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Existe juiz contaminado por prova ilícita? Análise do novo § 5° do art. 157 do CPP
Guilherme de Souza Nucci
27/07/2021
Os magistrados têm plena convicção da sua função e da sua imparcialidade, razão pela qual se uma prova ilícita é descartada, outras provas devem ser usadas para decidir a causa – todas as que forem lícitas.
Havíamos sustentado, em nossos escritos anteriores, constituir norma correta o preceituado pelo art. 157, § 5° do Código de Processo Penal: “o juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão”. O fundamento do preceito, introduzido pela lei 13.964/19, seria garantir a imparcialidade do magistrado. Repensamos a questão e passamos a observar que um juiz deve ser, por vocação, imparcial e precisa ter o discernimento necessário para separar entre o que é uma prova lícita e o que é uma ilícita, até mesmo para formar o seu convencimento e julgar com sabedoria. Os tribunais têm jurisprudência consagrada no sentido de que as causas de suspeição e impedimento dos magistrados são taxativas, não admitindo ampliação.
Em nossa visão, até pelo fato de que determinadas vivências experimentadas pelo juiz podem afetá-lo e, com isso, o seu julgamento imparcial, o ideal seria que essas listas (arts. 252 e 254, CPP) fossem apenas exemplificativas, possibilitando ao magistrado responsável afastar-se de um caso para o qual não se sente insuspeito (exemplo: ter sido vítima de um crime grave e ficar traumatizado; por isso, não estar pronto a julgar casos similares, sendo ele juiz com competência criminal). Porém, essa causa não se encontra no rol do art. 254 (suspeição) do CPP, mas deveria e, mesmo não constando, poderia o magistrado dar-se por suspeito nessa hipótese. Tudo para manter a sua imparcialidade (preceito constitucional). No entanto, muda o quadro quando houver o mero contato com uma prova ilícita, que não poderia, automaticamente, transformar o magistrado num julgador parcial e, por isso, impedido (“não poderá proferir sentença ou acórdão”, nos termos legais).
Pretendemos destacar: sofrer um crime, como vítima, pode tornar o juiz muito mais parcial para julgar casos semelhantes (o que não está previsto em lei, como motivo para suspeição ou impedimento) do que tomar contato com prova ilícita, porque esta última não envolve o lado emocional do magistrado, mas apenas movimenta o seu raciocínio e a sua habilidade técnica para lidar com a prova ilícita. Ora, o maior interessado na colheita de uma prova idônea, honesta, legítima e ética deve ser o juiz. Assim sendo, quando uma parte levanta o incidente de ilicitude da prova, em primeira instância, instaurando-se o contraditório a respeito da sua obtenção, é de interesse máximo do Judiciário verificar se realmente a prova é ilícita. Constatando-se a sua ilicitude, antes de contaminar o juiz, livra-o desse encargo de avaliar uma prova completamente írrita aos parâmetros constitucionais. Ao longo da nossa carreira de mais de trinta anos na magistratura, visualizamos a produção de provas ilícitas, como, por exemplo, confissões extraídas por meio de tortura na fase policial. Sempre fomos os primeiros interessados em apurar, determinar a extração de peças para a verificação da responsabilidade criminal e jamais utilizá-la em nossas decisões. Um magistrado que toma contato com a prova criminosamente obtida, por exemplo, achando que deve utilizá-la contra o réu, não é um autêntico juiz, pois desconhece o preceito básico para a sua atividade, que é a imparcialidade. Logo, quando o legislador aponta esse lado, impedindo o contato do juiz com a prova ilícita significa desconfiar da sua imparcialidade e, até mesmo, da sua idoneidade. Há um incidente onde provas são produzidas para demonstrar a ilicitude da obtenção de certa prova; portanto, há evidências suficientes de que aquela prova é desprezível. Muito pior são os magistrados preconceituosos e carregados de elementos pessoais, ligados à sua personalidade, indicadores da sua discriminatória atuação, camuflada pela toga. Quando a prova se torna claramente ilícita, será desentranhada e não poderá ser utilizada na decisão. Qual contorcionismo fará o julgador para “usá-la, sem utilizá-la”? É inviável e irreal que consiga proferir uma sentença bem fundamentada, olvidando prova ilícita – da qual tomou conhecimento, mas mandou desentranhar -, fazendo esforço para chegar a um veredicto baseado naquela prova podre. Se a prova desapareceu dos autos, não há como o julgador a utilizar.
Guilherme Madeira Dezem aprova essa novidade do § 5º do art. 157 do CPP, argumentando tratar-se da figura do “juiz contaminado”. Afirma ser o magistrado humano como todos e, por isso, “o ser humano não consegue ignorar determinados fatos que integram seu conhecimento. É claro que o juiz não poderá usar a condenação baseado em prova ilícita. No entanto, isto não impede o juiz de fundamentar sua condenação baseado em outros elementos. (…) Não é possível que se exija do magistrado o que ele não pode dar, ou seja, isenção. Não se imagina como seja possível ao magistrado retirar de sua mente o conhecimento da prova ilícita para que julgue de maneira isenta o acusado sem levar essa prova em consideração” (Comentários ao pacote anticrime, lei 13.964/19. São Paulo: RT, 2020, p. 116). Louvável a sua preocupação, mas estamos convencidos, hoje, de ser irreal. Chegamos a mencionar, em nosso livro Pacote anticrime comentado, a seguinte frase: “a prova ilícita pode ficar na memória de um juiz, mas não na mente do julgador do mérito da causa” (p. 70). Esse é o julgador que se espera; ele pode se lembrar que houve uma prova ilícita, mas não a tem na mente quando decidir a causa. Vamos além, não são poucas as vezes nas quais tribunais afastam uma prova, porque ilícita. Mas nesse cenário, Dezem diz: “essa regra somente não terá incidência em uma situação: quando o feito for julgado pelo Plenário do STF, do STJ ou pelos órgãos especiais dos respectivos tribunais. Nessa hipótese, não haverá como se convocar novos julgadores para proferir o novo julgamento, então deve ser afastada a incidência da regra” (ob. cit., p. 117). Pergunta-se, afinal, se todos esses ministros, que tiveram contato com a prova ilícita, depois afastada, não estão igualmente “contaminados”. E se estão, a imparcialidade do colegiado nos Tribunais Superiores ficará comprometida. Entretanto, como não há mecanismo de substituição, a parte contra a qual a prova ilícita pode exercer influência sofre as consequências, devendo ficar silente. Pode ser prejudicada e o sistema processual penal não lhe dá qualquer chance de um julgamento justo. Na ótica de que o juiz, ao tomar contato com prova ilícita, “contamina-se”, um Plenário inteiro pode assim ser afetado e o seu julgamento não será imparcial. Ora, o princípio da imparcialidade não é adstrito apenas a instâncias inferiores da magistratura; em nenhum ponto da Constituição Federal deduz-se que o juiz natural e imparcial é um princípio de graus menores da magistratura brasileira.
Não aceitamos essa tese da contaminação, pois acreditamos que os magistrados têm plena convicção da sua função e da sua imparcialidade, razão pela qual se uma prova ilícita é descartada, outras provas devem ser usadas para decidir a causa – todas as que forem lícitas. E isto se dá em qualquer grau de jurisdição. Outro argumento para afastar o juiz que tome contato com a prova ilícita deve-se à possibilidade de uma parte introduzir, propositalmente, essa prova indevida nos autos somente para retirar do caso um julgador rigoroso ou liberal, enfim, inconveniente aos seus interesses. Dizem os defensores do afastamento do juiz que tomar contato com a prova ilícita, dentre os quais Guilherme Dezem, que a parte não terá êxito, sob a assertiva de que quem provoca a suspeição (ou impedimento) dela não pode valer-se (ob. cit., p. 117). Mas provocar a suspeição ou o impedimento, na linha dos artigos 252 e 254 do CPP, não tem absolutamente nada a ver com o contato com prova, que possa demonstrar a culpa ou a inocência de alguém (sendo esta ilícita). Quem provoca a suspeição de um juiz, tornando-se seu inimigo capital (art. 254, I, CPP), deve arcar com isso. Mas ser inimigo do magistrado é uma situação que se desdobra em nível emocional – raiva, cólera, ódio, vingança etc. – e não diz respeito à prova colhida para comprovar culpa ou inocência de alguém. Noutros termos, quando uma parte, de má-fé, introduz prova ilícita nos autos, mas que descortina a culpa do acusado (por exemplo), mesmo que ela seja retirada do processo e o juiz seja mantido baseado no preceito que o segura na condução da causa porque houve falta de ética de quem assim agiu não elimina em nada o fato de o magistrado tomar contato com a prova ilícita. Então, ele deverá ter o discernimento suficiente para não usar o que soube acerca daquela prova. Mas, se ele é ser humano falível, como alguns dizem, não conseguirá fazer isso e terminará ficando nos autos e, em tese, poderá levar em consideração essa prova. Enfim, com boa-fé ou com má-fé, introduzindo prova ilícita nos autos, o juiz toma conhecimento dela. Se houve boa-fé da parte (o que é estranho, pois introduz prova ilicitamente obtida), o juiz deve sair; se houve má-fé, o juiz permanece, quase como um “castigo” a quem assim agiu. Entretanto, o contato com a prova podre aconteceu do mesmo jeito em qualquer das situações.
Refletindo em relação a inúmeros julgados que afastaram provas ilícitas e absolveram réus, chegamos à conclusão de que o novel § 5° do art. 157 é impertinente. São muitas as decisões que consideram, por ilustração, a invasão de domicílio ilegal, sem qualquer investigação prévia, sob a alegação de se tratar de crime permanente, quando agentes policiais apreendem alguma droga ali dentro; os tribunais afastam a prova ilicitamente colhida, porque a invasão foi abusiva e absolvem os réus. Enfim, os magistrados tomaram conhecimento da prova ilícita e nem por isso deixaram de absolver o traficante (por vezes, com grandes quantidades de drogas). E não são apenas os magistrados de 2° Grau ou de tribunais superiores a agir desse modo; juízes de primeiro grau também o fazem. Enfim, tomar conhecimento de prova ilícita não conduz o julgador a levá-la em consideração e julgar justamente em sentido prejudicial ao réu. Sejamos realistas. Se um juiz tomar conhecimento de prova ilícita, que foi desentranhada, não puder usá-la em sua sentença e, mesmo assim, inventar argumentos para condenar o réu, há de se considerar que é um mau juiz e, ademais, a sua decisão não subsistirá em grau superior, por carência de provas lícitas. Portanto, criar uma causa de impedimento de exercício jurisdicional por um fato que ocorre sempre – contato com provas ilícitas – é desconhecer a realidade atual do Judiciário brasileiro de todas as instâncias. Finalmente, se a prova ilícita, conhecida por um ou mais magistrados, é capaz de “contaminar” o julgador, isso deve ser aplicado a todas as instâncias, até porque a letra da lei (§ 5° do art. 157) menciona, expressamente, “sentença ou acórdão”. Mas, como acreditamos que o juiz natural e imparcial é a maioria dos que compõem o Judiciário brasileiro, temos convicção de que o referido § 5° é inconstitucional, porque presume parcialidade. A presunção é um instituto delicado, que somente deve ser usado em situações especialíssimas, tais como a presunção de inocência em favor dos réus em processos criminais; mas, ao contrário do disposto naquele § 5°, a presunção de imparcialidade é que vigora para os magistrados – e não a presunção de parcialidade.
Cremos, ainda, ser preciso destacar que os mesmos seres humanos – juízes – que poderiam se “contaminar” pelo simples conhecimento do conteúdo de uma prova ilícita, declarada inadmissível, acompanham noticiários em todos os meios de comunicação existentes e ouvem muito mais do que o processo pode oferecer em relação a casos de grande repercussão. Se isso tudo os “contaminar” (por vezes, muito mais informes do que a prova ilícita pode oferecer), não haveria juízes para julgar caso algum, quando a mídia e as redes sociais resolverem pré-julgar alguém, por se tratar de um acusado famoso ou de um crime particularmente chamativo. É preciso confiar no Judiciário, abstraindo-se as situações excepcionais, que maculam qualquer instituição. Os juízes são imparciais, como regra, e sabem, perfeitamente, distinguir entre uma prova lícita e outra, ilícita. Aliás, é do seu interesse zelar para que todas as provas com as quais vai lidar na ocasião de formar o seu convencimento para proferir a sentença sejam idôneas e honestas. Esse é o panorama no qual acreditamos estar calcado o Judiciário brasileiro. Esse parágrafo está com a eficácia suspensa por força da liminar proferia pelo ministro Luiz Fux na medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 6.299-DF.
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