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Lei de abuso de autoridade blinda ainda mais o agente público
Guilherme de Souza Nucci
21/11/2019
É interessante observar que várias entidades de classes dos operadores do Direito ingressaram com ações, junto ao Supremo Tribunal Federal, apontando inconstitucionalidades da nova Lei de Abuso de Autoridade.
Em ligeira comparação, vejamos um tema: a exposição das pessoas presas em flagrante ou por ordem judicial às redes de TV, em programas de sensacionalismo, gera, segundo me parece, flagrante vexame ou constrangimento não autorizado em lei. São os casos de repórteres colocando microfones no rosto do preso e perguntando por que ele cometeu tamanha atrocidade. Se o preso não fala, a câmera de TV está ligada, mostrando a sua imagem em programa de alcance nacional. Enfim, nasce ali um culpado aos olhos da opinião pública. Se o preso fala algo, vira prova contra si mesmo.
Parece-me a adequação típica referente ao art. 4º, “b”, da Lei 4.898/65 (lei de abuso de autoridade que vigora há décadas e ainda hoje vigente): “Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: (…) b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei”. Note-se que não se menciona violência ou grave ameaça, nem redução da capacidade de resistência. Cita o referido tipo penal apenas submeter o preso (deixar que a pessoa detida seja exposta) sob sua guarda (delegados e agentes policiais) a vexame ou constrangimento (aparecer em cadeia nacional de TV como bandido é bem vergonhoso e constrangedor). Surge a indagação: quantas autoridades foram enquadradas nesse dispositivo da Lei de Abuso de Autoridade atual (ainda não revogada), pois a nova lei encontra-se em vacatio legis? Não conheço nenhuma. Possivelmente, o leitor também não conheça.
Edita-se a nova Lei de Abuso de Autoridade, tão questionada por vários operadores do Direito, prevendo o seguinte: “Art. 13. Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a: I – exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública; II – submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei; III – produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro” (grifamos). Esse art. 13 da Lei Nova é o correspondente ao art. 4º, “b”, da Lei anterior. Mas ele tem muitos entraves para ser aplicado. O tipo penal do art. 4º, “b”, da Lei 4.898/65 era muito mais fácil de ser utilizado – e quase nunca foi. O tipo penal do art. 13 da Lei 13.869/2019 prevê que a autoridade condutora do preso aja com violência, grave ameaça ou outro recurso a reduzir a capacidade de resistência do preso (uso de drogas, por exemplo).
“Qual autoridade policial agrediria o preso para ele aparecer na TV? Não se tem notícia e não se terá.”
Não bastasse a redação do art. 13 atual, há dois valorosos obstáculos à punição do agente público, que deixa o preso ser filmado e interrogado por um repórter, sofrendo vexame, humilhação e até produzindo prova contra si mesmo. São eles, previstos no art. 1º da Lei 13.869/2019: “§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal; § 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”.
Noutros termos, torna-se praticamente impossívelpunir o agente público que permite a filmagem e entrevista de preso frente às redes de TV. Afinal, a autoridade teria que agredir o preso ou ameaçá-lo para se submeter àquela exposição. Além disso, precisaria submeter o preso à filmagem vexatória para prejudicá-lo, beneficiar-se (ou a outrem) ou por mero capricho (quem prova isso com segurança?). Finalmente, interpretações diversas sobre os fatos passíveis de enquadramento nos tipos penais de abuso de autoridadenão configuram abuso de autoridade.
Seria muito interessante que alguém conseguisse, comparando os artigos da Lei 4.898/65 com os da Lei 13.869/2019, apontar inconstitucionalidades desta última. A verdade é a seguinte: a) a Lei 4.898/65 tem sido inoperante há muitos anos; b) a Lei 13.869/2019 surgiu para blindar, ainda mais, o agente público. O que era inútil, pois a Lei 4.898/65 não era utilizada, passa a ser inútil e, mais, produtora de uma blindagem jamais vista em qualquer outra lei penal aos agentes da autoridade.
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