GENJURÍDICO
sucessão digital e bens digitais

32

Ínicio

>

Artigos

>

Direito Digital

ARTIGOS

DIREITO DIGITAL

A complexa questão da sucessão dos bens digitais

BENS DIGITAIS

DIREITO CIVIL

DIREITO SUCESSÓRIO

HERANÇA DIGITAL

INVENTARIANTE DIGITAL

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

PRIVACIDADE DIGITAL

STJ

SUCESSÃO DIGITAL

TECNOLOGIA E DIREITO

Ana Frazão

Ana Frazão

07/11/2025

Como já tive oportunidade de explorar em artigo anterior, os bens digitais vêm gerando muitas controvérsias a respeito do regime jurídico que lhes deve ser aplicado[1]. Diante do vácuo legislativo sobre o tema, há consideráveis dificuldades para se aplicar aos bens digitais as regras sobre bens corpóreos, o que dá margem a que conflitos importantes sejam regidos por meio de normas criadas unilateralmente pelos agentes econômicos ofertantes de tais bens, que nem sempre equacionam adequadamente os interesses envolvidos.

Dentre os principais desafios apresentados pelos bens digitais, encontram-se os relacionados à sucessão, especialmente no que diz respeito ao que pode ser objeto de transmissão causa mortis e que instrumentos e cuidados devem ser adotados para operacionalizar a chamada herança digital.

O tema, que já foi objeto de um episódio do podcast Direito Digital[2], apresentado pela professora Caitlin Mulholland e por mim, é extremamente complexo, até em razão das dificuldades de se separar os bens existenciais – não necessariamente transmissíveis, em razão do seu caráter personalíssimo – dos bens patrimoniais. Ademais, ainda é preciso enfrentar a heterogeneidade dos bens digitais patrimoniais – que podem abranger conteúdos artísticos, criptoativos, perfis em redes sociais, contas de email ou de serviços de mensageria instantânea, dentre outros – o que pode exigir soluções distintas do ponto de vista da transmissibilidade.

Sucessão digital e bens digitais: o caso julgado pelo STJ

Em contexto de tantas dificuldades e indefinições, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar recentemente um caso de herança digital, adotou interessante orientação sobre o assunto. Trata-se do RESP 2.124.424, cuja ementa merece ser transcrita em seus trechos principais[3]:

“CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO SUCESSÓRIO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVENTÁRIO. AUSÊNCIA DE NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AUSÊNCIA DE NULIDADE SEM PREJUÍZO. EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO A FIM DE OBTER INFORMAÇÕES SOBRE O PATRIMÔNIO DIGITAL DO FALECIDO. QUESTÃO DE ALTA INDAGAÇÃO. NECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE PROCESSUAL DE IDENTIFICAÇÃO, CLASSIFICAÇÃO E AVALIAÇÃO DE BENS DIGITAIS.

(…)

  1. No que concerne à alegação de que a matéria se trata de questão de alta indagação, tem-se que a obtenção de informações acerca de eventual conteúdo patrimonial nos aparelhos eletrônicos do falecido é ato integrativo ao processo de inventário, bastando ao juízo que proceda atos práticos a fim de identificar, classificar e avaliar os bens digitais titularizados pelo falecido.
  2. Diante da existência de bens digitais no monte partível, é dever do juiz se cercar de todos os cuidados e garantias para compatibilizar, de um lado, o direito dos herdeiros à transmissão de TODOS os bens do falecido; de outro, os direitos de personalidade, especialmente a intimidade do falecido e/ou de terceiros.
  3. Na hipótese de o falecido deixar bens digitais aos quais os herdeiros não tenham a senha de acesso, necessário se faz a instauração de incidente processual de identificação, classificação e avaliação de bens digitais, paralelo e apensado ao processo (associado à aba) de inventário.
  4. Diante de vácuo legislativo a respeito do acesso aos bens digitais de propriedade da pessoa falecida que não deixa senha nem administrador dos seus bens digitais, a proposta de que o acesso se dê mediante incidente processual não caracteriza ativismo judicial e está alicerçada em interpretação analógica com outros institutos processuais.
  5. O incidente processual será conduzido pelo juiz do inventário, que deverá ser assessorado por profissional, com expertise digital adequada para buscar bens digitais no aparelho do falecido, o qual poderá ser denominado inventariante digital.
  6. No recurso sob julgamento, o pedido expressamente formulado no recurso, de expedição de novo ofício para a Apple, não pode ser acolhido, pois não se pode autorizar tal empresa a abrir o computador da falecida, posto que poderá lá conter bens digitais que ofendem direitos da personalidade da falecida.
  7. Contudo, a pretensão de acesso aos bens digitais transmissíveis deve ser deferida, mediante o incidente processual, diante da ausência de lei processual reguladora. Assim se cumprirão os deveres constitucionais de entrega de TODOS os bens (analógicos e digitais), sem violar os direitos da personalidade da falecida ou de terceiros.
  8. Dispositivo
  9. Recurso especial conhecido e parcialmente provido, para que os autos retornem ao primeiro grau de jurisdição e se processe o incidente de identificação, classificação e avaliação de bens digitais titularizados pelos falecidos, nos termos da fundamentação.”

O caso é bastante interessante, até porque reflete uma das dificuldades comuns da sucessão digital: o desconhecimento, pelos herdeiros, do acervo digital do morto. Não é sem razão que, neste caso, os herdeiros haviam expedido um ofício à Apple para terem conhecimento dos bens digitais do casal falecido, tendo recebido resposta que foi considerada incompreensível ao homem médio.

Diante do requerimento dos herdeiros para que novo ofício fosse expedido à Apple, a fim de que a empresa traduzisse para linguagem acessível as informações prestadas, o juízo do inventário indeferiu o pedido, sob o fundamento de que a questão demandaria dilação probatória, o que seria incabível no processo de inventário, decisão que foi mantida pelo TJSP.

Em grau de recurso especial, o voto-vencedor da Ministra Nancy Andrighi conheceu e deu parcial provimento ao pleito, sob os seguintes fundamentos principais:

  • Em casos em que o morto não tenha deixado a senha de seus equipamentos, os herdeiros têm direito de postular ao juízo do inventário o acesso aos referidos bens;
  • O acesso dos herdeiros ao acervo digital do morto não pode ser considerado questão de alta indagação que, por ensejar dilação probatória, é considerada estranha ao inventário,
  • Diante das repercussões da revolução tecnológica na sucessão causa mortis, “a atividade judicial em Direito Sucessório deve garantir que não haja prejuízo ocasionado pela impossibilidade de acesso aos bens digitais”;
  • Deve haver a necessária diferenciação entre os bens digitais que poderão ser transmitidos aos herdeiros e aqueles que, em respeito à intimidade e à vida privada do falecido e de terceiros, não o possam: “Por outro lado, nem todos os bens digitais poderão ser transmitidos: o limite é o respeito à intimidade e à vida privada do falecido e de terceiros. Com efeito, bens digitais que possam ferir os direitos da personalidade não poderão ser entregues aos herdeiros. Como se vê, a alteração provocada pela era digital é tão profunda que afetou, inclusive, o vetusto princípio da Saisine.”

Ponto crucial do voto-vencedor da Ministra Nancy Andrighi é a constatação de que nem todos os bens digitais do falecido são objeto de sucessão, pois há questões de privacidade e intimidade deste e de terceiros que precisam ser preservadas. Com efeito, quem tem acesso amplo a um celular ou um Ipad, pode ter conhecimento de dados pessoais sensíveis ou íntimos do falecido, como geolocalização, fotos íntimas, conversas privadas, arquivos sigilosos (inclusive de conteúdo profissional), dentre outros.

Daí a necessidade de que os inventários se adaptem para possibilitar a identificação dos bens digitais transmissíveis aos herdeiros, o que, para a Ministra Nancy Andrighi, justificaria a abertura de um incidente processual cujo objeto seria a identificação, a classificação e a avaliação dos bens digitais encontrados nos aparelhos eletrônicos do falecido, a fim de que o juízo possa analisar o conteúdo e a possibilidade de transmitir os bens digitais encontrados.

O papel do inventariante digital na sucessão de bens digitais

É nesse contexto que deve ser compreendida a figura do inventariante digital, cujo papel seria semelhante ao de um perito: ele teria acesso a todos os bens digitais do falecido, para o fim de preparar minucioso relatório que possibilite ao juiz decidir o que poderá ou não ser objeto da sucessão. Para a Ministra Nancy Andrighi, a solução, longe de ser ativismo judicial, decorreria da interpretação analógica da legislação sucessória, combinada com outros institutos processuais.

É claro que, ao assim propor, a Ministra Nancy Andrighi não ignora os riscos desta solução, razão pela qual asseverou que “o exercício da atividade de inventariante digital exige respeito à confidencialidade, podendo ele ser responsabilizado civil e criminalmente por eventual violação ao segredo de justiça.”

Trata-se, portanto, de solução engenhosa, que procura endereçar várias das dificuldades inerentes à sucessão digital a partir da figura de um terceiro expert, imparcial e com competência técnica, para avaliar o acervo digital do morto.

É interessante notar que, sob vários aspectos, a proposta ressalta o papel crescente de auditores e terceiros imparciais na avaliação dos problemas decorrentes da utilização da tecnologia, tais como os decorrentes da necessidade de quebra do segredo de empresa na busca de maior transparência algorítmica.

Por essa razão, é fundamental perquirir sobre as formas adequadas para o exercício da função desses terceiros, como é o caso do inventariante digital, a fim de se prevenir conflitos de interesses, incidentes de segurança e quaisquer outros problemas que podem comprometer a privacidade do morto.

Vale ressaltar que, por ser desafiadora, a questão ensejou interessante voto-vencido do Ministro Ricardo Cuêva, que questionou várias das premissas contidas no acórdão estadual, inclusive para o fim de apontar que “a expedição de novo ofício à Apple, com a requisição de informações acerca do conteúdo digital dos IPads do casal falecido, não configura questão de alta indagação.”

O Ministro Ricardo Cuêva, ao ressaltar o quanto a matéria ainda é controvertida, também discordou da premissa da Ministra Nancy Andrighi de que é necessário diferenciar os bens suscetíveis de sucessão ou não, sob o fundamento de que “não se pode afirmar que haverá bens digitais intransmissíveis, cujo acesso e conhecimento pelo inventariante seria vedado.”

Nesse sentido, o Ministro Ricardo Cuêva invoca muitas iniciativas estrangeiras – direito alemão, italiano, francês e espanhol – que admitem a sucessão total, inclusive dos conteúdos de caráter estritamente pessoal – aí incluídos, conforme o país, redes sociais, correio eletrônico ou serviços mensageria instantânea como o Whatsapp – salvo se o morto tiver disposto em sentido contrário.

Para o Ministro Ricardo Cuêva, “a obrigatória determinação da distinção entre os bens de conteúdo patrimonial e existencial apresenta também graves problemas de ordem prática”, além de trazer uma questão de legitimidade, pois ninguém poderia ter mais direito de acessar e fazer a triagem desse material que não os próprios herdeiros.

Dessa maneira, o Ministro Ricardo Cuêva concluiu pela ampla transmissibilidade dos bens digitais aos herdeiros, salvo disposição de vontade do morto, considerando que a proteção dos direitos da personalidade de terceiros pode ser resolvida por meio do segredo de justiça, o que já seria uma regra nos inventários, e que eventuais excessos dos herdeiros poderiam ser contidos pelos institutos do abuso de direito e da responsabilidade civil.

Desafios e reflexões sobre a sucessão digital no Brasil

Como se pode observar pelo confronto entre as duas posições, é inequívoco que a sucessão digital é questão complexa. Entretanto, eu tendo a concordar com a solução da Ministra Nancy Andrighi, mesmo reconhecendo as dificuldades relacionadas à sua implementação.

A principal razão da minha concordância diz respeito ao fato de que acho fundamental a diferenciação entre os bens digitais personalíssimos – aprioristicamente insuscetíveis de sucessão– e os bens digitais patrimoniais. Reconheço que muitos dos bens digitais apresentam um caráter híbrido – como é o caso dos dados pessoais – mas, ainda assim, parece-me que, havendo desdobramentos relevantes de direitos da personalidade, a regra deveria ser a intransmissibilidade, inclusive em razão do art. 11, do Código Civil, segundo o qual “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.” (grifos nossos)

Dessa maneira, no silêncio do morto, há boas razões para sustentar que prevalece a regra da intransmissibilidade e não o contrário. Por outro lado, é justamente diante de parentes e pessoas próximas que muitas vezes a necessidade de proteção da privacidade e da vida pessoal do morto se torna mais imperiosa, propósito para o qual o segredo de justiça não resolveria o problema, pois o que se quer proteger é a intimidade do morto mesmo diante dos seus herdeiros e não apenas diante de terceiros.

Daí a preocupação legítima da Ministra Nancy Andrighi com a apresentação de uma proposta que, a exemplo do inventariante digital, procura conciliar o direito dos herdeiros aos bens digitais patrimoniais com a proteção da privacidade e dos demais direitos da personalidade do morto.

De toda sorte, reconheço a complexidade do assunto e as dificuldades de implementação prática da solução contida no voto da Ministra Nancy Andrighi, além dos riscos que ela também representa. Por essa razão, resolvi destacar o tema nesta oportunidade, salientando a necessidade de uma maior reflexão a seu respeito.

Fonte: Jota

CONHEÇA O LIVRO DE ANA FRAZÃO

Lei de Liberdade Econômica - Análise Crítica: conheça o lançamento

LEIA TAMBÉM


NOTAS

[1]https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/qual-o-regime-juridico-aplicavel-aos-bens-digitais

[2]https://open.spotify.com/episode/2Ax7f594Eftmk5HOXDjRXc

[3] REsp n. 2.124.424/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 9/9/2025, DJEN de 26/9/2025.

Assine nossa Newsletter

Li e aceito a Política de privacidade

GENJURÍDICO

De maneira independente, os autores e colaboradores do GEN Jurídico, renomados juristas e doutrinadores nacionais, se posicionam diante de questões relevantes do cotidiano e universo jurídico.

Áreas de Interesse

ÁREAS DE INTERESSE

Administrativo

Agronegócio

Ambiental

Biodireito

Civil

Constitucional

Consumidor

Direito Comparado

Direito Digital

Direitos Humanos e Fundamentais

ECA

Eleitoral

Empreendedorismo Jurídico

Empresarial

Ética

Filosofia do Direito

Financeiro e Econômico

História do Direito

Imobiliário

Internacional

Mediação e Arbitragem

Notarial e Registral

Penal

Português Jurídico

Previdenciário

Processo Civil

Segurança e Saúde no Trabalho

Trabalho

Tributário

SAIBA MAIS

    SAIBA MAIS
  • Autores
  • Contato
  • Quem Somos
  • Regulamento Geral
    • SIGA