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PROCESSO PENAL

Transexual ou Travesti Podem ser Vítimas de Feminicídio?

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4275

ADI 4275

CÓDIGO PENAL

FEMINICÍDIO

LEI 6.015/1973

LEI DOS REGISTROS PÚBLICOS

LEI MARIA DA PENHA

Walfredo Cunha Campos

Walfredo Cunha Campos

31/07/2018

Prevê o art. 121, § 2.º, VI, do Código Penal a figura típica do denominado feminicídio, espécie nova de qualificadora do crime de homicídio acrescentada pela Lei 13.104/2015, que tem a seguinte redação:

Art. 121. […]

Homicídio qualificado

§2.º […]

Feminicídio

VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.

Foi criado, ainda, o § 2.º-A do art. 121 do Código Penal com o seguinte texto:

§2.º-A. Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

I – violência doméstica e familiar;

II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher (grifos nossos).

Pela literalidade da lei, apenas poderia ser sujeito passivo de tal infração penal a mulher, em seu sentido genético, ou seja, na hipótese de um travesti ou transexual, mesmo que este último tivesse alterado, por meio de cirurgia, seu sexo, continuariam a ser, em seus genes, homens, o que afastaria a aplicação da Lei Maria da Penha, sob pena de se aplicar, em sede de direito penal, analogia in malam partem.

Não obstante o aparente acerto desse raciocínio linear, o Supremo reconheceu, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, conferindo interpretação conforme ao art. 58 da Lei 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos), que é possível a alteração de prenome e gênero no registro civil, mediante averbação no registro original, independentemente de cirurgia de transgenitalização e sem a necessidade de autorização judicial. A desnecessidade de autorização judicial e o risco, pela ausência de controle judicial na mudança de prenome e gênero realizada diretamente em cartório, pela possibilidade de sua prática fraudulenta ou abusiva, poderiam ser coarctadas, segundo o Min. Celso de Mello, do STF, por meio da fiscalização exercida pelo oficial do registro civil das pessoas naturais, que pode instaurar o processo administrativo de dúvida. Pensamos, todavia, que o melhor posicionamento quanto à questão foi a vencida, sustentada pelos Ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, os quais condicionaram a alteração no registro civil à ordem judicial e à averbação no registro civil de nascimento, resguardado sigilo no tocante à modificação. Tal procedimento judicial, a nosso ver, em nada comprometeria o exercício, pelos transgêneros, de seu direito à alteração de prenome e gênero, ao mesmo tempo que – pelo controle judicial e com a indispensável participação no processo do Ministério Público – se resguardaria “aos imperativos de veracidade e de publicidade dos registros públicos”, como salientado pelo Min. Gilmar Mendes, em seu voto-vogal.

Percebe-se que, nessa condição de alteração do registro civil de homem para mulher, o homem passa a ser considerado, no mundo jurídico, como uma mulher, de modo que, in casu, se torna juridicamente possível que o transexual seja tido como sujeito passivo de quaisquer das condutas descritas na Lei Maria da Penha em estudo, bem como vítima do feminicídio previsto no art. 121, § 2.º, VI, do CP.[1]

A conclusão exposta supra, no sentido de conferir ao transexual o direito de ser considerado, juridicamente, como mulher, pelo que se depreende do teor da decisão referente à ADI 4275, abarcaria, inclusive, os travestis, uma vez que a autodeterminação de gênero estaria no campo psicológico, devendo ser reconhecida no âmbito social e jurídico.  Desse modo, em tese, os travestis, além dos transexuais, poderiam ser contemplados pelas medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, bem como ser vítimas do delito de feminicídio.[2] Por sua vez, os homossexuais masculinos que não tenham qualquer pretensão de mudar de sexo, nem se comportam como se fossem do sexo feminino, não podem ser considerados, obviamente, como mulheres, não se aplicando a eles quaisquer dos institutos da Lei Maria da Penha.

Por fim, saliente-se que a possibilidade ou não de constar a existência da qualificadora do feminicídio, no caso de ofendido transexual ou travesti, deverá ser, necessariamente, dirimida, quando da prolação de pronúncia; reconhecida a qualificadora no contexto ora em estudo, não há como se eximir o juiz presidente de indagá-la aos jurados.


[1] Em outra decisão do Supremo, o Min. Luiz Barroso concedeu habeas corpus (HC 152491/SP) a fim de que travestis, presos em uma cela com 31 homens, fossem removidos para estabelecimento prisional, compatível com sua orientação sexual (presídio feminino).
[2] “Destarte, não posso ignorar a forma pela qual a ofendida se apresentava perante todas as demais pessoas, não restando dúvida com relação ao seu sexo social, ou seja, a identidade que a pessoa assume perante a sociedade. Somados todos esses fatores (a transexualidade da vítima, as características físicas femininas evidenciadas e seu comportamento social), conferir à ofendida tratamento jurídico que não o dispensado às mulheres (nos casos em que a distinção estiver autorizada por lei), transmuda-se no cometimento de um terrível preconceito e discriminação inadmissível, em afronta inequívoca aos princípios da igualdade sem distinção de sexo e orientação sexual, da dignidade da pessoa humana e da liberdade sexual”. Trecho da decisão proferida pela magistrada Ana Cláudia Veloso Magalhães, do Estado de Goiás, nos autos n.º 201103873908, em 2 de junho de 2016.  Pesquisa e artigo escritos no Boletim do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), n. 299 (out. 2017), por David Campos Castro.

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