GENJURÍDICO
Revista Forense – Volume 430 – Comentários acerca dos precedentes judiciais sobre a impenhorabilidade do bem de família do fiador a partir dos posicionamentos do STJ e do STF: o refinamento da ratio decidendi no tempo, Victor Vasconcelos Miranda e Lygia Helena Fonseca Bortolucci

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ESTUDOS E COMENTÁRIOS

REVISTA FORENSE

Revista Forense – Volume 430 – Comentários acerca dos precedentes judiciais sobre a impenhorabilidade do bem de família do fiador a partir dos posicionamentos do STJ e do STF: o refinamento da ratio decidendi no tempo, Victor Vasconcelos Miranda e Lygia Helena Fonseca Bortolucci

BEM DE FAMÍLIA

DIREITO CIVIL

FIADOR

IMÓVEL URBANO COMERCIAL

IMÓVEL URBANO RESIDENCIAL

IMPENHORABILIDADE

LOCAÇÃO

PRECEDENTES JUDICIAIS

REVISTA FORENSE 430

Revista Forense

Revista Forense

28/04/2020

Revista Forense – Volume 430 – ANO 115
JULHO – DEZEMBRO DE 2019
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA,
JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Mendes Pimentel
Estevão Pinto
Edmundo Lins

DIRETORES
José Manoel de Arruda Alvim Netto – Livre-Docente e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Eduardo Arruda Alvim – Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/FADISP

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ESTUDOS E COMENTÁRIOS

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a (i)legitimidade de a penhora recair sobre bem de família do fiador, quando este figurar como garantidor do contrato de locação de imóvel urbano. Por meio da análise proposta se busca identificar a ratio decidendi, bem como identificar os porquês do tratamento diferente dispensado pelo Judiciário aos fiadores de contrato de locação residencial em cotejo com os contratos de locação comercial. Procura-se identificar os critérios utilizados para definição da regra da impenhorabilidade do bem de família. Além deste recorte, procura-se investigar o refinamento da ratio decidendi do precedente após a sua formação, por meio da aplicação da técnica do distinguishing, no estabelecimento de distinções fático-jurídicas relevantes ao precedente.

Palavras-chave: Precedentes judiciais. Impenhorabilidade. Bem de família do fiador. Locação. Imóvel urbano residencial. Imóvel urbano comercial. Ratio decidendi.

Abstract: this article aims to analyze the (i) legitimacy of the pledge in the guarantor´s family property, when they appear as guarantor of the rental residential property. By analyzing this, it seeks to identify the ratio decidendi and to identify the reasons of the different treatments given by the judiciary to residential rental contracts guarantors in comparison with the commercial rental contracts. Moreover, it seeks to analyze the ratio decidendi and the process of narrowing of the precedent, after its creation by distinguishing.

Keywords: Binding precedent. Ratio decidendi. Residential rent property. Illegitimacy of the guarantor’s. Comparison between urban contracts and commercial rents.

O estudo que se propõe parte da análise de um julgamento paradigmático do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a penhorabilidade do bem de família do fiador nos contratos de locação urbana residencial e o processo de construção deste precedente. Após esta análise, passa-se ao estudo do posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto, considerando inclusive a peculiaridade fática relativa à destinação da locação urbana para fins de definição da (im)penhorabilidade do bem de família do fiador. Afinal, será que as razões de decidir são idênticas?

Pois bem. O acórdão analisado do STJ está registrado sob o nº 1.363.368-MS e foi afetado sob o Regime dos Recursos Especiais Repetitivos, Tema nº 708, pelo qual se decidiu pela legitimidade da penhora sobre o imóvel do fiador que foi apontado no contrato de locação como garantidor da obrigação locatícia, conquanto seja o imóvel bem de família do fiador.

É importante trazer um breve panorama do caso. O processo de conhecimento que foi afetado para julgamento pelo STJ no regime de repetitivos, em sua origem, tratava-se de uma ação de cobrança de aluguéis e encargos locatícios promovida no Estado do Mato Grosso do Sul, pela qual o locador, Afonso Rodrigues, pretendia a rescisão do contrato de locação com a determinação do despejo dos réus e pagamento dos aluguéis e encargos vencidos, bem como os aluguéis vincendos até a data da desocupação do imóvel.

Após o trânsito em julgado do processo de conhecimento, o locador, recorrente no STJ, iniciou a fase de cumprimento de sentença, procedendo com a penhora de imóveis do executado e fiador Marco Agostini, que apresentou exceção de pré-executividade, alegando que o imóvel não poderia ser penhorado porquanto se tratar de bem de família.

O juízo de primeiro grau da 5ª Vara Cível de Dourados/MS declarou a penhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação, fundamentando sua decisão à luz do entendimento jurisprudencial do STF e do STJ sobre o tema.

Inconformado com a determinação da penhora, o recorrido, fiador, interpôs agravo de instrumento para o TJMS, argumentando, em síntese: (i) impenhorabilidade do bem, porque consubstanciado em seu único imóvel; (ii) a utilização do imóvel para moradia de sua família. Ademais, aduziu que haveria (iii) infringência ao princípio da dignidade da pessoa humana. Por fim, destacou que (iv) não haveria vinculação do TJMS ao julgamento constante da Repercussão Geral em Recurso Extraordinário nº 612.360/SP, proveniente do RE nº 407.588/AC, que foi utilizado pelo magistrado de primeira instância para declarar a penhorabilidade do imóvel do fiador.

O desembargador relator do Agravo de Instrumento no TJMS conheceu do recurso de agravo e deu-lhe parcial provimento, para conceder o efeito suspensivo e declarar que a penhorabilidade do bem de família do fiador gerou manifesto conflito ao direito à moradia, consagrado pela CF/88[1].

Diante desta situação, o recorrente manejou recurso especial, alegando divergência jurisprudencial com os acórdãos do STJ e do STF. O Recurso foi recebido pelo STJ e afetado sob o regime dos recursos especiais repetitivos, para enfrentamento da questão jurídica relacionada à legitimidade da penhora incidente sobre o bem de família conferido pelo fiador para garantir o contrato de locação, nos termos do art. 3º, VII da Lei nº 8.009/90.

Pois bem. A relatoria do caso ficou sob a presidência do Min. Luís Felipe Salomão, que determinou a afetação do caso e a remessa à 2ª Seção do STJ, nos termos do então vigente art. 543-C do CPC/1973. Neste contexto, a fim de criar um ambiente decisional plural e democrático, facultou a intervenção da Abadi – Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, sem prejuízo aos demais interessados.

Interveio como amicus curiae a Abadi, sustentando a legalidade da penhora do imóvel de família do fiador, em função dos graves efeitos que se teria ao mercado imobiliário das locações caso fosse afastada a excussão da garantia do fiador, que voluntariamente ascendeu a esta posição de garante, assim como a importância de observância dos precedentes firmados no STF e também nos diversos julgados do STJ sobre a matéria.

O Secovi-RJ também solicitou intervenção no feito na qualidade de amicus curiae para o fim de defender sua posição institucional consubstanciada na importância de se manter a responsabilidade pela garantia de um contrato de locação com o patrimônio do fiador, em atenção ao pacta sunt servanda, à autonomia privada, bem como em razão das consequências mercadológicas que adviriam com a declaração de impenhorabilidade do imóvel, tal como constante do acórdão recorrido.

O Secovi-RJ trouxe em sua manifestação os dados do IBGE sobre os domicílios residenciais do RJ que estão alugados e garantidos por meio de fiança, com uma interessante análise econômica do que poderia representar ao mercado esta virada de entendimento pelo STJ, caso fosse declarada a impenhorabilidade do imóvel do fiador.

A OAB, por meio de deliberação do Conselho Pleno do Conselho Federal da OAB, optou por não se manifestar institucionalmente sobre o assunto, reservando o campo da disputa à seara civilista.

A Associação Gaúcha de Advogados do Direito Imobiliário Empresarial – Agadie – requereu sua inclusão como amicus curiae, trazendo elementos objetivos dos precedentes do STF e mesmo dos diversos julgados fixados pelo STJ para o fim de que fosse observada a jurisprudência estável que se construía nos Tribunais Superiores. Ademais, sustentou a Agadie que a declaração de ineficácia da garantia fidejussória do fiador – mediante o livramento do bem de família daquele – se materializaria em ruptura da segurança do mercado de locação, com a burocratização do processo de locação e engessamento do próprio acesso à moradia, como elemento de fundo social, o qual deveria ser sopesado no processos decisórios pelo STJ. Por fim, destacaram que não se apresentaria razoável que o fiador firmasse o contrato ciente desta exceção legal e, depois, diante da inadimplência do locatário, surpreendesse o locador usando como argumento de defesa que se trataria de seu único imóvel e que deveria ser protegido, pois isto significaria dizer que a garantia, em verdade, nada garante.

A Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de São Paulo (Aabic) igualmente interveio no processo no STJ, solicitando que fosse admitida sua intervenção na qualidade de amicus curiae. Em sua narrativa, destacou a força vinculante das decisões judiciais do STF, exaradas no regime de Repercussão Geral, mormente porque declarada a constitucionalidade e ratificada pelo STF, quanto à penhora do bem de família do fiador, nos termos do RE. nº 612.360, Rel. Ellen Gracie, julgado em 13/08/2010, em ratificação ao julgamento do Recurso Extraordinário nº 407.688, Rel. Cezar Peluso, julgado em 08/02/2006.

O Ministério Público Federal, como fiscal da ordem, sustentou pelo provimento do Recurso para que fosse possível o afastamento da garantia do bem de família, com a consequente determinação de penhora do imóvel do fiador em contrato de locação.

É salutar anotar que o Min. Luís Felipe Salomão não autorizou a intervenção na qualidade de amicus curiae da Aabic, da Agadie e mesmo do Secovi-RJ, argumentando que as informações constantes nos autos eram suficientes; entretanto, determinou que as manifestações ficassem colacionadas aos autos para que fosse possível influir na formação do julgamento.

Em que pese a aparente contradição da posição adotada pelo Min. Luís Felipe Salomão – que manteve as manifestações daqueles que requereram a intervenção como amici curiae, mas não reconheceu a qualidade da intervenção como amicus curiae – deve registrar que as informações provenientes da intervenção das associações foram utilizadas também como elementos determinantes à conclusão que se adotou no julgamento do caso.

Observamos que a postura adotada pelo Min. Luís Felipe Salomão, conquanto tenha mantido nos autos as manifestações dos intervenientes, não nos parece adequada, já que o procedimento dos repetitivos dirige-se justamente à formação de um contraditório coparticipativo, com a ampliação do debate por meio da intervenção dos amici curiae para formação de um padrão decisório paradigmático e vinculante.

Nesse diapasão, o amicus curiae consiste em importante figura nesta relação jurídico-processual que incrementa e qualifica o processo de construção de uma resposta jurisdicional universalizável. Assim, deveria ter sido permitido o ingresso dos intervenientes no feito na qualidade de amici curiae como mecanismo de garantia da própria democratização do processo e o reconhecimento de um processo criativo e aberto, especialmente quando se está trabalhando sobre a lógica de um sistema de precedentes judiciais. De acordo com Cassio Scarpinella Bueno, o que enseja a intervenção do amicus curiae é justamente:

(…) a circunstância de ser ele, desde o plano material, legítimo portador de um “interesse institucional”, assim entendido aquele que ultrapassa a esfera jurídica de um indivíduo e que por isso mesmo, é um interesse metaindividual, típico de uma sociedade pluralista e democrática, que é titularizado por grupos ou por seguimentos sociais mais ou menos bem definidos[2].

Cassio Scarpinella Bueno enfatiza ser o mencionado “interesse institucional” critério indispensável que deve justificar a admissibilidade dessa espécie de intervenção de terceiros, o que se atendia no caso concreto:

O chamado “interesse institucional” autoriza o ingresso do amicus curiae em processo alheio para que a decisão a ser proferida leve em consideração as informações disponíveis sobre os impactos do que será decidido perante aqueles grupos, que estão fora do processo e que, pela intervenção aqui discutida, conseguem dele participar. Neste sentido, não há como negar ao amicus curiae uma função de legitimação da própria prestação da tutela jurisdicional uma vez que ele se apresenta perante o Poder Judiciário como adequado portador de vozes da sociedade e do próprio Estado que, sem sua intervenção, não seriam ouvidas ou se o fossem o seriam de maneira insuficiente pelo juiz[3].

Veja-se que o “argumentos, dados ou elementos que contribuirão para a prolação de uma melhor decisão, permitindo ao juízo examinar adequadamente todas as nuances da questão, ponderando vários pontos de vista”[4], foi o que efetivamente se verificou com as manifestações apresentadas, que trouxeram importantes elementos jurídicos, econômicos e sociais para a análise da questão jurídica envolvendo a penhorabilidade ou não do bem de família do fiador nas relações locatícias.

É digno de nota destacar que o amicus curiae tem sua intervenção justificada na medida em que amplia o contraditório coparticipativo no tribunal, fornecendo informações ou esclarecimentos quanto à questão posta em juízo que transcende aos interesses dos particulares, com o intuito de influenciar a convicção dos julgadores mediante o aprimoramento do debate dialógico.

Os precedentes judiciais têm como objetivo, como visto, projetar segurança jurídica aos jurisdicionados, para que possam calcular suas condutas e as consequências destas. Em função disso é que se exige que o processo de construção da norma jurídica – ratio decidendi – nos tribunais seja qualificado na sua formação, o que envolve, necessariamente, a dilatação do contraditório e o redimensionamento das responsabilidades e faculdades das partes e terceiros que intervenham na relação processual dirigida à construção de padrões decisórios dotados de uma credibilidade diferenciada.

E isso se dá porque a intervenção qualifica o procedimento com maior completude argumentativa, bem como pela representação adequada dos interesses que podem ser atingidos, na construção de respostas jurisdicionais universalizáveis[5]. Por isso, pareceu-nos desacertada a postura adotada pelo Min. Luís Felipe Salomão, que indeferiu a intervenção dos amici curiae no Recurso Especial processado sob o regime dos repetitivos.

Pois bem. O STJ avançou no julgamento do Repetitivo para o fim de consolidar a jurisprudência que já vinha se firmando no STF e mesmo no próprio STJ, a fim de que fosse mantida a exceção à impenhorabilidade legal do imóvel dado em garantia pelo fiador no contrato de locação.

O acórdão do STJ tratou da questão sob o crivo da constitucionalidade declarada pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário em Repercussão Geral nº 612.360, Min. Rel. Ellen Gracie, julgado em 13/08/2010, em ratificação ao julgamento do Recurso Extraordinário 407.688, Min. Rel. Cezar Peluso, julgado em 08/02/2006; bem como em consonância com a firme jurisprudência do STJ quanto à possibilidade de penhora do imóvel do fiador no âmbito do contrato de locação que funcionalizara a garantia fidejussória em favor do locador.

Assim, consolidou-se no âmbito do STJ que, conquanto subsista a regra da impenhorabilidade do bem de família, em função do que prevê o art. 1º da Lei nº 8.009/90, existem algumas exceções; dentre estas, a de que a execução seja vertida em face do fiador em contrato de locação imóvel urbano para fins residenciais, nos termos do inciso VII do art. 3º da Lei nº 8.009/90.

Aliás, deve-se registrar que o STF declarou a constitucionalidade desta exceção à regra, em razão do sopesamento de direitos de igual envergadura constitucional, mormente diante da Emenda Constitucional nº 26/2000, que inseriu o direito fundamental à moradia no texto constitucional.

Oportuno destacar que foi a partir deste julgamento que, mais adiante, o STJ editou em outubro de 2015 a Súmula nº 549, in verbis: “É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação”. Assim, a controvérsia que subsistia sobre a penhorabilidade ou não imóvel do fiador em contrato de locação urbana residencial parece-nos haver sido resolvida no âmbito dos tribunais superiores.

Entretanto, a discussão acerca da (im)penhorabilidade do bem de família do fiador pareceu ganhar novos contornos quando se trata de contrato de locação urbana comercial.

Recentemente, o STF, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 605.709/SP[6], cuja relatoria foi do Min. Dias Tofolli, interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, levantou novamente o debate acerca da constitucionalidade do dispositivo da Lei nº 8.009/90 e decidiu, por maioria dos votos, afastar a possibilidade de penhora do bem de família do fiador quando se tratar de locação comercial. Decisão, portanto, contrária ao anterior posicionamento do próprio STF.

Veja-se, pois, que este posicionamento do STF vai ao encontro do que restou fixado no RE nº 612.360, Min. Rel. Ellen Gracie, oportunidade em que se reconheceu a possibilidade de constrição do bem de família do fiador.

No julgamento do RE nº 605.709/SP os ministros sopesaram dois direitos em aparente rota de colisão: o direito de crédito do locador de imóvel empresarial e o direito à moradia do fiador, para o fim de impedir a constrição do bem de família do fiador, neste caso específico de locação urbana para fins comerciais.

Neste Recurso Extraordinário, que teve a repercussão judicial reconhecida, o Subprocurador-Geral da República, Odim Brandão Ferreira, opinou pelo provimento do recurso extraordinário, sustentando que direito à moradia é resguardado constitucionalmente, devendo, pois, o judiciário defender sua manutenção.

Em que pese os argumentos trazidos pelo parecer ministerial, o Min. Dias Tofolli afirmou que nem o art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/90, nem mesmo os precedentes que embasaram a decisão recorrida fazem qualquer distinção acerca da natureza do contrato de fiança, daí porque não haveria amparo jurídico apto a alterar o posicionamento já consolidado da Suprema Corte.

Assim, o Min. Rel. Dias Toffoli proferiu voto no sentido de reconhecer a legalidade da penhora do bem de família do fiador no contrato de locação comercial, reafirmando o quanto entendido no RE nº 612.360/SP, afetado sob o regime dos Recursos Especiais Repetitivos, em 2006. Para o Min. Dias Toffoli, não haveria distinção material entre os casos capaz de justificar tratamento diferenciado pelo poder judiciário.

Os recorrentes, então, interpuseram agravo regimental para que o recurso fosse julgado pelo Colegiado. Nesse sentido, houve pedido de vista pelo Min. Roberto Barroso, sob o argumento de que só haveria respaldo jurídico para defesa da possibilidade da penhora de bem imóvel de família do fiador caso se tratasse de locação destinada à moradia, fato este que, diferentemente do acórdão-paradigma, não se verifica no caso concreto. Portanto, se consubstanciaria numa distinção fática potencialmente capaz de alterar a conclusão jurídica que foi alcançada pelo STF no passado.

O Min. Roberto Barroso retomou a discussão acerca do juízo de ponderação entre os direitos envolvidos na discussão sobre a (im)possibilidade de penhora do fiador de imóvel comercial. Enquanto na locação de imóvel residencial houve confronto entre o direito de moradia do locatário versus o direito de moradia do fiador, aqui há confronto entre o direito de moradia do fiador versus o direito à livre-iniciativa do locatário, ambos constitucionais. Segundo o Min. Roberto Barroso:

O valor constitucional contraposto, Vossa Excelência tem razão, não é o direito de moradia. Porém, a lógica de baratear o custo da fiança, na locação residencial, também se aplica, ao baratear o custo da locação, na locação comercial, porque não temos de pensar no grande empresário. Há pequenos empreendedores que também precisam de fiador para a locação, aliás, esses são os que mais precisam. Portanto, em última análise, a gente penalizaria o pequeno empresário em favor de um fiador que assumiu espontaneamente uma obrigação. Por essas razões, eu me convenci de que também deveria se aplicar à locação comercial a mesma lógica, embora eu seja capaz de intuir o sentimento de Vossa Excelência, de que direito de moradia não tem o mesmo status de livre-iniciativa, conquanto ambos sejam valores constitucionais.

No entanto, o Min. Roberto Barroso parece ter superado as reflexões que o fizeram pedir vistas do processo, mormente porque apresentou voto acompanhando o relator Min. Dias Tofolli, sustentando que a fundamentação jurídica do precedente também é cabível para os contratos de locação comercial, visto que, muito embora não compreende direito à moradia do locatário, abrange seu direito à livre-iniciativa, ambos resguardados por normas de ordem constitucional. Assim, a distinção fática relativa à destinação da locação (residencial ou comercial) não seria suficiente para afastamento da rule do caso paradigma.

Em sentido contrário se posicionou a Min. Rosa Weber, que abriu divergência ao afirmar que o bem de família do fiador não pode sacrificado em prol da satisfação de um crédito do locador do imóvel comercial ou mesmo para estimular a livre-iniciativa.

A ministra defendeu que sujeitar à constrição ou alienação forçada o único bem imóvel do fiador gera uma situação de extrema disparidade e desproporcionalidade de tratamento dispensada ao locatário e ao fiador. Afirmou que permitir a penhora, nessa hipótese, seria ofender frontalmente a dignidade da pessoa humana, a proteção à família (arts. 1º, III, e 226, caput, da CF) e o princípio da isonomia.

Neste diapasão, concluiu que o núcleo decisório que orientou o julgamento do paradigma julgado pelo STJ no Regime dos Recursos Especiais Repetitivos, e mesmo pelo próprio STF, não permitem que se chegue às mesmas conclusões quando se trata de imóvel comercial, assim como reiterou que os argumentos favoráveis à liberdade contratual e a autonomia do fiador não podem infringir “os limites estabelecidos em normas de ordem pública, de natureza cogente, voltadas à promoção de outros valores constitucionalmente protegidos”[7].

Em seu voto, destacou que embora haja coincidência – aparente – entre os fatos discutidos nos casos para atrair a aplicação do precedente judicial firmado pelo STF no passado e recentemente no STJ, no julgamento do repetitivo em 2014, a ratio decidendi outrora construída não deve ser aplicada no caso concreto porque se tratam de situações fático-jurídicas distintas[8], que desautorizam a importação da norma do precedente para o caso em julgamento, que versa sobre locação comercial.

A ministra considerou que se trata de uma distinção material relevante[9] o fato de que o tipo de locação que se está tratando no caso em julgamento versa sobre imóvel destinado para fins comerciais e não residenciais, tal como consta do acórdão paradigma.

Uma vez que a locação é destinada a fins residenciais e a locação do caso em julgamento é comercial, não haveria o preenchimento do suporte fático da norma do precedente do caso paradigma capaz de justificar a sua incidência no caso concreto.

Portanto, reputou a Min. Rosa Weber que se estava diante de um fato materialmente relevante à identificação da ratio decidendi do precedente a destinação da locação urbana para fins de aplicação ou afastamento do precedente.

É que não obstante se tratem ambos os contratos de locação urbana, o fato de serem destinados a propósitos diferentes afasta a aplicação das razões de decidir outrora sedimentadas pelo STF e ratificadas pelo STJ. É uma distinção bastante que impede a automatização do raciocínio legal de aplicação do precedente invocado pelo Min. Dias Toffoli.

Isso porque, no contexto ora avaliado, são protagonistas da controvérsia judicial o direito à livre-iniciativa, prestigiado no art. 1º, caput, da CF e o princípio geral da atividade econômica, previsto no art. 170, parágrafo único, da CF[10]. Sobre o direito à livre-iniciativa econômica privada, acerca do assunto José Afonso da Silva:

A liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato. (…) É legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima, quando exercida com o objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário[11].

Outrossim, doutro lado, tem-se o direito à moradia. Logo, tratando-se locações voltadas a objetivos materialmente distintos, mormente porque vertidos ora à proteção da livre-iniciativa; ora voltados à proteção do direito à moradia, necessário que se faça um juízo de distinguishing entre os casos – paradigma e caso em julgamento – para externalizar soluções jurídicas diferentes, já que não se está diante de uma situação materialmente idêntica, o que afasta a aplicação da norma do precedente[12].

Com efeito, a veiculação da distinção no caso concreto não representou, por si, uma rejeição à norma do precedente anteriormente firmado. Pelo julgamento realizado não existe o reconhecimento de erro na norma do precedente invocado, mas tão somente que a regra do precedente é inaplicável ao caso em julgamento[13]. A autoridade do precedente é resguardada, mantendo-se íntegra, para aqueles casos em que esteja diante de contrato de locação residencial.

Sob o mesmo ponto de vista, acompanhou a divergência inaugurada pela Min. Rosa Weber o Min. Marco Aurélio, sustentando a impossibilidade de aniquilação de um direito fundamental (moradia) em benefício da livre-iniciativa. Também votou com a divergência o Min. Luiz Fux, no sentido da impenhorabilidade do bem de família do fiador quando se tratar de contratos de locação para fins comerciais, sendo este fato materialmente distinto daquele outro julgamento sobre o qual se debruçou o STF, motivo pela qual as razões de decidir não se aplicariam no caso em julgamento.

Verifica-se, portanto, que embora os acórdãos aqui comentados abordem, em princípio, uma questão jurídica semelhante, qual seja: a possibilidade de se penhorar o imóvel de família do fiador nos contratos de locação urbana; existem peculiaridades fático-jurídicas circunscritas a estes contratos de locação que justificam o tratamento diferenciado pelo judiciário, mormente em atenção à ratio decidendi do precedente – dado em contexto de locação urbana residencial – em relação àquela que se está sob julgamento, locação comercial.

Por isso, considerando a distinção materialmente relevante quanto às circunstâncias fáticas e econômicas do contrato de locação, inviável a aplicação automática daquela ratio decidendi, que passa por um processo de refinamento e adequação a este tipo de situação contratual, em que se concluiu pela impossibilidade de penhora do imóvel do fiador.

Esses dois julgamentos do STJ e do STF apresentam-se como bons exemplos do refinamento da norma do precedente com o tempo, como um importante mecanismo de aprimoramento e delimitação da ratio decidendi, já que a lógica dos precedentes não é a estanqueidade do direito e sua imutabilidade, mas sim a busca pelo equilíbrio entre estabilidade e adaptabilidade, em especial, diante de circunstâncias fático-jurídicas diferentes[14][15].

O que efetivamente o STF fez no julgamento do RE nº 605.709/SP foi o reconhecimento da distinção material existente em cotejo com o julgamento do STJ no Tema 708 e mesmo com o julgamento feito pelo STF no RE com repercussão geral nº 612.360, em 2010, e RE nº 407.688 de 2006, adequando a compreensão da ratio decidendi para reconhecer a sua inaplicabilidade no caso em julgamento. Este processo é natural e desejável, desde que feito de forma estruturada pelo tribunal julgador, na exata medida em que o significado do precedente não está pronto e acabado quando de sua construção, mas em constante processo de aprimoramento.

Isto quer significar, então, que ratio decidendi não estará limitada apenas ao que foi construído no caso precedente, na medida em que existe um contínuo processo de ganho hermenêutico e normativo da ratio decidendi nos casos posteriores, tal como no caso concreto em que se identifica uma hipótese materialmente distinta para afastar a aplicação da norma do precedente, externalizando que não integram o suporte fático daquela hipótese normativa os contratos de locação comercial, para fins de afastamento da regra da impenhorabilidade do bem de família do fiador.

É que o julgamento posterior agrega conteúdo à ratio decidendi anteriormente formada. Não há a simples interpretação da norma precedente antiga, mas o efetivo refinamento da ratio decidendi, que ganha novo corpo em virtude do julgamento de um novo caso, como este do STF, alterando seu campo de incidência e a própria hipótese normativa[16].

Essa questão pode ser verificada diante do que o STF considerou – posteriormente – como fato materialmente relevante para atribuir um tratamento jurídico diverso daquele anteriormente sedimentado à questão de se estar diante de um contrato de locação comercial, em que os valores jurídicos envolvidos são diferentes, pelo que se justifica o afastamento da norma do precedente do STJ que refletia o entendimento do próprio STF firmado em 2006.

Destarte, pode-se compreender que os julgamentos do STF em 2006 e 2010, assim como julgamento do próprio STJ em 2014, por não tratarem de locação comercial, não podem ter a ratio decidendi estendida ao caso que estava em julgamento no STF porque, conquanto se tratem de fatos aparentemente similares, são materialmente distintos quando analisada a destinação do contrato de locação.

Essa conclusão é importante para que se observe que o julgamento pelos tribunais, ainda que sob o regime de repetitivos e mesmo de Recurso Extraordinário com Repercussão Geral, não exaure as significações potenciais da norma do precedente, e a distinção pelo julgado posterior funciona como um redutor de incerteza quanto ao campo de atuação da ratio decidendi, já que há o refinamento do precedente após a sua formação[17], como um movimento natural do controle de aplicabilidade dos precedentes. Essa ferramenta de operabilidade dos precedentes – distinguishing – é essencial à correta utilização de um sistema de precedentes judiciais e pode ser verificada nestes julgados do STF e do STJ.

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SCHAUER, Frederick. Thinking Like a Lawyer: a new introduction to legal reasoning. London: Harvard University Press, 2009.

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.


[1]       Vejamos as razões que utilizou o Desembargador para condução de seu voto: “I. O Estado-juiz não pode ser conivente com a tentativa de despojar o fiador e sua família do refúgio de sua residência para, mediante expropriação forçada, converter o bem de família em pecúnia, a fim de satisfazer o crédito do locador frente ao afiançado. II. Tal proceder, antes de demonstrar o completo esvaziamento do princípio da solidariedade e a absoluta indiferença com a dignidade do garantidor e sua família, reflete sobreposição de um direito disponível – crédito – sobre um direito fundamental – moradia.”

[2]       BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: procedimento comum ordinário e sumário. Vol. 2. Tomo I, 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 503.

[3]       BUENO, Cassio Scarpinella. O terceiro no processo civil brasileiro e assuntos correlatos: estudos em homenagem ao Professor Athos Gusmão Carneiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, pp. 160-167.

[4]       CUNHA, Leonardo Carneiro. Assistência no Projeto do Novo Código de Processo Civil Brasileiro. In: AURELLI, Arlete Inês, et al (coords.) O direito de estar em juízo e a coisa julgada: Estudos em homenagem a Thereza Alvim, São Paulo: RT, 2014, p. 4.

[5]       Em sentido semelhante, destacando uma ampliação do debate por meio do amicus curiae e audiências públicas na tutela dos direitos daqueles que não estão presentes na relação processual, Cf.: “(…) o importante, portanto, para que se garanta a legitimidade constitucional da eficácia vinculantes dos padrões decisórios não é que todas as pessoas participem do processo, mas que todos os tipos de interesse que podem ser atingidos pelo padrão decisório a ser formado estejam no processo” (CÂMARA, Alexandre Freitas. Levando os padrões decisórios a sério. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 236).

[6]       Recurso Extraordinário nº 605.709, Rel. Min. Dias Tofolli, julgado em 12.06.2018.

[7]       Nesse sentido: “A imposição de limites à penhora de certos bens constitui conquista civilizatória, endereçada a assegurar o mínimo existencial. Admitir penhora de bem de família para satisfazer débito decorrente de locação comercial, em nome da promoção da livre-iniciativa, redundaria, no limite, em solapar todo o arcabouço erigido para preservar a dignidade humana em face de dívidas.” (voto da Min. Rosa Weber no Recurso Extraordinário nº 605.709, Rel. Min. Dias Tofolli, julgado em 12.06.2018).

[8]       GOODHART, Arthur L. Determining the ratio decidendi of a case. The Yale Law Journal, vol. 40. No. 2. (Dec., 1930), p. 169.

[9]       Sobre material facts e a importância destes para correta aplicação da ratio decidendi: SCHAUER, Frederick. Thinking Like a Lawyer: a new introduction to legal reasoning. London: Harvard University Press, 2009, p. 55.

[10]      “20. No caso de locação de imóveis comerciais, portanto, a possibilidade de eventual penhora do bem imóvel dos fiadores, ao conferir uma garantia mais robusta ao locador, serve como meio de viabilizar concretamente o exercício da livre-iniciativa do locatário. 21. A possibilidade de penhora do bem de família do fiador – que voluntariamente oferece seu patrimônio como garantia do débito – impulsiona o empreendedorismo, ao viabilizar a celebração de contratos de locação empresarial em termos mais favoráveis.” (voto do Min. Roberto Barroso no Recurso Extraordinário nº 605.709, Rel. Min. Dias Tofolli, julgado em 12.06.2018).

[11]      SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 767-768.

[12]      SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford law review. v. 39. 1987. p. 594.

[13]      “In the most routine instances, the activity of distinguishing leaves the authority of precedent undisturbed, for a court is declaring an earlier decision not to be bad law, but to be good but inapplicable law” (DUXBURY, Neil. The Nature and Authority of precedent. London: Cambridge University Press, 2008, p. 114).

[14]      LIMA, Tiago Asfor Rocha. Precedentes judiciais civis no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 140.

[15]      COLE, Charles D. Precedente judicial: a experiência americana. Revista de Processo. Vol. 92, pp. 71-86, Out-Dez 1998, p. 11.

[16]      MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 5. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 180.

[17]      ALEXANDER, Larry. Constrained by precedent. Southern California law review, Los Angeles, vol. 63, nov. 1989. pp. 21-24.


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