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Porque o rol de procedimentos da ANS importa
Henderson Fürst
23/09/2022
Recentemente, a discussão sobre a natureza do rol de procedimentos da ANS ganhou o noticiário e as conversas cotidianas, e aqueceu com a recente edição da Lei 14.454/2022, que determinou ser exemplificativo. Todavia, pouco se fala sobre os riscos que isso pode implicar a pacientes.
A saúde suplementar e a medicina baseada em evidências
A história da saúde no Brasil demonstra que, entre os sécs. XVI e XIX, diversas “medicinas” conviveram simultaneamente, atendendo diferentes grupos sociais e com distintas bases de conhecimento. Por exemplo, a população originária cultivava práticas de cura com base em plantas medicinais e ritualísticas – costumes que foram aprendidos pelos bandeirantes e imigrantes como formas de sobrevivência. Documentos históricos demonstram que, neste período, também existiam “médicos feiticeiros”, curadores que praticavam atos religiosos com o intento de cura pela fé, pois era o conhecimento disponível à população de africanos escravizados, mestiços, caboclos e caipiras, e que aos poucos também incorporou a medicina indígena. Ao lado de tais práticas, médicos e cirurgiões licenciados, como Gomes Ferreira, procuravam adaptar o conhecimento estrangeiro às condições sanitárias brasileiras, renovando-se a farmacopeia conhecida conforme as interações culturais com os povos nativos aumentaram.
Também os sistemas de saúde que irão se constituir até a Constituição Federal de 1988 serão múltiplos. Inicialmente, surgem as Santas Casas de Misericórdia, depois os hospitais e clínicas públicos e, então, aqueles da iniciativa privada, com sistemas mutualistas normalmente relacionados a grupos de empregados.
A Constituição de 1988 organizou o sistema nacional de saúde estabelecendo o Sistema Único de Saúde e a Saúde Suplementar que, embora com estruturas normativas e institucionais distintas, interagem e se espelham em diversos aspectos. Um dos espelhamentos diz respeito ao modelo de medicina praticado. Diferentemente dos séculos anteriores, não há mais espaço no sistema de saúde para o que não seja medicina baseada em evidências (“MBE”), um modelo científico cujas raízes se encontram no cuidado orientado pelo conhecimento científico e na microeconomia da saúde. E isso não é jabuticaba. É aplicado nos sistemas de saúde mais bem estruturados do mundo.
Mesmo com este desenvolvimento, parte da população brasileira e alguns de seus técnicos tem apreço por práticas não baseadas em evidências, como é o caso da fosfoetanolamina sintética, para pacientes diagnosticados com neoplasia maligna – que, inclusive, possui autorização dada por força de Lei (Lei 13.269/2016) – e da cloroquina, para Covid-19 – até mesmo preventivamente.
Porque o rol de procedimentos da ANS importa
Neste sentido é que se precisa observar a nova Lei 14.454/2022, que estabelece o rol de procedimentos de cobertura obrigatório no sistema de saúde suplementar como exemplificativo, devendo-se também cobrir procedimentos prescritos desde que (i) exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico ou (ii) existam recomendações pela Conitec, ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.
A nova lei fala, unicamente, em “evidências científicas” como requisito autorizador de procedimentos fora do “rol da ANS”. Ocorre que, na MBE, considera-se que há níveis distintos de evidências, conforme sua qualidade científica, de modo que há evidências que podem e devem ser considerada em processos decisórios de incorporação de tecnologia ou prática clínica, e há evidências que não possuem força suficiente para assegurar segurança e eficácia, como é o caso do famoso estudo francês que recomendava o uso de hidroxicloroquina para tratamento de Covid-19 e foi retirado do ar devido à sua fragilidade científica.
Com isso, a determinação legal que o sistema suplementar de saúde custeie procedimentos sem estabelecer qual o mínimo de evidência científica que se deve considerar será um retrocesso, à medida que possibilitará práticas médicas sem qualquer segurança e eficácia. Surgirá uma disparidade entre pacientes, pois terá aqueles com acesso ao que foi analisado e incorporado pela Conitec e, outros, expostos a potenciais práticas de baixa qualidade de evidência científica, sem segurança ou eficácia, mas com elevados valores ao sistema mutualista.
Na prática, não apenas aumentará a realização de juntas médicas para dirimir divergência técnico-assistencial, nos termos da RN 424/2017 da ANS, como também ampliará a judicialização da saúde no Brasil e a inflação médica repassada aos pacientes.
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