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ICMS e a tributação de energia elétrica: alguns aspectos controvertidos

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Kiyoshi Harada

Kiyoshi Harada

12/09/2019

A tributação de energia elétrica merece exame sob os mais variados aspectos, dos quais alguns suscitam vivas controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais. Examinaremos neste trabalho alguns deles.

A energia elétrica como mercadoria

A Constituição Federal de 1988, inovando a conceituação tradicional de mercadoria, definiu energia elétrica como um bem corpóreo passível de circulação ensejadora do ICMS.

De fato, inseriu na atribuição de competência impositiva dos Estados-membros a instituição de Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre a Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (art. 155, II, da CF). Logo, a energia elétrica só pode ser tributada pelo ICMS a título de mercadoria. O § 3º do art. 155 da CF acrescentou:

À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleos, combustíveis e minerais do País.[1]

A energia elétrica, que na ordem constitucional antecedente estava incluída no rol de tributação do chamado imposto único de competência impositiva da União, conhecido pela sigla IUCLL, foi deslocada para a competência tributária dos Estados-membros por meio do ICMS.

No início da vigência do novo Sistema Tributário Nacional, alguns autores chegaram a sustentar a inconstitucionalidade da tributação da energia elétrica pelo ICMS sustentando não ser ela uma mercadoria, isto é, não é um bem material nem um serviço incluído na competência tributária dos Estados-membros. O poder constituinte original, na verdade, não sofre qualquer tipo de restrição, a não ser aquelas de natureza metajurídica. Logo, não cabe discutir se energia elétrica é ou não um bem material passível de tributação pelo ICMS.

Felizmente, a discussão da espécie não prosperou. O debate em torno da expressão “outros tributos” já havia sido superado pelo STF antes da EC 33/2001, sob a velha tradição de submeter a energia elétrica, combustíveis e lubrificantes líquidos ao regime do imposto único.

Regime de tributação nas operações interestaduais

Dispõe a Constituição Federal:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993.)
[…]
§2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
[…]
X – não incidirá:
[…]
b) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica.
[…]
4º Na hipótese do inciso XII,h,[2] observar-se-á o seguinte:(Incluído pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001)
I – nas operações com os lubrificantes e combustíveis derivados de petróleo, o imposto caberá ao Estado onde ocorrer o consumo; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001.).

Dispõe, também, a Lei Complementar 87/1996, lei de regência nacional do ICMS, que esse imposto incide sobre a entrada de energia elétrica no Estado destinatário por meio de operações interestaduais sempre que não for destinada à comercialização ou à industrialização (art. 2º, § 1º, III). Quando destinada à comercialização ou à industrialização, a operação interestadual é imune (art. 155, § 2º, X, b, da CF).

Entre os inúmeros aspectos que o tema suscita, examinaremos, neste artigo, dois deles: o da seletividade e o do sujeito ativo na ação de repetição.

Da seletividade do imposto

Dispõe o art. 155, § 2º, III, da CF que o ICMS “poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”.

Não se trata de imposto seletivo, mas de imposto cujas alíquotas poderão ser seletivas em razão da essencialidade dos bens objetos de circulação mercantil.

Não concordamos com o posicionamento de alguns estudiosos que, a partir da distinção entre normas de estrutura e de conduta, inclui o retrocitado inciso III do § 2º do art. 155 da CF entre as primeiras, para sustentar que o legislador ordinário deve, necessariamente, observar a seletividade em função da essencialidade das mercadorias ou serviços. A seletividade integraria, por assim dizer, o próprio processo legislativo.

Em que pesem o esforço e a erudição demonstrados por defensores dessa corrente, não se pode inverter o significado etimológico da palavra “poderá”, que não deve ser confundida com a palavra “será”, que consta com relação ao IPI (art. 153, § 3º, I, da CF). O ICMS poderá ser seletivo, ao passo que o IPI deverá ser seletivo. É o que determina a Carta Magna. Não vejo como possa sustentar que a seletividade do ICMS integra o processo legislativo, com fundamento no conceito de norma de estrutura que não tem pertinência ao caso sob exame.

Mais grave ainda a confusão feita entre o verbo “poder” e o substantivo “poder” para sustentar que, quando o Texto Magno confere um poder, está concedendo ipso facto um dever. É certo que existe o poder-dever dos entes políticos, como bem salienta o festejado jurista Celso Antônio Bandeira de Mello. No entanto, trata-se de poder como força imanente do Governo para atingir a finalidade do Estado. Nada tem a ver com a disposição constitucional sob comento que emprega a palavra “poderá” como futuro do verbo poder.

Contudo, a faculdade de implementar a seletividade das alíquotas do imposto não significa liberdade do legislador em impor alíquotas mais gravosas para mercadorias e serviços considerados essenciais. É como um preceito constitucional de natureza programática, que surte efeito por seu aspecto negativo, isto é, o legislador ordinário não poderá editar normas que a contravenham, mas poderá deixar de implementá-la.

Se é verdade que não há definição legal do que sejam mercadorias e serviços essenciais, não é menos verdade que a Constituição não conferiu ao legislador ordinário margem de liberdade para adoção de critério político destoante do conceito de essencial, de necessário, de indispensável em termos de realidade social vivenciada em nosso país. Basta imaginar um blackout por apenas 24 horas para que possamos ter ideia do quão essencial é a energia elétrica para a moderna sociedade em que vivemos. A melhor forma de descobrir a violação do princípio da seletividade é examinar a legislação confrontando mercadorias e serviços com as respectivas alíquotas.

No que se refere à venda de energia elétrica, a legislação do Estado de São Paulo prevê as seguintes alíquotas: a) 12% com relação ao consumo residencial de até 200 kwh por mês; b) 25% com relação ao consumo residencial acima de 200 kwh por mês; c) 12% com relação à energia utilizada no transporte público; e d) 12% com relação à energia utilizada em propriedade rural onde haja exploração agrícola ou pastoril e que esteja inscrita no cadastro de contribuintes do ICMS.

Salta aos olhos que a alíquota de 25%, prevista na letra bretro, desatende à faculdade prevista no preceito constitucional sob análise, porque a presumível capacidade contributiva do consumidor de energia elétrica domiciliar é irrelevante para implementação da alíquota seletiva. O que importa é apenas sua seletividade em função da essencialidade da mercadoria e do serviço. Como é possível sustentar que a energia elétrica é essencial para quem apresenta baixo consumo e não o é para quem apresenta um elevado consumo?

No estágio atual da civilização, a energia elétrica é sempre um bem essencial. Sua ausência acarretaria a paralisação do processo produtivo, e nem haveria circulação de riquezas. A energia elétrica é a força motriz que gera o desenvolvimento econômico-social.

Por isso, não comporta gravame maior relativamente a outros bens tributados pelo ICMS. Digo bens para abranger mercadorias e serviços, como prescreve a Constituição, e não mercadorias ou serviços. Impõe-se o confronto conjunto de mercadorias e serviços para eleger o critério de seletividade em função da essencialidade dos bens. Nesse sentido também é a lição de José Eduardo Soares de Melo: “Note-se que a essencialidade consiste na distinção entre cargas tributárias, em razão de diferentes produtos, mercadorias e serviços, traduzidos basicamente em alíquotas descoincidentes”.[3]

A discriminação do consumo de energia domiciliar acima de 200 kwh violenta, pois, duplamente o preceito constitucional que faculta a seletividade de alíquotas, penalizando consumidores que mais se utilizam de bens duráveis representados por aparelhos elétricos e eletrônicos, atingindo indiretamente os setores produtivos desses bens. E mais, sequer leva em conta o consumo per capita, pois cada família tem número diferente de membros.

O que o legislador infraconstitucional fez foi aumentar a alíquota do ICMS, em que a arrecadação é mais fácil, invertendo o sentido da faculdade conferida pelo legislador constituinte. Adotou-se um critério político para definição de política tributária assentada no critério da arrecadação mais rendosa e a custo zero, insusceptível de sonegação.

Sem dúvida, essa alíquota de 25% incidente sobre o consumo de energia domiciliar, que, na prática, corresponde a uma alíquota real de 33,35%, porque o ICMS incide sobre si próprio, é inconstitucional. Não é razoável supor que essa energia elétrica seja menos necessária ou importante do que a generalidade das mercadorias gravadas com a alíquota de 18%, ou que essa mesma energia é essencial somente até o limite de 200 kwh por mês. Cabe ao Judiciário, se provocado, pronunciar sobre a quebra do princípio da seletividade que não está inserido na margem de discrição do legislador ordinário, que não pode inverter o significado da expressão “seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”, atentando contra o princípio da razoabilidade que, por si só, já é um limite ao exercício da atividade legislativa.

5. Sujeito ativo da ação de repetição

Se esse ICMS de 25% é inconstitucional, pode ser objeto de ação de repetição.

Quem pode requerer essa ação?

A jurisprudência, coerente com a tese de que a relação processual deve ser instaurada entre as mesmas partes da relação material, tem considerado o consumidor de energia elétrica como parte ilegítima para pleitear a restituição do imposto (REsp 983.814/MG, Rel. Min. Castro Meira, j. 04.12.2007; RMS 23.571/RJ, Rel. Min. Castro Meira, j. 06.11.2007; RMS 19.121/RS, Rel. Min. Castro Meira, DJU 12.09.2005; RMS 7.004/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ 03.06.2002; REsp 279.491/SP, Rel. Min. Peçanha Martins, DJ 10.02.2003).

Se for parte ilegítima para pleitear a restituição do indébito, estará igualmente impedido de propor qualquer outra ação contra a Fazenda visando à não incidência dessa alíquota escorchante, visto que o contribuinte do imposto é a empresa fornecedora (vendedora) de energia, e não o consumidor, impropriamente batizado pela doutrina como “contribuinte de fato”, numa clara confusão entre o jurídico e o econômico. Falar em “contribuinte de direito” e em “contribuinte de fato” seria o mesmo que referir-se a “juiz de direito de direito” e a “juiz de direito de fato”. A primeira expressão configura um pleonasmo e a segunda uma figura estranha no mundo do Direito, portanto sem qualquer relevância jurídica.

A irrazoabilidade e até a irracionalidade da legislação tributária, que inverte e perverte o sentido da faculdade conferida pela Carta Política, exacerbando a carga tributária de bens e serviços essenciais, resultam menos do desconhecimento de princípios norteadores do Direito e mais do desprezo do Estado pelos valores fundamentais do Direito, expressos pelos princípios da boa-fé e da lealdade.

O Estado sabe, de antemão, que o contribuinte do ICMS, empresa fornecedora de energia elétrica (art. 34, § 9º, do ADCT e art. 9º, § 1º, II, da LC 87/1996), não ingressaria em juízo para questionar um imposto que ela repassa com maior tranquilidade para o consumidor, que não tem o direito de ação contra o fisco. Aliás, não só o ICMS é repassado, como também os valores recolhidos pela fornecedora a título de PIS/Pasep e Cofins, como consta da “conta de luz”. Todos os valores desses tributos integram, com o valor de energia consumida, o preço final a ser pago pelo consumidor.

Então, pergunta-se: qual o remédio jurídico para o consumidor que arca com o ônus de um imposto inconstitucional?

Vale a pena debruçar-se sobre o sentido da norma disposta no art. 166 do CTN, que assim dispõe:

A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la. (grifamos)

Da expressão grifada, pode-se concluir que o texto sob exame conferiu o direito à repetição, em caráter exclusivo, a quem provar ter assumido o encargo financeiro do tributo. Essa prova está estampada na própria “conta de luz”, na qual consta a inclusão do valor do ICMS, do PIS/Pasep e da Cofins no preço final a ser pago pelo consumidor.

Se o consumidor tem o direito material, há de existir uma ação que o assegure. Essa ação é a de repetição. O CTN, pois, permite, excepcionalmente, que o consumidor, que não foi parte na relação material entre o fisco e o contribuinte, pleiteie a restituição diretamente contra o fisco. Esse fato em nada prejudica o contribuinte, que já recebeu por antecipação o valor do crédito tributário objeto de restituição.

Esse posicionamento, na verdade, encontra respaldo em pelo menos um precedente jurisprudencial do STJ:

O consumidor final é o sujeito passivo da obrigação tributária, na condição de contribuinte de direito e, ao mesmo tempo, de contribuinte de fato, e, portanto, parte legítima para demandar visando à inexigibilidade do ICMS sobre os valores relativos à demanda contratada de energia elétrica. (REsp 829490/RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJU 29.05.2006, p. 205)

Em que pesem a utilização das expressões “contribuinte de direito” e “contribuinte de fato”, a que nos opomos, e a circunstância de a questão ter versado sobre a incidência do ICMS sobre a “demanda contratada” ou “demanda de potência”, e não sobre aquela energia efetivamente consumida, o julgado é de suma importância a fim de abrir um caminho para combater a astúcia legislativa timbrada por má-fé e repugnada pelo Direito. Não existe nem pode existir direito fundado em má-fé.

É perfeitamente razoável e justa, sob todos os aspectos, a exceção aberta pelo art. 166 do CTN, que permite ao consumidor substituir o contribuinte no polo ativo para pleitear diretamente da Fazenda o tributo inconstitucional economicamente suportado.

A alegação de que o acolhimento dessa tese ensejaria efeito multiplicador da lide, com milhares de consumidores batendo às portas do Judiciário, além de não configurar um argumento jurídico, não tem respaldo na realidade atual em que há possibilidade de uma ação de natureza coletiva e também a edição de súmula com efeito vinculante.

Conclusão 

A cobrança do ICMS à alíquota de 25% incidente sobre o consumo de energia domiciliar superior a 200 kwh por mês viola duplamente o preceito constitucional da seletividade em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços porque:

a) a energia elétrica não pode ser considerada, à luz da realidade social vigente, um bem supérfluo ou menos importante em confronto com a generalidade das mercadorias gravadas pela alíquota de 18%

b) a energia elétrica consumida além de 200 kwh por mês não pode ser considerada supérflua ou menos importante do que aquela consumida até o limite de 200 kwh por mês. Não há critério razoável para essa distinção, que é arbitrária.

Cabe ao consumidor ingressar com a ação declaratória de inexigibilidade do ICMS de 25%, cumulada com a de repetição de indébito, sob o amparo do art. 166 do CTN, que confere essa faculdade a quem fizer a prova de que suportou o encargo financeiro do tributo, bastando para tanto a simples apresentação da “conta de luz”.

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[1] Redação dada pela EC 33, de 11.12.2001. A redação original referia-se a “nenhum outro tributo”, o que suscitava controvérsias na doutrina e na jurisprudência quanto à incidência ou não de contribuições sociais.

[2] “XII – cabe à lei complementar:
[…]
h) definir os combustíveis e lubrificantes sobre os quais o imposto incidirá uma única vez, qualquer que seja a sua finalidade, hipótese em que não se aplicará o disposto no inciso X,b.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001)”.

[3] MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 7. ed. São Paulo: Dialética, 2004. p. 266.


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