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Dever fundamental de contribuir (pagar impostos)

DEVERES FUNDAMENTAIS

IMPOSTOS

LIVRO DIREITO TRIBUTÁRIO

Eduardo Muniz Machado Cavalcanti

Eduardo Muniz Machado Cavalcanti

06/01/2023

Neste trecho do livro Direito Tributário, Eduardo Muniz Machado Cavalcanti discorre sobre o dever fundamental de contribuir, como o dever de pagar impostos, uma categoria constitucional própria posta ao lado dos direitos fundamentais. Leia!

Dever fundamental de contribuir (pagar impostos)9

A expressão “dever fundamental de pagar impostos” é encontrada na obra clássica de Casalta Nabais10 como dever fundamental de contribuir para a manutenção das despesas públicas, e, por isso, de caráter autônomo e jurídico, não representando um mero apelo moral, mas, antes de tudo, uma obrigação imposta aos cidadãos que deve ser respeitada, sob pena de repressões ou punições em face de sua transgressão.

Os deveres fundamentais, tal como o de “pagar impostos”, refletem uma categoria constitucional própria posta ao lado dos direitos fundamentais e, com esses, mantêm o mesmo nível de igualdade axiológica diante do ordenamento jurídico. Em razão dessa autonomia, os deveres fundamentais expressam imediata ou diretamente valores e interesses comunitários diferentes e, em algumas medidas, contrapostos aos valores e interesses individuais consubstanciados nos direitos fundamentais. Admitindo-se, portanto, que há deveres fundamentais inerentes a cada cidadão, assim como há, da mesma forma, direitos. Os contornos de tais direitos e deveres ligados ao cidadão serão perfilados pela imbricação desses institutos, construindo barreiras recíprocas de atuação.

Não há propriamente uma simetria entre direitos e deveres, posto não haver uma correlação direta e imediata de que para cada direito contrapõe-se um dever. Diz-se, portanto, que existe uma assimetria por autonomia própria, seja de um direito ou de um dever.11

Cristina Pauner Chulvi12 afirma que, embora não haja uma teoria da correlatividade entre direitos e deveres fundamentais, entende-se no Estado Social Democrático de Direito que os direitos e os deveres são categorias inseparáveis e, portanto, não existem direitos sem o cumprimento de um mínimo de deveres. Nem o outro extremo pode ser admitido, qual seja, um Estado baseado em um regime unilateral de deveres impostos aos cidadãos.

Em continuação, a referida autora cita exemplos nos quais os deveres constituem verdadeiros pressupostos de proteção dos direitos fundamentais, como o direito à educação, que se garante graças aos recursos obtidos por meio do cumprimento dos cidadãos do dever de pagar impostos; ou mesmo o direito à tutela judicial, que se efetiva, ou se faz possível, com a observância do dever de ser jurado quando chamado; e ainda, o direito ao voto, que só é praticável com a realização do dever de participação cidadã nas mesas eleitorais. A tese da correlatividade entre direitos e deveres é descartada atualmente, pela própria autora espanhola, principalmente no âmbito tributário, pois os impostos, como se sabe, são tributos que não exigem a contraprestação do Estado, ao contrário das taxas e das contribuições de melhoria, e, ainda, das contribuições sociais. Sendo assim, descarta-se a ideia outrora construída de que a cada direito corresponde um dever, pois, especialmente na esfera tributária é preferível adotar a relação entre potestad administrativa (poder administrativo ou, se preferir, poder-dever) e os deveres dos contribuintes.

Não é propriamente um direito subjetivo do Estado, mas um poder-dever tributário, pois caso fosse admitida a noção de direitos subjetivos, esses poderiam ser disponíveis, o que não é admissível no âmbito tributário, especialmente no Direito Público, cujos contornos buscam evitar a possibilidade de renúncia do ente público de suas prerrogativas, haja vista estar a serviço da coletividade.13 

A noção acima exposta de deveres fundamentais é decorrência do surgimento do Estado Social. Antes, a ideia de Estado Liberal, cujas diretrizes se baseiam no enaltecimento exagerado e praticamente absoluto dos direitos e das liberdades individuais, cujas “mãos invisíveis do Estado” pouco interferem na dinâmica social, cede espaço a um intervencionismo necessário para satisfazer o interesse da sociedade. O Estado deixa de ser observador para se tornar prestador e garantidor de condições mínimas vitais ao cidadão. Houve uma redefinição da ordem, na qual as relações entre Poder Público e o povo ganharam novo desenho.

As liberdades e os direitos individuais, antes invioláveis em sua fase primogênita – Estado Liberal, deveriam ceder espaço aos direitos coletivos, essencialmente dependentes da atuação estatal. Por isso, não se pode mais admitir a existência de direitos absolutos, plenamente resistentes diante das investidas estatais, posto a tutela dos interesses individuais ficar ensombrecida ante a necessidade da tutela do interesse coletivo, identificado, sobretudo, na redistribuição da riqueza, no combate à pobreza e na formação de uma rede de proteção social dos mais vulneráveis.

Todos os cidadãos, portanto, ainda que não estejam comprometidos por uma norma textual programática, estão obrigados a “devolver” algo em troca ao coletivo pelo simples dever de solidariedade, cooperação e justiça social. É o “custo”, ou melhor, o “investimento” por estar sob convívio social e desfrutar de benefícios decorrentes dessa circunstância pactual ideológica.

Os deveres constitucionais são decorrências do Estado social. Estado esse pautado não só no dever de preservação das liberdades individuais dos cidadãos, mas também responsável pela prestação de serviços que possam atender às necessidades e aos anseios sociais. Esta segunda perspectiva configura-se pela modelagem de uma sociedade, na qual todos tenham condições dignas de sobrevivência e, para que isso seja possível, é imprescindível que existam deveres constitucionais, posto considerar, a partir de tais deveres, existir uma série de obrigações concretas que contribuam para a conformação dessa nova ordem social. Todos os deveres constitucionais, portanto, encontram sua fundamentação jurídica no amplo princípio do Estado social, que deve ser interpretado não sob uma perspectiva individualista, mas na ideia de solidariedade porque visa à proteção dos interesses de todos.14 

E é justamente na esteira da noção de solidariedade, como diretriz básica da estruturação do Estado social, que derivam os deveres fundamentais e suas consequentes espécies. O dever de solidariedade é o “supra dever”, como gênero, compreendendo os deveres constitucionais como espécies, em especial o “dever de pagar impostos” ou também conhecido como dever de contribuir. Os deveres fundamentais descansam na solidariedade, que rege todo o sistema do Estado Social e Democrático de Direito.

O “dever de pagar impostos” é um desses deveres fundamentais consubstanciados em nossa ordem constitucional. Embora o texto da Constituição Federal nunca tenha abordado a expressão “dever de pagar impostos” como dever fundamental, tal ausência deve ser suplantada a partir de uma exegese constitucional sistêmica, cujas raízes estão relacionadas ao princípio da capacidade contributiva.

Por hermenêutica sistêmica entende-se a interpretação harmoniosa do ordenamento jurídico. Não se deve apartar a norma de seu contexto, levando o intérprete a aplicar o direito sistematicamente, sob pena de perda da dimensão global do ordenamento jurídico. Em resumo, a interatividade entre as normas jurídicas é a solução para a coexistência do sistema jurídico de forma a integrar os princípios e deveres entre si, evitando uma visão limitada e muitas vezes injusta que a interpretação unitária e isolada de uma norma jurídica pode propiciar.15

O “dever de pagar impostos” poderia ser uma decorrência lógica do princípio da eficiência estatal, pois, sem os recursos financeiros suficientes para a manutenção das despesas públicas, certamente a Administração Pública estaria fadada ao colapso e não alcançaria seu fim maior, ou seja, o atendimento às necessidades sociais. Alguns teóricos16 costumam associar a ideia de que a fiscalização tributária e a imposição da colaboração com o ente fiscal para se apurar as obrigações fiscais são frutos desse preceito. 

Entretanto, o que fundamenta a gestão tributária (obrigações tributárias, fiscalizações etc.) ou mesmo a igualdade de que todos devem contribuir para a manutenção das despesas públicas e políticas sociais, decorrência do “dever fundamental de pagar impostos”, é muito mais a justiça tributária, inspirada e concretizada por meio da capacidade contributiva dos cidadãos, que qualquer significado de eficiência na gestão tributária. Na verdade, em muitos dos casos, apenas esconde a comodidade dos serviços sob atribuições das autoridades administrativas.

Para Betina Treiger Grupenmacher, é certo que o contribuinte tem direitos a serem respeitados no exercício da competência tributária do poder de tributar, mas é igualmente certo que o dever de “pagar impostos” é ínsito à cidadania e decorre da ideia de solidariedade. Cita Francesco Moschetti, “Quando se fala em ‘concurso para com os gastos públicos’ se trata como veremos, de fazer patente o caráter solidário da contribuição e não de fazer uma distinção tão difícil de fundar a partir do ponto de vista jurídico”. 17

Ricardo Lobo Torres destaca a solidariedade como justificativa da capacidade contributiva e fundamenta a cobrança dos impostos.18 Enquanto, para Roque Carraza “os impostos, quando ajustados à capacidade contributiva, permitem que os cidadãos cumpram, perante a comunidade, seus deveres de solidariedade política, econômica e social. Os que pagam este tipo de exação devem contribuir para as despesas públicas não em razão daquilo que recebem do Estado, mas de suas potencialidades econômicas. Com isso, ajudam a remover os obstáculos de ordem econômica e social que limitam, de fato, a liberdade e a igualdade dos menos afortunados”.19

A compreensão do Direito Tributário, como ramo do Direito Público, provoca, portanto, a inclusão do “dever fundamental de pagar impostos”, tendo como objeto pragmático as receitas públicas – próximo subitem a ser tratado, incluído nas diretrizes da solidariedade, da justiça fiscal e da capacidade contributiva, sob convivência com princípios outros, entre os quais o da liberdade econômica, da propriedade privada e da igualdade.

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Notas:

9 CAVALCANTI, Eduardo Muniz Machado. Dever de colaboração dos contribuintes versus direito ao silêncio no âmbito tributário sancionador. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. Ed., 2009.

10 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Livraria Almedina, 1998.

11 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 479.

12 CHULVI, Pauner Cristina. El deber constitucional de contribuir al sostenimiento de los gastos públicos. Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2001, p. 47.

13 CHULVI, Pauner Cristina. El deber constitucional de contribuir al sostenimiento de los gastos públicos. Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2001, p. 65-66.

14 Cristina Pauner Chulvi, sob o contexto da doutrina estrangeira, expõe que esta tem aceitado unanimemente esta vinculação entre o dever de contribuir (“dever de pagar impostos”) e o princípio da solidariedade, entre eles: F. Pérez Royo. Principio de legalidad, deber de contribuir y decretos-leyes en materia tributaria. Revista Española de Derecho Constitucional, n. 13, 1985, p. 67-68; C. Lozano Serrano. Exenciones tributarias y derechos adquiridos. Madrid: Tecnos, 1988, p. 47-49; MORATAL. Orón Notas sobre el concepto de tributo y el deber constitucional de contribuir. En El sistema económico en la Constitución Española. Madrid: XV Jornadas de Estudio de la dirección general del servicio jurídico del Estado, 1994, p. 1602; PAVÉS, M. J. Fernández. Implicaciones del principio constitucional de legalidad tributaria en el ámbito procedimental de tributo. Estudios de Derecho Público. Homenaje al Profesor J. J. Ruiz Rico, v. I, Madrid: Tecnos, 1997, p 264.

15 Sobre o tema, BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 137; BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 155; PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da Constituição e os Princípios Fundamentais. Elementos para uma hermenêutica constitucional renovada. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 50-52. Não menos oportuna é a lição do prof.: Tercio Sampaio Ferraz Júnior ao afirmar que “A primeira e mais importante recomendação, nesse caso, é de que, em tese, qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema, para que se preserve a coerência do todo”. Introdução ao Estudo do Direito. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 285.

16 CAYÓN, Antonio Galiardo. Gestión Tributaria y derechos fundamentales. Revista Técnica Tributaria, n. 3, Madrid, p. 17, 1988.

17 GRUPENMACHER, Betina Treiger. Tributação e Direitos Fundamentais. In: FISCHER, Octavio Campos (coord.). Tributos e direitos fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 12.

18 TORRES, Ricardo Lobo. Ética e Justiça Tributária. In: SCHOUERI, Luís Eduardo; ZILVETI, Fernando Aurélio (coord.). Direito Tributário. Estudos em Homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, p. 188.

19 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 19. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 78.

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