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Contratos e Estatutos Sociais Contraditórios

Gladston Mamede
Gladston Mamede

25/07/2024

A história girou a Internet. Uma sociedade empresária limitada e com três sócios que assim participavam do capital social: 50%, 30% e 20%. O contrato social trazia uma norma prevendo: 

Dependem de aprovação de 80% (oitenta porcento) do capital social do capital social:

a) a nomeação e destituição do(s) administrador(es) social(ais);

b) a alienação de patrimônio em valor superior a R$ 500.000,00 (quinhetos mil reais);

c) as contratações de qualquer natureza, inclusive empréstimos e financiamentos, em valor superior a R$ 500.000,00 (quinhetos mil reais);

d) o pedido de falência, bem como pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial; 

e) a nomeação e destituição de liquidante e o julgamento de suas contas.

Um pouco adiante, no mesmo contrato social, havia outro dispositivo a prever  o seguinte: 

A destituição e nomeação de administrador(es) societário(s) se dará por deliberação de titulares de quotas correspondentes a, no mínimo, dois terços do capital social.

E aí? Como é que se resolve isso? A a nomeação e destituição do(s) administrador(es) social(ais) tem quórum de aprovação de 80%, como na primeira disposição ou 2/3, como estabelecido na segunda?  Quer apimentar a história? Malagueta? Habanero? Vamos lá: o detalhe só foi percebido quando os dois sócios que, juntos, totalizavam 70% do capital social, resolveram destituir o administrador societário e nomear outro. O sócio com 30% era contra a destituição e, mais do que isso, contra a nova indicação. Dizia que, sem a sua participação, não se poderia destituir e, muito menos, nomear outro administrador. Seus 30% seriam essenciais para atender à previsão de aprovação por 80%. Obviamente, os outros dois retrucaram: nã-nã-ni-nã-não! Bastam dois terços para fazê-lo, ou seja, 66,66%. Juntos, totalizavam mais do que isso: 70% (50% + 20%). Como se diz por aí, algo de errado não está certo. Sim, o advogado responsável pela redação do ato constitutivo (foi um advogado?) errou. E como se sai dessa enrascada?

Como demonstramos em Estruturação Jurídica de Empresas (Editora Atlas), há “um detalhe” nas atividades negociais que passa despercebido pela maioria dos envolvidos. E cuida-se de um elemento essencial: atos negociais são atos jurídicos. Está lá no Código Civil: Parte Geral, Livro III, Título I: “Do Negócio Jurídico”. Seguem-se os artigos 104 a 184. Isso para não falar que, adiante, seguem-se disposições essenciais para qualquer atividade negocial, por alto, seguem atos lícitos, ilícitos, prescrição, obrigações, contratos. Queira ou não o mecânico, o padeiro, o bombeiro, a costureira e todos os outros, atuem individualmente ou em sociedade, estão a praticar atos jurídicos contínua e reiteradamente. Atividades negociais privadas são um encadeamento de atos jurídicos. Diz vendedor que sabe de vendas, diz a cabelereira que sabe de cabelos, diz restauranteiro que sabe de comida.

–  Direito não é conosco – dizem.

Não é bem assim: Direito é com todos. Todos. E não só no que se refere à regência, pelo Direito Privado, da atividade negocial, mas igualmente sua regência tributária, consumerista, ambiental etc. Delinque quem praticou ato que é tipificado como crime, saiba ou não da disposição legal. Quer ver? “Quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro no prazo de quinze dias” pratica o crime de “apropriação de coisa achada” (artigo 169, II, do Código Penal) e poderá ser condenado à pena de detenção, de um mês a um ano, ou multa. E o que dizer do princípio da cartularidade? Se o devedor paga o título de crédito, mas não exige a sua entrega, poderá ver-se cobrado novamente, sendo seu dever comprovar que pagou. Se a cártula circulou, não poderá fazer prova do pagamento ao endossatário de boa-fé. Desconhecer não é opção; não salva; não redime; não desculpa. 

– Mas isso é um absurdo!!

É? Pois veja bem: não saber Medicina não nos livra de doenças ou da morte. Não saber mecânica não nos livra de defeitos. Não saber eletricidade não nos livra dos choques. Por isso contratamos médicos e dentistas, mecânicos e eletricistas, entre outros que, por saberem o que desconhecemos, auxiliam-nos na condução de nossa vida e nossas atividades. Infelizmente, a comunidade brasileira ainda não aprendeu isso. Pior: o empresariado brasileiro, em sua maioria, ainda não aprendeu. O mercado em geral tende a tocar-se adiante confiando no que pensa ser lícito e ilícito, correndo o risco constante de descobrir que estava errado, que não fez o que deveria ou que poderia. Não é só. Há caminhos jurídicos diversos e, entre eles, opções que podem se apresentar como melhor ou pior para cada empresário ou sociedade empresária. A assessoria de um [bom] advogado permite conhecer alternativas e escolher a melhor, vale dizer, permite gozar de vantagens jurídicas.

No caso das sociedades simples ou empresárias, a situação é ainda mais visceral. Pessoas jurídicas são um fenômeno jurídico, essencialmente. Não são criadas biologicamente, como as pessoas naturais. Criam-se atendendo uma licença jurídica, nomeadamente os artigos 40 e seguintes do mesmo Código Civil. É o Título II (Das Pessoas Jurídicas) do Livro I (Das Pessoas) da Parte Geral. E suas três dimensões (existência, funcionamento e atuação; conferir Estruturação Jurídica de Empresas; Editora Atlas) correspondem às regras (cláusulas ou artigos) enunciadas em seus atos constitutivos (plataforma normativa primária, demonstramos no mesmo livro: contrato ou estatuto social), devidamente levados ao registro público competente. Portanto, “o que uma pessoa jurídica é” resulta de uma plataforma de normas (cláusulas ou artigos de contrato social ou estatuto social). E poderá ser melhor ou pior se tais normas – e seu coletivo: a respectiva plataforma – for melhor ou pior. Bons carros são feitos a partir de um bom projeto, boas peças e bom conjunto. Eis uma boa analogia.

A contratação de um [bom] advogado societarista constitui um investimento a bem da sociedade (simples ou empresária) e da respectiva atividade negocial. O básico, o elementar, o mínimo necessário irá propiciar o básico, o elementar, o mínimo necessário. Pode servir em muitos casos. Pode ser a via curta para grandes desafios em outros tantos casos. Aliás, desejando contribuir contra a cultura da repetição de modelos básicos, a reiteração do elementar, organizamos um Manual de Redação de Contratos Sociais, Estatutos e Acordos de Sócios (Editora Atlas). Neste livro, compilamos centenas de modelos de cláusulas e artigos, acompanhados de notas explicativas, para auxiliar o advogado na composição de atos constitutivos que se aproximem mais da necessidade dos envolvidos em casa sociedade. E modelos que destacam as possibilidades de variação que podem ampliar a sintonia entre o que os clientes/sócios esperam e o que lhes será entregue pelo advogado. 

O que está em jogo, contudo, é maior, como dissertamos noutro artigo publicado neste mesmo blog: “Empresas que renunciam ao poder de se autorregulamentar”. O Direito Brasileiro (Constituição e leis), concedem um poder de autorregulamentação para os entes privados. Na lei há uma regulamentação genérica. Para além do que é legalmente obrigatório ou proibido, permite-se que os atos constitutivos inovem na regulação da existência, funcionamento e atuação da pessoa jurídica. Um poder de autorregulamentação, portanto. E muitas sociedades, designadamente as grandes corporações, fazem amplo uso dessa licença, com resultados amplamente favoráveis. Normas dispostas no contrato social ou no estatuto social podem mesmo traduzir e disciplinar estratégias de longo prazo, numa metodologia corporativa de funcionamento e autuação voltada à consolidação no mercado. Sociedades que não dispõem de tais ferramentas, terão maior dificuldade em seu caminho e, não-raro, terão que enfrentar diversas discussões internas para enfrentar seus desafios.

É interessante acompanhar o desempenho do seleto grupo de corporações (de pequenas startups a grandes empresas) que se mostram juridicamente bem estruturadas. Estruturação que não se limita ao ato constitutivo, mas pode avançar por plataformas normativas secundárias (ou acessórias: os pactos parassociais) e mesmo terciárias (ou laterais: regimento de trabalho, complience etc). Empresas que investem nesse pilar estratégico que é ter uma boa regência, fruto da melhor tecnologia jurídica e de metodologia adequada. O que se afere é uma maior capacidade para lidar com os desafios que podem se apresentar, dos mais corriqueiros (a morte do sócio, seu divórcio, suas dívidas em execução etc) ao mais complexos (oportunidades de fusão, incorporação, necessidade de capitalização, ocorrência de conflitos entre sócios etc). E isso vai além, como desvio de conduta de empregados, abuso de gerente(s) ou administrador societário, entre outros. 

Sociedades de diferentes naturezas (simples ou empresárias, incluindo sociedades profissionais), ainda que com diferentes portes e atuando em diferentes setores, podem se beneficiar dessa tecnologia. Deveriam, aliás. É uma iniciativa com aplicação diversificada. Obviamente, é indispensável haver advogados com capacitação para tanto: fazer com qualidade. Daí reiterarmos a expressão “advocacia societarista” para traduzir mais do que o básico do Direito Societário, mas uma cultura profissional mais aprofundada, mais sofisticada, atenta não só ao necessário, mas ao melhor. Uma advocacia corporativa de excelência, inovadora, que se esforça para alocar nas plataformas normativas (em seus três níveis) o que proporcionará condições para a melhor posição e conexão da atividade negocial com o mercado, o Estado, a comunidade em geral.

Claro que um trabalho desse implica cuidado especial com a redação e a revisão dos documentos, evitando antinomias como a noticiada na cabeça deste ensaio. Melhor será quando os profissionais tenham o cuidado de registrar as tratativas que antecederam o estabelecimento da plataforma; registrar e guardar tais registros. Estamos falando de toda a correspondência e, de preferência, atas das reuniões. É o que poderia solucionar o problema da antinomia relatada. Há algum tempo, um processo de arbitragem instaurado para definir a interpretação que se deveria dar a certa cláusula de contrato de parceria entre empresas, a solução veio da juntada, por uma das partes, de todos os e-mails que foram trocados durante a negociação. O sentido da norma exsurgia claro do diálogo entre as partes e deu solução à demanda.

E se os advogados, no caso narrado, não tomaram esse cuidado? Se há apenas a antinomia, sem qualquer registro que permita solucioná-la, resta recorrer ao Judiciário ou, havendo cláusula compromissória, à arbitragem. Mas, veja, a sociedade já terá sido uma vítima da falha de redação e isso é ruim para a empresa. Bons contratos ou estatutos sociais trazem cláusulas de mediação e/ou de conciliação para tentar evitar esse dano à affectio societatis. Se não há nada disso, resta o litígio e a solução não é objetiva: o julgador competente irá definir os critérios a partir dos quais a antinomia será resolvida. Nós julgaríamos assim, outros julgariam assado. Um horror desnecessário, mas sem volta. O contrato social está assinado e registrado. O descuido cobra o seu preço.

Erros ocorrem. Isso é certo; mas não escusa qualquer profissional ou organização (inclusive sociedades de advogados). A certeza de que o erro é uma possibilidade que, afiada, pende sobre nossas cabeças, qual a espada que Dionísio mandou dispor sobre a cabeça de Dâmocles, não escusa. Pelo contrário, recomenda atenção para o erro possível (quiçá provável, fruto da falibilidade humana). Escritórios de advocacia precisam ter rotinas internas – é comum se falar em protocolos de atuação – para evitar que isso ocorra. O trabalho deve ser visto e revisto, deve ser conferido, checado. Em se tratando de acordos de vontade, recomenda-se registrar e arquivar todo o movimento formativo, as tratativas, as negociações, as definições. Houve um tempo em que isso demandava grandes arquivos abarrotados de papel. Hoje, um pen-drive ou disco rígido externo pode substituir um galpão. O recurso às atas de reunião é precioso, nomeadamente quando registram acordos (pactos, distratos, repactuações) havidas ao longo do período (e processo formativo). São as portas de entrada e os corredores de um universo qualificado. 

Temos destacado a importância que a advocacia empresarial tem na estruturação e condução empresariais. O mercado está mais disputado, mais complexo; exige formação compatível com o nível de competitividade reinante, para não falar de todas as normas que incidem como expressão de uma maior sofisticação da sociedade brasileira. Tocar um negócio, hoje em dia, é muito mais do que simplesmente realizar seu objeto. Mais e mais parâmetros são estabelecidos para pautar a atuação negocial e proteger consumidores, trabalhadores, comunidades, meio-ambiente etc. A aderência a esse arcabouço de mais exigências tende a beneficiar a todos, na mesma proporção em que onera a todos: cada um em sua atividade, em sua profissão. Advogados detém um papel específico e fundamental nesse esforço de melhoria coletiva. É preciso corresponder à oportunidade e à necessidade, a principiar pela excelência no mister de redigir contratos sociais, estatutos e acordos de sócios.

Manual de Redacao de Contratos Sociais, Estatutos e Acordos de Socios - Serie Solucoes Juridicas

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