
32
Ínicio
>
Artigos
>
Atualidades
>
Consumidor
ARTIGOS
ATUALIDADES
CONSUMIDOR
Autonomia e planejamento familiar: sobre a equivocada tutela do arrependimento

Henderson Fürst
07/03/2025
Henderson Furst de Oliveira
Introdução
Há um dever de o Estado proteger alguém de si mesmo?
Esta pergunta tem diferentes respostas, e elas dizem muito sobre o próprio desenvolvimento dos direitos fundamentais e do processo civilizatório de uma determinada comunidade.
Diversos casos são marcantes sobre o nível de intervenção que cabe ao Estado para proteger alguém de si (se é que cabe tal intervenção). Por exemplo, no verão francês de 1991, Manuel Wackenheim, um jovem com nanismo, fez sucesso em bares e festas sendo arremessado recreativamente mediante pagamento – prática conhecida como “lancer de nain” (lançamento de anão). As prefeituras da região proibiram a prática, considerando estar protegendo Manuel de uma atividade que consideravam ferir a sua dignidade, embora ele próprio considerava uma forma lícita e digna de trabalho. O caso foi parar na Corte Europeia de Direitos Humanos[1].
Há uma mudança de compreensão desta questão em andamento. E fica claro quando se observa que o Código de Moral Médica, de 1929, falava que “o enfermo deve implícita obediência às prescrições medicas”[2], enquanto o Código de Ética Médica atual diz muito diferente: é vedado ao médico deixar de obter o consentimento do paciente[3].
O direito de escolher por si, de estabelecer suas decisões existenciais, especialmente quando envolve a saúde, é uma conquista histórica que se constrói dia após dia, caso a caso. Em decisão recente, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu um grande avanço ao reconhecer o direito de pacientes à recusa de tratamentos, mesmo com risco à vida, como se pode ver dos Temas de Repercussão Geral 952 e 1069[4].
Também a ciência jurídica tem sido sensível ao desenvolvimento civilizatório da autonomia para consentir. Por exemplo, em 1953, Nelson Hungria escreveu que o médico que respeita a autonomia de um paciente e não intervém contra a vontade dele, não apenas é um criminoso como deveria rasgar o diploma[5]. Já em 2019, uma das mais importantes obras de direito penal de nossa geração é publicada por Flávia Siqueira, descrevendo cientificamente a figura do consentimento do paciente e suas repercussões penais, bem como as diversas camadas de complexidade jurídica que há no paternalismo médico e na autonomia de um paciente consentir[6]. E, desta obra, vem a reflexão sobre o suposto dever do Estado, na forma de ciência médica, proteger um paciente de um putativo arrependimento futuro, valendo-se de seus instrumentos de persecução criminal para tanto.
O tema volta ao debate no STF como um novo capítulo neste processo civilizatório. Dessa vez, a discussão envolve outra esfera da experiência humana: o direito ao planejamento familiar e a autonomia.
Um breve contexto histórico
Há uma razão pelo qual planejamento familiar é um direito estabelecido em tratados internacionais e, no Brasil, pelo art. 226, § 7.º, da Constituição Federal. A memória. A memória de tragédias que foram institucionalizadas como políticas públicas contra pessoas e suas diversas formas de vulnerabilidade – em especial, pobres, pessoas com deficiência e mulheres. [7]
Eu sei que, num primeiro pensamento, a eugenia é associada ao nazismo. Mas é preciso dar alguns passos antes para lembrar que a ideia de eugenia negativa, ou seja, evitar o nascimento de filhos por algumas pessoas, surgiu na obra Parenthood and Race Culture[8], do médico inglês C. W. Salleby, em 1909. Ele propunha que a inferioridade e degeneração de uma raça é hereditária, e que seria necessário se livrar de tal inferioridade por meio de métodos como a esterilização (ainda que não consentida), por meio de licenças para a realização de casamentos, restrição da imigração, dentre outros meios, o que inclui o infanticídio e o aborto eugênico.
Antes de tais ideias serem implementadas pelo nazismo, foram testadas em legislações eugênicas adotadas pelos Estados Unidos[9]. E, aqui, reside um marcante paradigma jurídico que repito para que a memória não se esqueça da tragédia e da importância de cuidar do planejamento familiar.
Carrie Buck, nascida em 1906, foi criada por John e Alice Dobbs após sua mãe ser internada em um asilo estatal. Aos 14 anos, Carrie foi estuprada pelo sobrinho de seus tutores, resultando no nascimento de sua filha, Vivian. Após o nascimento de Vivian, Carrie foi internada no “Asilo Estadual de Virginia para Epilépticos e Débeis Mentais”. Sob a nova lei de eugenia da Virgínia, o superintendente da instituição, Dr. John Hendren Bell, determinou que a jovem, que estava com 18 anos, deveria ser esterilizada para impedir a propagação de características consideradas indesejáveis.
A principal questão jurídica no caso Buck v. Bell era se a lei de esterilização compulsória da Virgínia violava os direitos constitucionais de Carrie Buck, especificamente os direitos à igualdade, ao devido processo legal e à liberdade individual. Dentre os argumentos apresentados a favor da constitucionalidade da lei, vale destacar o “interesse público”, em que o Estado argumentou que a esterilização compulsória era necessária para proteger o interesse público, prevenindo a propagação de traços genéticos indesejáveis e reduzindo o ônus social e econômico associado ao cuidado de indivíduos considerados deficientes, e a “saúde pública”.
Em 2 de maio de 1927, a Suprema Corte dos Estados Unidos, em uma decisão de 8 a 1, manteve a constitucionalidade da lei de esterilização compulsória da Virgínia. O Juiz Oliver Wendell Holmes Jr. escreveu a opinião majoritária, que se tornou notória por sua frieza e brutalidade. Holmes argumentou que a esterilização compulsória era uma medida de saúde pública comparável à vacinação compulsória, como estabelecido em Jacobson v. Massachusetts. Ele afirmou que o interesse do estado em prevenir a procriação de pessoas consideradas geneticamente inferiores justificava a interferência nos direitos individuais. Holmes também sustentou que a esterilização compulsória reduziria o ônus econômico e social sobre o estado, evitando o nascimento de pessoas que necessitariam de cuidados públicos contínuos. Quanto à racionalidade da lei, a decisão enfatizou que a lei era uma resposta racional às preocupações eugênicas e de saúde pública, e que a intervenção estatal era justificada para proteger o bem-estar público. Holmes minimizou a gravidade da esterilização, argumentando que era uma intervenção menor comparada aos benefícios sociais que proporcionaria.
Uma das afirmações mais fortes realizadas por Holmes se tornou notória:
“Já vimos mais de uma vez que o bem-estar público pode exigir dos melhores cidadãos suas vidas. Seria estranho se não pudesse exigir daqueles que já enfraquecem o Estado esses sacrifícios menores, muitas vezes nem percebidos como tais pelos envolvidos, a fim de evitar que sejamos inundados de incompetência. É melhor para todo o mundo que, em vez de esperar para executar descendentes degenerados por crimes, ou deixá-los morrer de fome por sua imbecilidade, a sociedade possa impedir que aqueles que são manifestamente inadequados continuem a propagar sua espécie. Três gerações de imbecis são o suficiente”[10].
“Três gerações de imbecis”. Desculpe-me repetir. Mas é preciso. A decisão em Buck v. Bell teve consequências devastadoras e duradouras. Ela legitimou programas de eugenia nos Estados Unidos, resultando na esterilização compulsória de dezenas de milhares de pessoas até que essas leis fossem gradualmente abolidas na segunda metade do século XX.
Importa ressaltar que, apesar de todas as críticas, a decisão nunca foi formalmente revisitada, com uma nova releitura constitucional quanto à esterilização compulsória[11].
E importa contar também que, mesmo com o amplo conhecimento dos absurdos da eugenia por meio de esterilização compulsória que ocorreu nos EUA e no Nazismo, o Brasil pouco aprendeu.
Em 2017, Janaina Aparecida Quirino, mulher pobre e moradora de rua, sofreu uma ação civil pública proposta por um Promotor de Justiça em Mococa/SP para que fosse compulsoriamente esterilizada. E a decisão na primeira instância foi procedente[12]. Como se não houvesse direitos humanos. Como se não houvesse Constituição.
A discussão a ser enfrentada
Contextualizada o momento histórico e a relevância do debate, posso agora me dirigir ao aspecto jurídico.
No âmbito da ADI 5.911, discute-se se a exigência da Lei de Planejamento Familiar (Lei 9.263/1996) para a realização de esterilização voluntária é constitucional ou não. A lei estabeleceu o seguinte:
Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações:
I – em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de 21 (vinte e um) anos de idade ou, pelo menos, com 2 (dois) filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de 60 (sessenta) dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, inclusive aconselhamento por equipe multidisciplinar, com vistas a desencorajar a esterilização precoce;
II – risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.
(…)
O objeto discutido é o inciso I. Seria constitucional impedir que alguém com menos de 21 anos realize a esterilização voluntária? Considere que, com a regra posta, alguém já pode querer a parentalidade aos 18 anos, mas não pode não querer a parentalidade aos 18 anos.
A polifonia de direitos fundamentais da Constituição estabelece um paradigma que deve ser observado na questão:
Art. 227 (…)
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
O texto é claro. Há alguns deveres estabelecidos constitucionalmente ao Estado:
- Propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício do planejamento familiar;
- Impedir qualquer forma de interferência coercitiva ao planejamento familiar tanto no SUS quanto na saúde suplementar e privada;
- Não interferir na decisão de alguém, porque ela é livre.
Em momento algum, a Constituição estabeleceu uma ordem ao Estado de proteger compulsoriamente alguém de si mesmo para que não se arrependa no futuro. Ao contrário, proibiu qualquer tipo de interferência.
Quando a LPF estabelece requisitos como “21 anos” ou “dois filhos vivos”, ela está contrariando a Constituição por criar obstáculos à realização do planejamento familiar, quando não deveria criar.
Mas e quanto à proteção de alguém para que não se arrependa no futuro? A Constituição também se preocupou com isso, e determinou que, para tanto, o Estado providencie recursos educacionais.
É no âmbito da educação que o Estado deveria promover o suposto amadurecimento e a reflexão que a Lei pretende fazer na forma de proibição. Se há um dever de proteger alguém de se arrepender no futuro, não é apenas proibindo até os 21 anos de idade.
Aliás, não há qualquer critério técnico que justifique tal proteção até os 21 anos e não os 19, 20, 30 anos de idade. Afinal, por que seria possível se arrepender apenas até os 21 anos?
Vê-se, portanto, que é uma arbitrariedade legislativa pautada em máximas que não efetivam o mandamento constitucional. A Constituição determina que seja a educação o mecanismo de permitir instrumentais para a tomada de decisão consciente, e por meio da proibição. E isso apenas recentemente começou a ser feito por meio da implementação da educação sanitarista pela Portaria 1.004/2023[13] do Ministério da Saúde que estabeleceu o “Programa Saúde na Escola”, que inclusive estabeleceu a pauta da educação sexual – objeto de diversas fake news.
Por fim, ao estabelecer tais condições para a realização da esterilização voluntária, a Lei está criando um dever de agir coercitivo às instituições públicas e privadas de saúde, o que expressamente contraria a Constituição. Tal agir coercitivo vai na contramão do sentido do processo civilizatório que nossa cultura, precedentes e doutrina tem avançado.
É preciso, outra vez, que o Supremo Tribunal Federal atue a favor da autonomia de consentir. É inconstitucional a restrição estabelecida pela Lei de Planejamento Familiar de que se possa ter acesso a procedimentos apenas após os 21 anos, ou condicionado à dois filhos vivos. A Constituição determina claramente a implementação de políticas públicas educacionais para a tomada de decisão, não a condição de ter dois filhos, tampouco a de 21 anos de idade. Sobretudo, a Constituição proíbe a atuação coercitiva de instituições, e a lei está justamente determinando isso: uma atuação coercitiva das instituições de saúde sobre a decisão de planejamento familiar.
[1] Manual Wackenheim v. France. Communcation 854/1999, International Convenant on Civil And Political Rights. Disponível em: http://hrlibrary.umn.edu/undocs/854-1999.html
[2] Conselho Federal de Medicina. Código de Moral Médica. Art. 8.º. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/wp-content/uploads/2020/09/codigomoralmedica1929.pdf
[3] Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica. Art. 22. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf
[4] Um resumo das duas decisões pode ser conferido em: Supremo Tribunal Federal. Testemunhas de Jeová têm direito de recusar procedimento que envolva transfusão de sangue, decide STF. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/testemunhas-de-jeova-tem-direito-de-recusar-procedimento-que-envolva-transfusao-de-sangue-decide-stf/
[5] HUNGRIA, Nelson. Ortotanásia ou eutanásia por omissão. Revista Forense. V. 150, nov-dez/1953. Disponível em: https://blog.grupogen.com.br/juridico/postagens/classicos-forense/ortotanasia/
[6] SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e direito penal da medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2019.
[7] Tais questões estão mais bem aprofundadas em FÜRST, Henderson. Jurisdição Constitucional Sanitarista. Prelo.
[8] SALLEBY, Caleb Williams. Parenthood and Race Culture. Londres: Cassell and Company, 1909. Disponível em: https://www.gutenberg.org/files/42913/42913-h/42913-h.htm
[9] DIWAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. 2.ed. São Paulo: Editora Contexto, 2023, p. 51.
[10] Buck v. Bell, 274 U.S. 200, 207 (1927).
[11] No caso Skinner v. Oklahoma, 316 U.S. 535, 546 (1942), houve apenas a técnica de distinguishing, mas não foi expressamente superada (Overturned).
[12] EL País. Como um promotor e um juiz esterilizaram uma mulher a força. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/12/politica/1528827824_974196.html
[13] Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-1.004-de-21-de-julho-de-2023-498447570