, como defensores dos Estados. CASTILHOS designou a flexibilidade como o “funesto regime dos impostos cumulativos”. Os homens de 1890 e 1891 sabiam que jogavam, naquele momento, a sorte da unidade nacional. Vários discursos, então, referiram-se à sombra do separatismo.

Os principais estadistas dos primeiros anos da República estavam sinceramente convencidos de que os cofres federais haviam sido desamparados na discriminação das rendas. Por falta de perspectiva no tempo, raciocinavam sôbre as cifras de 1890 a 1900. Entretanto, pisando com firmeza no campo da competência concorrente, bem largo sob o regime de 1891, o legislador federal criou e incorporou, sucessivamente, ao orçamento da União, os impostos de consumo, renda e vendas e consignações.

A Revolução de 1930 veio encontrar a União na posse pacifica de mais de 60% das arrecadações, o que demonstra quão Injustificado se mostrou o pessimismo de RUI e outros.

A evolução no sentido da rigidez registra mais um passo decisivo com a Constituição de 1934, que resolve fazer logo o quinhão dos Municípios, ao invés de confiar a tarefa aos legisladores estaduais. As três competências definiram-se logo, claramente, no Estatuto Supremo. Essa rigidez é conservada na Carta de 1937 e ainda mais sublinhada na de 1946.

Foi um mal? Ou, pelo contrário, um bem?

As vantagens da discriminação rígida apresentam-se nítidas, à primeira reflexão:

1ª) preservação da autonomia dos Estalos e dos Municípios, garantido um campo mínimo e exclusivo a cada um dêles;

2ª) segurança dos contribuintes quanto à bitributação, como tal entendida a exigência de tributos sôbre o mesmo fato econômico ou jurídico por parte de governos diferentes;

3ª) tendência à simplificação, pois os tributos afins poderão ser sempre reduzidos às categorias previstas na Constituição federal, evitando-se a perturbadora multiplicidade de impostos. A desvantagem única é a de sujeitar o legislador a uma disciplina, que lhe tolhe até certo ponto a liberdade de movimentos, tão grata aos que detêm o poder. O capricho fiscal há de conter-se dentro dos limites constitucionais no que tange à escolha das variedades de tributação. Mas dentro da competência respectiva, essa variedade pode satisfazer tôdas as preferências políticas e econômicas. Senão vejamos:

– a União dispõe dum potente impôsto direto e pessoal, de larga base, – o de renda, abrangendo a quase totalidade do campo econômico, – ao lado de quatro bons e produtivos impostos reais e indiretos. Os Estados gozam de três impostos pessoais e diretos – territorial, inter vivos e causa mortis – e dois indiretos e reais – o de vendas e o de exportação.

– os Municípios estão armados com três impostos pessoais e diretos – predial, territorial urbano e indústrias e profissões ao lado do indireto e real, o de licença.

Tôdas três competências, pois, receberam impostos de várias naturezas e grande produtividade. Está nas mãos do legislador federal, e, subsidiàriamente, nas do estadual (Constituição, art. 59, XV, b, e art. 6º), criar formas gerais de direito financeiro para distorsão dos caracteres clássicos dos impostos já indicados, acentuando êsses caracteres quando reais, ou os substituindo pelos pessoais ou semipessoais e vice versa. Estados e Municípios podem cobrar êsses tributos segundo as tabelas de 1946 ou dobrá-las, triplicá-las e quadriplicá-las, pois a Constituição atual, ao contrário da de 1934, não fixa teto a impôsto, e, quando muito, veda o confisco.

Façamos o contraste dessa rigidez com os sistemas flexíveis, dos quais o padrão mais antigo e característico é o norte-americano.

Lá, à exceção da repulsa aos impostos de exportação e exclusividade federal sôbre o

impôsto alfandegário, aliás hoje de escassa importância no rol dos recursos pròpriamente fiscais, União e Estados podem cobrar o mesmo impôsto e na realidade o cobram. Os Estados ainda podem conceder aos Municípios o poder de concorrer com êles. Destarte, o yankee paga impôsto de renda à União; aos Estados de Nova York e à Municipalidade do mesmo nome. E quando os sete palmos de terra, na infinita misericórdia, servirem de agasalho ao corpo moído por tanto imposto ainda os herdeiros deverão pagar impostos de herança, não só ao Govêrno federal mas também ao estadual.

Ouçamos o depoimento de uma testesmunha autorizada e insuspeita, o Prof. W. J. SCHULTZ:

“A divisão em compartimentos fiscais separados, quer entre a União e Estados, quer dêstes entre si, ou entre êles e as municipalidades, é coisa do passado. As bases de impostos superpõem-se entre Estados, produzindo-se bitributações”.

“Os Estados entram em competição tributária, disputando pessoas e negócios para seu território por meio da isca de baixas tabelas fiscais. Estados e União usurpam reciprocamente os domínios um do outro, para desgraça dos contribuintes colhidos entre os sistemas de supertributação”.

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“Um impôsto de renda federal, por si só, pode ser pesado sem ser confiscatório. Igualmente, um impôsto estadual de renda pode gravar suavemente. Mas, aplicados simultâneamente por superposição, o resultado pode tocar às raias do confisco” (“American Public Finance”, 1942, págs. 742 e 744).

Não difere a voz de outro observador de grande autoridade, o Prof. WILLIAM WITHERS, em obra recente:

Os sistemas de rendas dos vários níveis de govêrno, nos Estados Unidos, proliferaram em direções sem plano nem coordenação para acompanhar o crescente custo da Administração pública. Por essa razão, não surpreende que os impostos duma jurisdição freqüentemente façam duplo emprêgo, entrem em conflito ou concorrência com os de outras jurisdições. Os contribuintes sofrem pela carga da bitributação e pela do tempo e despesas com pagamento de impostos em duplicata. A tributação, por vêzes, levanta barreiras arbitrárias ao comércio e enseja transferências artificiais dos negócios duma localidade para outra.

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“Hoje, existem várias bitributações desde que tanto o Govêrno federal quanto os dos Estados exigem impostos sôbre renda, herança, doações, propriedade, bebidas, fumo, gasolina, salários e negócios. (Tanto os Estados quanto os Municípios tributam as vendas, a gasolina, bebidas e licença para profissões e negócios” (“Public Finance”, 1948, pág. 353).

Cremos que essas confissões cruas de financistas americanos demonstram quanto bem-avisados andaram os constituintes de 1946, poupando os magros contribuintes brasileiros às vexações e duplas sangrias que padecem, sem remédio, indivíduos e emprêsas nos Estados Unidos.

As bitributações, no Brasil, são, hoje, casos raríssimos. Os repertórios de jurisprudência atestam não só a efetiva garantia assegurada pelo contrôle do Poder Judiciário sôbre o legislador fiscal, mas também a atenta vigilância dos contribuintes, mais ariscos do que os esporádicos abusos o justificariam.

Impressionou ao professor argentino LINARES QUINTANA a fórmula da Constituição brasileira que, segundo êle, “com claridade e precisão delimita as esferas impositivas dos poderes central e locais, não deixando muito campo para a dúvida ou para a confusão, como outras leis fundamentais”.

III

A rigidez do sistema brasileira foi assinalada em tom de discreta reserva pelos professares HUGON e RUBENS GOMES DE SOUSA. Vimos que a Constituição foi intencionalmente rígida, pois êste era o preço das qualidades positivas que apresenta. E ela, em verdade, à mais rígida de quantas conhecemos, nesse particular de tributos.

Mas é necessário não exagerar aquêle aspecto do Estatuto de 1946, pois em mãos hábeis êle é um instrumento que permite “performances” surpreendentes.

Tomemos, como exemplo e base da discussão, o alegado embaraço para os Estados melhorarem suas rendas.

De comêço, há de se convir que o constituinte de 1946 retirou aos Estados, para transferir aos Municípios, sòmente duas parcelas pequenas:

  1. a) metade do impôsto de indústrias e profissões;

  1. b) 30% do excesso da arrecadação tributária estadual sôbre a municipal, excetuando o impôsto de exportação e as capitais (art. 20).

Quanto ao impôsto de indústrias e profissões que, em 1946, representava apenas 7,1% das rendas estaduais, sobreleva notar que os Estados, na sua quase totalidade, majoraram, em substituição, o impôsto de vendas, elevando-o, em média, de 50%. Ora, esse último tributo representava, em 1946, cêrca de 45,1% das rendas estaduais. Logo, nestes cinco anos, os Estados já se compensaram sobejamente daquela perda. A quota de 30% sôbre o excesso da arrecadação estadual sôbre a municipal atinge a menor parte dos Municípios e exclui desde logo as capitais. E quanto mais prosperarem as rendas municipais, menor será o prejuízo dos Estados por êsse lado.

Ora, para eliminar as perdas sofridas e ultrapassar sua situação anterior, os Estados, sem a mais mínima necessidade de tocar na Constituição, podem obter, por simples leis ordinárias, as seguintes melhorias a salvo de qualquer inconveniente moral, político ou econômico:

  1. a) discriminação de impôsto de vendas, por espécie, para que sejam tributadas mais fortemente as mercadorias supérfluas, suntuárias ou nocivas, como bebidas de forte graduação alcóolica e alto preço, jóias, abrigos de peles; tapêtes orientais fabricados à mão, produtos de pirotécnica, armas, cartas de jogar, etc.;

  1. b) licença do Senado para elevação do impôsto de exportação até 10%, graduando-se progressivamente a margem superior a 5%, em função do preço alcançado pelos produtos no mercado externo;

  1. c) reajustamento do valor tributável dos imóveis rurais, em face dos altos preços alcançados pelo café, cacau e outros produtos: é notório que os imóveis agrícolas figuram no cadastro das coletorias por preços sempre muito inferiores aos reais;

  1. d) eliminação das fraudes no impôsto de transmissão inter vivos e causa mortis, pois a corrupção e a displicência florescem larga e impunemente nesse campo tributário;

  1. e) decretação das taxas rodoviárias, previstas no art. 27 da Constituição, para construção, melhoramento e conservação das estradas, sob a forma de pedágio, rodágio ou qualquer outra tècnicamente aconselhável;

  1. f) arrecadação sistemática da contribuição de melhoria, quando fôr notória ou presumível a valorização de imóveis particulares em conseqüência das obras estaduais;

  1. g) participação mais eficaz no impôsto único sôbre energia elétrica.

Aí estão sete medidas gerais, algumas da competência do legislador estadual, outra da simples autoridade administrativa e a última do Congresso.

Mas não está esgotada a lista de quanto se pode fazer para melhoria das finanças estaduais, sem alterar uma vírgula da Constituição. Medida de capital importância para os cofres estaduais, mas também para os federais, é a supressão das ações ao portador.

São inúmeros os libelos levantados contra elas, em face da grossa evasão que proporcionam ao impôsto complementar progressivo. Calculou-se de 700.000 a 1.000.000 de contos de réis a perda dos cofres federais por obra dos títulos ao portador.

Entretanto, mais considerável, talvez, é o prejuízo sofrido pelos Estados com os títulos ao portador, tais como ações, debêntures, letras hipotecárias, cédulas de capitalização, apólices, etc., pois uma parte considerável do capital nacional é transmitida por herança sem o pagamento do impôsto causa mortis, mercê das partilhas clandestinas ou arranjos de família à margem das partilhas.

Ninguém ignora que a riqueza mobiliária do país, em conseqüência da expansão industrial, notadamente no Sul, tende a ultrapassar o valor da riqueza imobiliária, apurando-se aumentos de capitais das sociedades anônimas, em média, de seis bilhões de cruzeiros por ano, só no Rio e em São Paulo. Isso dá idéia da evasão do impôsto de herança através dos títulos ao portador.

Mas essa evasão é simplesmente colossal se procurarmos calcular, ainda que grosseiramente, o volume do capital privado do país, isto é, a totalidade de todos os patrimônios particulares.

Pelos estudos de FOVILLE, a fração de pelo menos 1/33 dêsse capital, cada ano, deverá passar a novos donos por efeito de herança. Os 260 milhões de cruzeiros arrecadados por todos os Estados e pelos Distrito Federal, a título de impôsto causa mortis, em 1950, está longe de corresponder a qualquer estimativa ainda que modesta do patrimônio privado nacional.

Comparemos o incremento do impôsto de vendas e do impôsto de herança no decênio 1941-1950. O primeiro elevou-se de 882 milhões para mais de 8 bilhões e meio, isto é, cêrca de dez vêzes. O segundo elevou-se de 63 a 260 milhões, ou seja, a pouco mais de quatro vêzes. Outro tanto ocorreu, em relação ao impôsto territorial, que se elevou de 105 e meio para 368 milhões, menos de quatro vêzes portanto.

Logo, os Estados desprezaram as fontes de receita mais justas e estáveis, preferindo sobrecarregar o pobre consumidor. Se a mesma energia empregada em expremer as vendas fôsse empregada nas heranças e nos latifúndios, muito melhores seriam as finanças estaduais.

Note-se, aliás, que as majorações do impôsto de vendas e consignações foram uniformes para quaisquer espécies de mercadorias, de sorte que aquelas de consumo da massa, como alimentos, artefatos de uso doméstico, vestuário barato e remédios, foram sensivelmente encarecidos, em parte, pela ação do fisco estadual.

Ora, se êste se socorresse da possibilidade de discriminar o impôsto de vendas por espécie, a exemplo do que faz a União com o impôsto de consumo, as rendas estaduais teriam crescido sem sacrifício apreciável das classes médias e proletárias. Essa discriminação poderia ir de zero a 100%, a exemplo do que fazem vários países com o impôsto de vendas.

A Inglaterra, por exemplo aplica progressivamente o purchase tax semelhante ao nosso impôsto de vendas, em seis escalões, dentro dos quais se classificam as mercadorias. A primeira classe é isenta e compreende os gêneros de primeira necessidade para alimentação, livros, papéis, medicamentos de base, combustíveis, móveis e objetos domésticos, roupas simples, refrigeradores de pequena cubagem para famílias e os artigos já sujeitos a fortes impostos de consumo, como bebidas e fumo. Seguem-se escalões de 33 1/2, 50, 66,6, 75, 100 e 125%. Tapêtes, faianças, artigos de esportes, máquinas de escrever, automóveis, chapéus, bicicletas e aspiradores, por exemplo, pagam 33,3%, máquinas fotográficas e filmes, rádios, cachimbos, etc., pagam 66,6%; jóias, casacos de pele, cristais, perfumes, navalhas elétricas e outros artigos de luxo entram na classe de 100%. Todavia, lá, cada artigo só é passível de impôsto numa operação, não se repetindo a incidência a cada venda, como acontece no Brasil.

A Suíça, a Suécia e outros países da Europa também discriminam o impôsto de vendas; carregando as tabelas sôbre os considerados de luxo, muitos dos quais de uso generalizado. Os suíços, por exemplo, incluem nessa tributação forte os rádios, embora lá exista um para cada duas famílias.

A título de curiosidade, vale lembrar que o impôsto de vendas na Rússia também é discriminado em várias classes. Brinquedos, por exemplo, pagam 4%, guarda-Chuvas 20%, vodka 84%.

Não é de desprezar-se o efeito anti-inflacionário que teria uma discriminação para imposição mais severa das mercadorias supérfluas e de luxo. A política fiscal dita de austeridade associa, para êsse desideratum, o impôsto de consumo sôbre coisas suntuárias ou inúteis ao impôsto de renda sôbre os grandes réditos e lucros excessivos. A mesma política tributária sôbre as mercadorias exportáveis em alta de preço, desde que tivéssemos o monopólio natural ou virtual delas, em certa conjuntura, poderia ser recomendável através do impôsto de vendas ou de exportação, ambos da competência dos Estados.

IV

Não é compreensível que Estados queixosos da discriminação de receitas de 1946 pensem em reformar a Constituição se não quiseram socorrer-se de tributos justos, que ela lhes garante.

É certo que pouquíssimos Estados e Municípios já cobram taxas rodoviárias, aliás paralelamente ao Impôsto territorial, como adicionais dêste, suscitando-se vários pleitos em que Prefeituras têm levado a melhor na discussão da constitucionalidade dessa prática.

Mas, de modo geral, a Fazenda dos Estados revela repugnância na organização dum sistema de pedágios ou rodágios. Os engenheiros rodoviários alegam o caráter medieval dêsse tributo, que, tecnicamente, é impraticável nas rodovias de tráfego intensíssimo, pois a interrupção da marcha de centenas ou milhares de carros em cada hora provocaria o congestionamento da artéria no local da cobrança. Nesses casos, a taxa rodoviária poderia utilizar a técnica da percepção por placa ou insígnia afixável no carro e que franquiasse ao mesmo a rodovia durante ano, semestre ou mês, cobrando-se o pedágio só daqueles que, não estando franquiados, transpusessem esporàdicamente a barreira.

Medieval ou não, simpático ou não, – e simpatia nunca foi apanágio do fisco – temos observação pessoal e informações da praticabilidade do pedágio em rodovias de médio tráfego sem maiores inconvenientes. Viajando, na Itália, em auto-estradas – aliás ótimas num raio de 100 a 200 kms. em tôrno de Florença, – observamos a cobrança em várias etapas, sem maiores transtornos. Na Bahia, durante anos funcionou o sistema do rodágio, na pequena mas transitada rodovia entre Itabuna e Ilhéus, construída e conservada sob essa forma.

As informações fidedignas sôbre rodágio utilizado em várias estradas e pontes americanas, ou na via Anchieta, reforçam essa convicção. Espanta que numa viagem de 200 a 300 kms, em vários dos Estados brasileiros, um automóvel seja interrompido, pela polícia ou pela vigilância fiscal, 2 ou 3 vêzes, por alguns minutos, a fim de que o condutor declare o nome, destino, assinale-se o número do veículo, e, não raro, exiba a carteira profissional, mas não se possa aproveitar essa oportunidade para cobrar-lhe expeditamente 5, 10, 20 ou mais cruzeiros, com o que já teríamos melhores meios de comunicação. Confessemos que, nessa matéria, somos profundamente medievais e seguimos o bom-senso dos italianos e americanos.

Outrotanto sugere a contribuição de melhoria, que asseguraria aos Estados a recuperação de alguns bilhões investidos em obras públicas nestes últimos cinco anos com polpudas valorizações de imóveis particulares. Os administradores, por indolência, incompreensão, espírito de rotina, incapacidade de adaptação, quando não por timidez em face de opulentos e poderosos proprietários, alegam a impossibilidade de execução da lei nº 854, de 1949, pois esta lhes exige a estimativa da valorização do imóvel ou seja o confronto do valor post-obra com o anterior a ela. Tudo se resume num problema de avaliação, que não é peculiar e restrito à contribuição de melhoria, mas existe igualmente para os impostos de transmissão inter vivos, causa mortis, territorial, predial e, ainda, nos processos de desapropriação, sem que passasse pela cabeça de alguém deixar de aplicar êsses tributos pelas dificuldades de uma estimação, que, em última análise, operar-se-á por arbitramento, garantidos ao contribuinte os meios de defesa. Aliás, a lei nº 854, além de insinuar a fixação amigável dos valores, faculta às partes interessadas a cláusula de prelação, como solução extrema.

A contribuição de melhoria não pode ser reduzida a um simples impôsto sôbre testada de terreno ou metragem de calçamento, baseada numa repartição do custo da obra, pois a Constituição, no art. 30 e parágrafo, limita o sacrifício do contribuinte à valorização recebida. Na prática, uma obra pública, sobretudo se foi executada com desperdício, inépcia ou rapina, pode valorizar imóveis em menos do que custou; pode não trazer valorização alguma e até, excepcionalmente, reduzir o valor das propriedades. Há, pois, um fundo de justiça, previdência e eqüidade no dispositivo constitucional tão combatido pelo comodismo do Fisco. Não nos convencemos das razões de apoio doutrinário que a êste deu o ilustre Prof. CARVALHO PINTO (“Rev. de Direito Administrativo”, vols. 12 e 13).

A contribuição de melhoria limitada à valorização (ainda que esta seja apenas uma defesa do contribuinte sôbre cujos ombros recairá o ônus da prova em contrário da presunção de que a mesma valorização equivale ao custo) não oferece às repartições fiscais e administrativas problemas mais difíceis do que os já enfrentados por elas na execução das leis sôbre desapropriação, impôsto territorial, impostos de transmissão inter vivos e causa mortis: o subjetivismo das avaliações.

V

Mas, voltando às queixas dos Estados, se êles não se quiserem dar ao incômodo de organizar serviços para arrecadação de pedágios e de contribuição de melhoria, ainda lhes resta pura e simplesmente majorar os impostos de sua competência ou decretar novos tributos, dos quais terão 40% nos têrmos do art. 21 da Constituição de 1946.

Já foram vistas as largas possibilidades escondidas na discriminação do impôsto de vendas. O impôsto de exportação que, em princípio, se reputa antieconômico, merece inteiro acolhimento quando recai sôbre mercadorias das quais o Estado possua monopólio natural ou virtual, como, em tempo de guerra, os minérios estratégicos ou coisas outras de interêsse dos beligerantes.

Se o importador estrangeiro não tem possibilidades de suprir-se de certos produtos em outro mercado, em cada conjuntura, êle é quem suportará, pela repercussão, o impôsto de exportação que o vendedor acrescerá ao preço. Se a mercadoria está em alta – o que ocorre de quando em quando aos produtos de exportação, não raro vendidos a 100% mais caros do que no ano anterior, caso é do Estado absorver parte dessa margem excessiva, tributando-a progressivamente em função daquele preço. Essa política já tem sido aplicada ao cacau das colônias inglêsas na África e repousa em bases racionais, tanto mais que, se a exageração dos preços ocorre em tempo de guerra, agravará provàvelmente a inflação, pelo desequilíbrio resultante da paralela redução das importações nessas fases, como sucedeu de 1940 a 1945.

Os impostos territorial e de herança são cobrados pelos Estados brasileiros com uma benevolência que se acumplicia com disfarçadas licenças para a defraudação.

Ainda há pouco aludia-se à desproporção do crescimento das arrecadações dêsses dois impostos, em contraste com o de vendas, muito embora os preços nunca vistos do café, cacau, gado, algodão e outros produtos provem que as terras deveriam ter recebido valorizações fabulosas, aliás notórias.

A suavidade na aplicação do impôsto territorial é tanto mais injustificável quanto, no Brasil, ao arrepio do que acontece em todos os países civilizados, os fazendeiros não estão sujeitos ao impôsto cedular de renda (cédula G).

Quanto a novos tributos, os Estados mais aflitos em suas aperturas, sobretudo aqueles que já contabilizam em suas estatísticas repolhudas cifras de riqueza industrial e comercial, poderiam instituir o impôsto sôbre os capitais, com o que beneficiariam também os Municípios, por se tratar de tributo da competência concorrente.

Êsse impôsto foi usado na Alemanha, Suíça e outros países, como tributo de superposição para discriminação do impôsto sôbre rendas não ganhas (unearned), isto é, constituídas pelos frutos de um cabedal, por oposição ao réditos oriundos apenas do trabalho. Seria, nesse caso, impôsto sôbre a renda, mas medido pelo capital.

Mas o moderno impôsto sôbre o capital, ou sôbre o patrimônio, é baseado em outros princípios e vem tendo larga aplicação depois da última grande guerra, quando o decretaram a França, a Bélgica, a Itália e vários outros países da Europa.

Nos Estados Unidos, ao tempo de FRANKLIN ROOSEVELT, vigorou o capital stock tax da União. Hoje, lá, alguns Estados o arrecadam.

Finalmente, se os Estados não quiserem servir-se de tributos justos, que lhes outorgou a Constituição, como a contribuição de melhoria e de taxas rodoviárias; se não desejarem sanear as defraudações notórias dos impostos de herança, territorial, inter vivos e outros, ou reagir contra a evasão legal, mas indefensável, através de títulos ao portador; se não se resolverem a decretar tributos novos, como lhes faculta o art. 21 da Constituição; se não pretenderem pura e simplesmente majorar os tributos de sua competência, o que podem fazer com liberdade até quase o limite do confisco; se, enfim, tudo isso lhes repugnar, ainda têm o expediente de transferir à União e aos Municípios serviços, encargos e despesas que se situem no peculiar interesse dêstes ou no interesse nacional a cargo daquela.

Um dos cancros da administração brasileira é a duplicação e a triplicação de órgãos para o mesmo serviço num só local. Em determinado Município existem, às vêzes, repartições estaduais e federais para fomento da agricultura ou da pecuária. Na prática, tomam-se daquelas hesitações e abstinências da célebre anedota em tôrno dos mosquitos federais, estaduais e municipais. Postos médicos para combate a determinada endemia existem, às vêzes, na mesma cidade, um federal, outro estadual e mais outro municipal, limitando-se a ação às verbas de funcionários sem material suficiente.

Convênios já foram feitos, com êxito, para profilaxia dêsses erros e há enorme campo para êles nas relações intergovernamentais de Estados e Municípios.

Mas ainda não esgotamos os mananciais onde os Estados poderão beber recursos. Restam-lhe, ainda, os subsídios e auxílios, enfim o que os financistas de língua inglêsa chamam de grants-in-aid.

Quando o regime federal nasceu com os Estados Unidos, a despeito da flexibilidade da discriminação de receitas, cada govêrno girava dentro de órbita definida de impostos e de atribuições, muito ciumentos das demais esferas políticas. O Govêrno federal americano, até metade do século passado, mantinha-se quase que exclusivamente dos direitos aduaneiros e, às vêzes, embaraçava-se para escolher em que gastaria os saldos orçamentários. Os Estados nadavam na abastança, não lhes ocorrendo a idéia de pedir socorro aos cofres federais.

No século XX, esse quadro havia de modificar-se profundamente.

A União invadiu o campo das atribuições estaduais e mostra-se famélica na sua voracidade fiscal. Ao passo que as maiores receitas, até 20 anos passados, eram pagas pelo povo americano aos Municípios e as menores à União, inverteram-se as posições. A parte do leão cabe agora ao Govêrno federal, mas êste, cada vez mais, presta auxílios aos governos locais. A princípio, eram dado quando a União pretendia obter a cooperação estadual, para objetivos nacionais dependentes da atribuição dos Estados, como, por exemplo, a experimentação e ensino agrícolas, rodovias, etc.

A partir da presidência ROOSEVELT, em 1933, a política dos grants-in-aid “expandiu-se tremendamente” – para usar das palavras de SCHULTZ. O Govêrno federal, rompendo com as tradições, passou a subsidiar não só os Estados mas até, diretamente, os Municípios, variando as destinações desses auxílios, geralmente outorgados pelo Congresso para fins específicos.

Fato semelhante ocorreu no Canadá e em outros países federais: o poder financeiro nacional hipertrofia-se, absorvendo a maior parte da renda nacional destinada ao fisco, mas logo passa a ajudar sistematicamente Estados e Municípios. Vê-se, por aí, que a política de auxílios adotada pelo Congresso Brasileiro de 1946 a 1950, censurada por muitos como demagógica e eleitoralista, representa apenas uma tendência geral e incoercível dos países federais na fase contemporânea.

Desgraçadamente, no Brasil; os Estados teimam em abster-se do que constitucional e racionalmente podem e devem fazer, e precipitam-se no abismo do que não podem nem devem fazer.

Em lugar das várias soluções constitucionais e sensatas aqui estudadas, os governos de Estado, insistindo em práticas do tempo do Estado Novo, quando procuravam evadir-se das regras do dec.-lei n° 1.202, de abril de 1939 (administração dos Estados e Municípios), decretam, sob denominações diversas, ora impostos de sua própria competência, onerando-se e onerando os contribuintes por atos duplicados para o mesmo fim, ora impostos da competência alheia, caindo no precipício da inconstitucionalidade.

Uns criam “impostos de produção”, cobráveis de mercadorias ao serem vendidas, esquecidas de que essa duplicata do impôsto de vendas complica inútilmente a contabilidade fiscal e sobrecarregam de trabalho e perda de tempo funcionários e contribuintes, quando a mesma receita poderiam obter com mais singeleza, rapidez, economia e comodidade por simples majoração do impôsto de vendas discriminado para certas mercadorias. Sergipe, por exemplo, seguiu por aquela via errada no seu soi-disant impôsto de produção pela venda de seus produtos.

Outros decretaram esdrúxulos impostos sôbre transações, inversões de capitais, exploração agropecuária, etc., olvidados de que, se estão dentro de sua competência, o honesto e racional era majorar os tributos com os nomes tradicionais com que figuram na Constituição; se saíram de sua competência, uma de duas: ou incorreram em bitributação inconstitucional, invadindo a área de outro govêrno, ou criaram impôsto novo, do qual só podem aproveitar 40%, nos têrmos do art. 21 da Constituição.

Afinal, tudo isso é tão simples e rudimentar, que se não pode compreender a apregoada crise financeira dos governos estaduais. Se os seus recursos são escassos e resolvem apelar para os bolsos dos constituintes, majorem, então, franca e decididamente, os tributos de sua competência, ao invés de enveredarem por desnecessários e fatigantes labirintos e dissimulações. Os contribuintes não são ingênuos. Pagar por pagar, preferem o meio mais simples e cômodo, ao invés de maiores formalidades, várias idas à estação fiscal e multiplicação de lançamentos nos seus livros.

Quem suporta o impôsto é a economia do povo. O Estado, juridicamente, pode pedir 3% ou pedir 30%. Se convém ou não fazê-lo, é um problema de política e não de direito ou de técnica. Nenhum Tribunal pode negar cumprimento à lei pela qual um Estado exija qualquer de seus impostos, exceto o de exportação, no dôbro, no triplo ou no décuplo. Essa é uma deliberação política, pela qual os deputados responderão perante os contribuintes, seus eleitores. E, naturalmente, como êles, em geral, se recrutam nas: classes abonadas, sentem, na própria pele, a ação cáustica do tributo.

De tudo isso, podemos tirar uma conclusão: nenhuma reforma constitucional é necessária para que os Estados melhorem as suas condições financeiras e arrecadem mais do que hoje recolhem.

É problema do legislador ordinário estadual, que só para o impôsto de exportação depende de autorização do Senado. Problema de política e de govêrno. Problema de energia, competência e base parlamentar dos governos. Nada tem com isso a Constituição, que deixa governadores e Assembléias Estaduais com plena autonomia, para graduar a tributação em mais ou menos, segundo as suas conveniências, convicções e interêsses.

O caso é dos governos estaduais queixarem-se menos da Constituição e mais dêles próprios, meditando o nosce te ipsum!

VI

Mas serão justas as recriminações de quantos afirmam que a discriminação das rendas, na Carta Magna de 1948, empobreceu os Estados, reduzindo-lhes as arrecadações, quer em números absolutos, quer na correlação percentual com as receitas federais e municipais no cômputo de todos os impostos pagos pelo povo brasileiro?

É certo que a Constituinte de 1948 se animou do confessado propósito de revigorar a vida municipal, dando mais ênfase à autonomia e às finanças das Prefeituras. É igualmente certo que êsse objetivo, traduzido pelo Prof. ORLANDO M. CARVALHO nas palavras “revolução municipalista de 1948”, vem sendo progressivamente alcançado, pois as receias tributárias das Prefeituras, excluído o Distrito Federal, elevaram-se de 1.722 milhões, em 1946, para 4.794 milhões em 1950, ou seja, de 7,99% para 11,82% da soma total dos impostos cobrados aos contribuintes brasileiros. Esse incremento foi mais acentuado nos Municípios do interior do que nas capitais.

Teria sido o Estado desfalcado dessas receitas que foram melhorar as condições financeiras dos Municípios?

Não e não. Os cofres estaduais registraram receitas de 8.880 milhões em 1948 e de 13.457 milhões em 1950 ou, comparativamente, aumento de 31,84% para 33,19% de todos os impostos pagos pelo povo. Ganharam, portanto, os Estados com a nova discriminação de rendas, apesar do descaso que manifestaram por alguns de seus recursos.

Quem sofreu, por êsses incrementos, foi, sem a mais mínima dúvida, a União, que, tendo arrecadado 11.570 milhões em 1948 e 19.373 em 1950, teve, todavia, uma queda de 53,89% para 47,79% no total da renda nacional absorvida por impostos.

Esses algarismos objetivos, colhidos nas estatísticas do Ministério da Fazenda por gentileza do Dr. Afonso Almiro, devem passar como um sôpro de ar gelado sôbre o entusiasmo dos advogados da revisão constitucional a pretexto de salvação financeira dos Estados.

Nesta altura, desejamos reconhecer lisamente que os Estados têm de fato uma reivindicação justa a pleitear. Padecem as suas finanças e os seus governos, efetivamente, de embaraços graves pela impossibilidade de obtenção do indispensável crédito público nas circunstâncias atuais. Não é possível governar sem recorrer ao crédito.

Os Estados não têm a menor responsabilidade no processo inflacionário que se agravou de 1941 para cá. Para êles, a inflação é um mal terrível, porque lhes duplica a despesa e compromete-lhes a receita, direta e indiretamente. O congelamento de aluguéis, por exemplo, baixa a arrecadação do impôsto de transmissão inter vivos e causa mortis, do mesmo modo que prejudica os Municípios no lançamento do impôsto predial. Ao passo que não podem emitir papel-moeda como a União, que nisso encontrou, bem ou mal, recurso de crédito, êles, devido à conjuntura inflacionária, não encontram mercado vantajoso para as apólices a longo prazo, ou perpétuas. Os empréstimos externos, que tanto socorreram os governos estaduais no passado, ou são difíceis, ou necessitam do apoio federal, como da boa vontade dêste também dependem os créditos abertos pelo Banco do Brasil em conta-corrente e a prazo breve.

Esse é um problema de extrema relevância, quer pelo seu aspecto financeiro e econômico, quer pelo seu aspecto político no que se relaciona com a autonomia estadual.

Poderá remediar-se essa incômoda situação, garantindo-se aos Estados pontuais uma parte das reservas dos Institutos, Caixas Econômicas ou emprêsas de seguro e capitalização, para colocação de seus títulos a longo prazo.

Mas isso é assunto que o Congresso Nacional poderá e deverá regular por lei ordinária, sem necessidade de tocar-se num só parágrafo ou alínea da Constituição.

VII

Não é demais que se repita, uma vez por tôdas, que a discriminação de rendas é problema substancialmente político, dependente das condições geoeconômicas, históricas e sociais de cada país.

Assim como já se disse que o impôsto justo não existe, nunca existiu, nem existirá, pois todo êle contém um mínimo irredutível de iniqüidade, também se poderá afirmar que não há, não houve nem haverá jamais uma discriminação de receitas sem inconvenientes irremovíveis.

Elas são inevitàvelmente imperfeitas e só o tempo e a sabedoria política dos estadistas as tornam, até certo ponto, perfectíveis. Nenhuma ilusão nutriam, nesse particular, os constituintes de 1946, que buscaram o melhor dentro duma fórmula de transação entre os vários interêsses e aspirações em conflito. Êles sabiam lucidamente ser orgulho vão ou veleidade ingênua supor que pudessem acorrentar as gerações futuras. Muito pelo contrário, pretenderam traçar apenas diretrizes gerais, inspiradas na experiência nossa e de outros povos, deixando aos vindouros, na lei ordinária, a tarefa de buscar, suavemente as adotações segundo as circunstâncias mutáveis de cada época. E ler o que escreveram na justificativa dessa discriminação de rendas:

“Seria veleidade da Comissão se pretendesse descobrir e propor uma solução certa, perfeita, científica e rígida, para o problema da discriminação das rendas públicas. Nesse particular, a perfeição cede lugar à perfectibilidade, à possibilidade, enfim, de deixar-se margem ao trabalho lento, contínuo e pertinaz de procurar os meios de aperfeiçoamento, através da experiência e da observação dos homens de Estado com a colaboração dos técnicos”.

………………………………………………………………………………………………………………

“Buscou a Comissão, apenas, indicar os rumos gerais e refletir as tendências do momento, encorajando as que lhe pareceram mais justas e abrindo-lhes válvulas de expansão, que a lei ordinária e sobretudo a política acentuarão, segundo o matiz cambiante das representações parlamentares.

“Assim procedendo, inspirou-se no conceito proclamado de que as Constituições devem revestir-se do aspecto de túnicas amplas, que se modelam pelas formas e relêvo do corpo social, e não camisas de fôrça com que se reduzem à impotência, sem os curar, os doentes agitados, até que as rasguem no desespêro extremo”.

Teria sido possível à Constituinte de 1946 fazer mais que isso e buscar aquela intangível perfeição na discriminação das rendas?

Ainda hoje não acreditamos que alguém o consiga. O problema continua insolúvel para os poucos financistas que sôbre êle se debruçaram no mundo todo. Escassa é a bibliografia financeira que, nestes cinqüenta anos, foi acrescentada à monografia clássica “Le Finanzi degli Stati Composte”, publicada pelo sábio Prof. FREDERICO FLORA raiar dêste século. Aliás, note-se que o documentado livro do professor paulista CARLOS ALBERTO CARVALHO PINTO, “Discriminação de Rendas”, de 1943; uma dos raras obras sôbre o assunto, é francamente favorável à rigidez conservada pela Constituição em vigor.

Outros países federais lutam com problemas mais graves do que nós outros a propósito da discriminação de rendas. Deixando de lado os defeitos do sistema norte-americano, a que já nos reportamos, recorde-se o esfôrço imenso, mas vão, desenvolvido pelo Canadá num exaustivo inquérito procedido pela “Royal Commission on Dominion-Provincial Relations”, que publicou os seus trabalhos em 1940. São três alentados volumes, conhecidos como “relatório, Rowell-Sirois” e ventilam as lamentações financeiras dos Estados, queixosos de que o poder federal esgota as principais rendas. Surgiram lá também as recriminações entre províncias ricas e províncias pobres.

E, afinal, o resultado prático foi a recomendação da mais larga política de grants-in-aid por parte do Govêrno da União, que deverá assumir também algumas das atribuições e encargos provinciais.

Se as agonias e deficiências alheias consolam as nossas, nesse caso do Canadá podem buscar refrigério os adversários da discriminação de rendas da Carta de 1946.

*

Defendendo-a contra os zelosos arautos dos Estados, não nos moveu o intuito de justificar a colaboração pessoal que demos à sua estruturação, como relator na Comissão de Constituição. Com isso apenas quisemos prestar homenagem aos constituintes de 1948, que, nesse assunto, revelaram, a par de patriotismo, nítida compreensão de que, num problema essencialmente político, como a distribuição das rendas públicas, fôrça era recordar o mais seguro dos axiomas da arte política, – aquêle de que, nela, raramente é facultado escolher entre o bom e o ruim, mas não se pode fugir ao dever de optar decididamente pela menos inconveniente entre duas soluções passíveis de censura. A política é a arte do possível, e não do desejável ou do ótimo.

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