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Guilherme de Souza Nucci

Guilherme de Souza Nucci

26/05/2015

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Delatar significa acusar, denunciar ou revelar. Processualmente, somente tem sentido falarmos em delação, quando alguém, admitindo a prática criminosa, revela que outra pessoa também contribuiu para a consecução do resultado. Esse é um testemunho qualificado, feito pelo indiciado ou acusado. Naturalmente, tem valor probatório, especialmente porque houve a admissão de culpa pelo delator.

Caso o réu, em seu interrogatório, limite-se a negar a prática da infração penal, aproveitando a ocasião para indicar o verdadeiro autor, não se cuida de delação, mas de mero “testemunho”. É lógico que não atua o interrogando como autêntica testemunha, até pelo fato de não estar sob o compromisso de dizer a verdade. Entretanto, está agindo como se fosse um declarante, cientificando o juízo de quem seja o autor da infração penal.

A verdadeira delação envolve a admissão de culpa, o que lhe confere maior credibilidade, para, então, apontar terceiro, co-autor ou partícipe. Não quer dizer que, nessas situações, inexistam as falsas delações, com o intuito exclusivo de prejudicar terceiros, por motivos variados. Aliás, se encontramos confissões falsas, que teria o próprio réu como único prejudicado, é natural existirem outras formas de declarações não autênticas.

Para tanto, deve o magistrado sempre atentar para os aspectos negativos da personalidade humana, pois não é impossível que alguém, odiando outrem, confesse um crime somente para envolver seu desafeto, que, na realidade, é inocente. Essa situação é mais comum quando o confitente já está condenado ao cumprimento de vários anos de prisão, razão pela qual a delação não lhe produzirá maiores conseqüências, o mesmo não se podendo dizer quanto ao delatado.

Na situação mencionada, envolvendo o réu, sem a admissão de sua culpa, outra pessoa como autora do crime, pode-se estar diante de uma forma de autoproteção, afinal, indicar qualquer outro para figurar como autor do delito pode desviar a atenção do Estado-investigação ou do Estado-juiz. Pode-se estar diante, também, de uma narrativa verdadeira.

De qualquer modo, envolvendo outrem, buscando garantir o direito à ampla defesa de quem foi delatado, é preciso que o juiz permita, caso seja requerido, que o defensor desta pessoa faça reperguntas no interrogatório do delator, ainda que seja preciso repetir o ato processual.

Essas reperguntas terão o conteúdo e a amplitude limitados, devendo haver rígido controle por parte do juiz. Somente serão admitidas as questões envolvendo o delatado e não a situação do delator, tudo para preservar a este último o direito de não ser obrigado a se auto-acusar. Maiores detalhes trazemos em nosso Provas no Processo Penal.

Surge, então, no mesmo cenário, a polêmica questão da delação premiada, que constitui a denúncia cujo objeto é narrar às autoridades o cometimento do delito e, quando existente, os co-autores e partícipes, com ou sem resultado concreto, conforme o caso, recebendo, em troca, do Estado, um benefício qualquer, consistente na diminuição de pena ou, até mesmo, no perdão judicial. Seria válida essa forma de incentivo legal à prática da delação? Existem inúmeros aspectos a considerar. São pontos negativos da delação premiada: a) oficializa-se, por lei, a traição, forma antiética de comportamento social; b) pode ferir a proporcionalidade da aplicação da pena, pois o delator receberia pena menor do que os delatados, cúmplices que fizeram tanto ou até menos que ele; c) a traição, em regra, serve para agravar ou qualificar a prática de crimes, motivo pelo qual não deveria ser útil para reduzir a pena; d) não se pode trabalhar com a idéia de que os fins justificam os meios, na medida em que estes podem ser imorais ou antiéticos; e) a existente delação premiada não serviu até o momento para incentivar a criminalidade organizada a quebrar a lei do silêncio, que, no universo do delito, fala mais alto; f) o Estado não pode aquiescer em barganhar com a criminalidade; g) há um estímulo a delações falsas e um incremento a vinganças pessoais. São pontos positivos da delação premiada: a) no universo criminoso, não se pode falar em ética ou em valores moralmente elevados, dada a própria natureza da prática de condutas que rompem com as normas vigentes, ferindo bens jurídicos protegidos pelo Estado; b) não há lesão à proporcionalidade na aplicação da pena, pois esta é regida, basicamente, pela culpabilidade (juízo de reprovação social), que é flexível. Réus mais culpáveis devem receber pena mais severa. O delator, ao colaborar com o Estado, demonstra menor culpabilidade, portanto, pode receber sanção menos grave; c) o crime praticado por traição é grave, justamente porque o objetivo almejado é a lesão a um bem jurídico protegido; a delação seria a traição de bons propósitos, agindo contra o delito e em favor do Estado Democrático de Direito; d) os fins podem ser justificados pelos meios, quando estes forem legalizados e inseridos, portanto, no universo jurídico; e) a ineficiência atual da delação premiada condiz com o elevado índice de impunidade reinante no mundo do crime, bem como ocorre em face da falta de agilidade do Estado em dar efetiva proteção ao réu colaborador; f) o Estado já está barganhando com o autor de infração penal, como se pode constatar pela transação, prevista na Lei 9.099/95. A delação premiada é, apenas, outro nível de transação; g) o benefício instituído por lei para que um criminoso delate o esquema no qual está inserido, bem como os cúmplices, pode servir de incentivo ao arrependimento sincero, com forte tendência à regeneração interior, o que seria um dos fundamentos da própria aplicação da pena; h) a falsa delação, embora possa existir, deve ser severamente punida; i) a ética é juízo de valor variável, conforme a época e os bens em conflito, razão pela qual não pode ser empecilho para a delação premiada, cujo fim é combater, em primeiro plano, a criminalidade organizada.

Do exposto, parece-nos que a delação premiada é um mal necessário, pois o bem maior a ser tutelado é o Estado Democrático de Direito. Não é preciso ressaltar que o crime organizado tem ampla penetração nas entranhas estatais e possui condições de desestabilizar qualquer democracia, sem que se possa combatê-lo, com eficiência, desprezando-se a colaboração daqueles que conhecem o esquema e se dispõem a denunciar co-autores e partícipes. No universo dos seres humanos de bem, sem dúvida, a traição é desventurada, mas não cremos que se possa dizer o mesmo ao transferirmos a nossa análise para o âmbito do crime. Cuida-se de um cenário desregrado, avesso à legalidade, contrário ao monopólio estatal de resolução de conflitos, regido por leis esdrúxulas e extremamente severas, totalmente distante dos valores regentes dos direitos humanos fundamentais.

A rejeição à ideia da delação premiada constituiria um autêntico prêmio ao crime organizado e aos delinquentes em geral, que, sem a menor ética, ofendem bens jurídicos alheios, mas o Estado não lhes poderia semear a cizânia ou a desunião, pois não seria moralmente aceitável. Se os criminosos atuam com leis próprias, pouco ligando para a ética, parece-nos viável provocar-lhes a cisão, fomentando a delação premiada. A lei do silêncio, no universo criminoso, ainda é mais forte, pois o Estado não cumpre a sua parte, como regra, que é diminuir a impunidade, atuando, ainda, para impedir que réus colaboradores pereçam em mãos dos delatados.

Em suma, pensamos ser a delação premiada um instrumento útil, aliás, como tantos outros já utilizados, legalmente, pelo Estado, v. g. a interceptação telefônica, que fere a intimidade, em nome do combate ao crime.


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