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Crime de bagatela e princípio da igualdade: necessidade premente de lei penal

Guilherme de Souza Nucci
25/08/2025
O princípio da intervenção mínima (fragmentariedade ou subsidiariedade), no cenário do direito penal, possui ampla aceitação na doutrina e na jurisprudência, com o propósito de asseverar a ultima ratio da punição criminal, consagrando-se um substrato sólido para o Estado democrático de Direito. Ocorre que, apesar de inúmeras teses, artigos e livros publicados a respeito do corolário natural da intervenção mínima — o princípio da insignificância, gerador do crime de bagatela —, um ponto fundamental deixa de ser abordado na maioria dos casos. Aliás, mesmo em inúmeros julgados, incluindo os proferidos pelo STF e pelo STJ, acolhendo a insignificância para absolver réus ou trancar a ação penal (ou a investigação criminal), muitos princípios são enumerados e a teoria do crime é detalhada, mas um aspecto resta olvidado.
Referimo-nos ao princípio da igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, constante do artigo 5º, caput, da Constituição. Não se trata, por certo, de um princípio tipicamente penal, mas é norteador de todos os ramos do direito, calcando-se no regente princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, Constituição). Pouco adianta um direito penal lastreado no princípio da legalidade se inexiste lei regulando o princípio da insignificância, nascido, criado e aplicado em cenários extra legem, advindo de lições doutrinárias e da prática judiciária.
Destaque-se, inclusive, haver algumas alegações do órgão acusatório, seguidas de decisões judiciais, no sentido da sua não-aplicabilidade justamente por ausência de previsão legal, o que não se pode negar. Inexiste dispositivo, no Código Penal, acolhendo a insignificância como excludente de tipicidade, ilicitude, culpabilidade ou punibilidade. De nossa parte, defendemos o seu cabimento em decorrência do princípio da intervenção mínima, que consideramos de fundo constitucional, embora implícito.
Todavia, retornamos ao ponto deste artigo: se todos são iguais perante a lei, torna-se inaceitável que, diante da cotidiana aplicação (e, também, negação) do crime de bagatela, inexista isonomia entre os acusados. Não havendo lei federal dispondo sobre o tema, pergunta-se: quais são os requisitos para o reconhecimento do crime de bagatela? Ausentes do cenário da estrita legalidade, emergem diversos requisitos defendidos pela doutrina — divergentes entre si — bem como fatores descritos em acórdãos, inclusive do Supremo Tribunal Federal. Todos os operadores do direito, na área criminal, por certo, conhecem os elementos destacados nos julgados, enumerados em artigos ou lições doutrinárias, mas bem sabem que são dissociados de um só prisma. Portanto, o critério da aleatoriedade é o vigente, gerador da desigualdade entre os réus diante da lei penal.
Exemplo de casos de furto
Tome-se o furto como ilustração, palco comum desse debate. Basta uma pesquisa nos tribunais superiores para verificar a diversidade de julgados, tratando diferentemente casos semelhantes de subtrações de coisas alheias móveis, ora atestadas como insignificantes, com absolvição ou trancamento de ação ou investigação, ora certificadas como relevantes penais, com a manutenção da condenação, operada pelas instâncias inferiores. Uma análise mais detalhada dos acórdãos, sem o fazer pela singela leitura das ementas, poderá evidenciar a discordância entre os próprios julgadores dos colegiados. Por isso, há ordens concedidas e ordens denegadas (a maioria dos casos é analisada em sede de Habeas Corpus), por maioria de votos. Verifica-se o círculo vicioso da aleatoriedade.
Noutro aspecto, pode-se constatar a existência de artigos, cujos autores ironizam, criticam e até ridicularizam decisões judiciais, inclusive dos tribunais superiores, afirmando que houve o reconhecimento da bagatela para certo alimento subtraído, mas não para outro; alegando que produtos de higiene contaram com absolvição, mas o furto de carne não foi contemplado. Pretendem apontar injustiças judiciárias, com o tom de certo escárnio, mas a situação é muito mais complexa do que esses articulados pretendem demonstrar.
Em primeiro lugar, porque muitos escritos trabalham com ementas e pode-se constatar que seus autores não leram na íntegra os julgados. Em segundo, porque tecem comparações entre casos de crime de bagatela diferentes na essência fática. Em terceiro, porque não há lei disciplinando o tema, de modo que o julgador se encontra, hoje, livre para adotar a posição que bem quiser. Em quarto, nem mesmo os integrantes dos colegiados superiores possuem os mesmos critérios. Reputamos uma crise de igualdade perante a lei, antes de qualquer outra colocação.
Recursos defensivos e furto famélico
Analisamos diversos julgados do STF e do STJ, que foram criticados de maneira ácida por articulistas, constatando a inviabilidade da comparação feita nos artigos entre decisões bem diversas acerca da insignificância. [1] Pretendemos destacar alguns pontos da intrincada complexidade do cenário do princípio da insignificância nos tribunais, em argumentos da defesa e decisões do Judiciário. Em primeiro lugar, embora a doutrina e, também, a jurisprudência insiram, majoritariamente, no campo da tipicidade a questão do crime de bagatela, não são poucos os habeas corpus e recursos defensivos apresentados trazendo como cenário o furto famélico, situação que desloca o caso para o campo do estado de necessidade (artigo 24, CP), obrigando o julgador a tecer considerações sobre os requisitos dessa excludente de ilicitude — e não propriamente da insignificância, razão pela qual se pode encontrar argumentos negando a tese, porque não se verificou na prova produzida nos autos os elementos necessários.
Emergem críticas infundadas sobre as considerações do Judiciário para afirmar que determinado alimento, da forma como foi subtraído, por sua qualidade ou quantidade, não tem nenhum propósito de saciar a fome da maneira demandada pelo artigo 24 do Código Penal. Em segundo lugar, algumas críticas a decisões padronizam situações, na essência, diferentes. Ilustrando, aponta-se que alguns desodorantes foram subtraídos e o tribunal reconheceu o crime de bagatela, mesmo sendo o réu reincidente, logo, não seria preciso considerar antecedentes para reconhecer a insignificância.
Todavia, essas alegações não mostram que, no caso concreto, outros elementos foram levados em conta, tais como: valor ínfimo do bem; vítima como grande supermercado; coisa recuperada; o antecedente único era por infração penal de pouca gravidade; a coisa quase não saiu da esfera de vigilância da vítima, beirando o crime impossível. Utilizando esse caso, em que houve absolvição, critica-se outro, em que o tribunal negou a bagatela porque foram subtraídos frascos de xampu. Entretanto, nesta situação, omite-se que o réu tinha vários antecedentes por furtos anteriores, sendo inclusive reincidente específico.
Ainda por comparação, critica-se o julgado que não absolveu quem subtraiu uma peça de carne, mas não se menciona que a linha da defesa não se fundou na insignificância; ao contrário, levou o caso para o furto famélico (estado de necessidade). Olvida-se que todas essas alegações defensivas de necessidade não foram provadas nos autos — estado de miserabilidade; em oposição, a acusação demonstrou que o réu tinha emprego fixo e carteira assinada, além de ter subtraído carne nobre, de valor considerável. Em suma, as comparações, quando feitas na superfície, são incabíveis, porque espelham-se em fatos e provas diversos.
Crime de bagatela e o princípio da insignificância
Prosseguindo na avaliação de julgados, observa-se que os magistrados sentem-se libertos para avaliar o princípio da insignificância por diversos prismas, não coincidentes, porque não há lei fixando os parâmetros. Logo, não se trata de interpretar a lei, mas de interpretar os fatos da maneira como, teoricamente, visualiza o julgador a proposta de intervenção mínima. Ilustrando, há decisões centradas na análise objetiva do valor do bem, argumentando que é juízo de tipicidade: se é quantia ínfima, pouco importa se o acusado tem antecedentes ou não.
Contudo, não há extensa argumentação para delimitar o que é ínfimo exatamente, até para que as instâncias inferiores levem em conta. O valor do bem deve ser avaliado conforme as posses da vítima? Se assim for, em verdade, está-se levando em conta o efetivo prejuízo, que para uns é muito e para outros, pouco. O valor ínfimo também precisa ser visto conforme o padrão da sociedade? Se assim for, vale como contraste o salário mínimo? Qual percentual do salário? Nada disso se encontra, objetivamente, nos julgados. Ou, pelo menos, padronizado na jurisprudência.
Não é possível, portanto, comparar julgados para criticá-los como se todos estivessem interpretando a mesma lei de maneiras completamente diversas. Noutras decisões, o magistrado desloca a análise da insignificância para a teoria do crime, como um todo, não centralizando na tipicidade. Afinal, há argumentos para isso. Quando se destaca a figura privilegiada do furto, por exemplo, o próprio legislador levou em conta não apenas o pequeno valor da coisa, mas a primariedade para conceder a causa de diminuição de pena ou sua substituição por outra espécie (multa), algo que não se relaciona ao crime em si, mas à punição merecida. Diante disso, inexistindo lei a respeito, o modo como se pode contemplar a insignificância não é uniformizado, nem pode ser.
Desigualdade entre réus
Preocupa-nos a desigualdade concreta entre os réus, porque muitos são condenados por pequenos furtos, realmente insignificantes, mas não atingem tribunais superiores. Outros acusados, patrocinados por diligentes defensores, muitos públicos, seguem ao STJ e ao STF. Mesmo assim, conforme o relator sorteado, terá sucesso ou insucesso. Vige a aleatoriedade. Por certo, ainda que haja lei expressa, a sua interpretação pode ser dissonante entre juízes, o que é natural. Todavia, na absoluta lacuna da lei, não se pode exigir de magistrados que sigam as regras (quais?) do crime de bagatela.
Outros argumentos ponderáveis surgem nesse campo, destacando-se o fato de que é irrazoável gastar-se tempo e dinheiro dos órgãos persecutórios do Estado para avaliar a subtração de algumas barras de chocolate. E mais estranho ainda pode ser o fato de essa questão ocupar a pauta do STF ou do STJ. Todavia, ambas as situações ocorrem. Em primeiro plano, destaque-se que a ausência de previsão legal permite a instauração de inquérito, promoção de denúncia, condenação em primeiro grau, confirmação em segundo grau e, com isso, a impetração de habeas corpus perante o STJ, que, negado, segue ao STF.
Como inexistem requisitos legais, dependendo do relator e da turma, pode-se ter sucesso e, com isso, absolver o réu muito tempo depois, mas, igualmente, manter-se a condenação. Fato é que toda a máquina judiciária foi colocada em movimento e não se pode afirmar ter havido flagrante erro das instâncias inferiores.
Muito mais poderia ser exposto, embora o espaço não comporte. Tomando-se o furto como exemplo, porque o mais comum caso de debate acerca do princípio da insignificância, parece-nos essencial a edição de lei a respeito do tema, senão para evitar, ao menos para amenizar as desigualdades de julgamentos nesse cenário. Opções variadas existem para o legislador: desde descriminalizar o furto — talvez, com um valor determinado para isso — até mesmo vedar o crime de bagatela.
São os extremos, mas o meio-termo indica diversas possibilidades:
- a) furto como ação pública condicionada, tal como se fez com o estelionato (artigo 171, § 5º, CP), pois muitas vítimas não se interessarão pela representação quando pequeno valor for subtraído;
- b) previsão expressa do furto de bagatela, contendo todos os requisitos reputados plausíveis pelo Legislativo, zelando pelo princípio da legalidade. Nesta etapa, a questão dos antecedentes criminais do acusado precisa ser analisada: se deve ou não ser levada em consideração;
- c) aprimorar a conceituação legal e estabelecer a clara divisão entre furto privilegiado e furto como infração de menor potencial ofensivo, que seria criado, o que levaria vários casos ao Jecrim;
- d) estabelecer critérios equânimes entre furto e estelionato, apontando o valor do prejuízo como fator relevante e não o valor da coisa, pois se pode considerar a diversidade de vítimas (o que é efetivo prejuízo para uns, certamente não é para outros);
- e) qualquer opção legislativa, precisa ter em conta que muitos furtos têm por vítimas pessoas pobres, merecedoras da tutela penal, quando seus bens de pouco valor, a depender do critério usado, lhes for subtraído.
Antes de se permanecer em constante crítica a decisões discrepantes do Judiciário no cenário do crime de bagatela, há de se voltar a intensidade da cobrança dos operadores do direito e da doutrina penal ao Poder Legislativo. Mais grave que as conflituosas decisões acerca da insignificância é desconsiderar que elas espelham o descrédito ao relevante princípio da igualdade. Que não se faça da desigualdade uma bagatela.
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NOTAS
[1] Deixamos de citar os artigos e as decisões judiciais criticadas, pois o objetivo é destacar o conteúdo da desarmonia de critérios para analisar o princípio da insignificância, algo sobejamente conhecido dos operadores do direito, que redunda na desigualdade dos réus perante a lei penal.