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A esperança não é um estado de exceção
26/03/2020
O Brasil tem habitado com obstinação um permanente estado de esperança. É o energizar-se, apesar das adversidades: a nação brasileira tem sido desde 1988 um persistente canteiro constitucional de obras, de pelejas e de iniciativas. Assim foi então com a fundação do Estado democrático de Direito, e assim é na terra que não abre mão de seu futuro.
Para enfrentar a atual emergência sanitária, almeja-se o auxílio esclarecedor da ciência com transparência. Questões críticas de saúde demandam uma sociedade aberta às soluções técnicas, permeadas por constantes e sucessivas ponderações públicas. Debate plural, livre e acessível tornam as interrogações atuais em razões verificáveis e sindicáveis, o que é próprio da normalidade democrática.
Por isso mesmo, é temerária a hipótese excepcional do estado de sítio para essa situação crítica pela qual hoje passamos. Matéria indigesta, mas precaver-se nunca é demais.
Segundo o artigo 137 da Constituição brasileira, o presidente da República pode solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de comoção grave de repercussão nacional. Ao solicitar autorização, relatará os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso decidir por maioria absoluta.
É induvidoso, pois, que a defesa do Estado e das instituições democráticas está na Constituição, sem embargo transitar necessariamente pelo crivo dos Poderes. Não há estado de sítio, na conformidade constitucional, simplesmente por decreto do Executivo. O Congresso não referenda e sim decide autorizar, ou não, previamente. Limites e atribuições aos Poderes estão nessa regra; em decorrência, estão submetidos ao controle da legalidade constitucional os eventuais motivos da solicitação.
Em 5 de outubro de 1988 mentes de trágicas práticas autoritárias se foram. Hoje, os hostis à democracia são os pregadores do desânimo, da violação à Constituição e dos direitos humanos, especialmente da população mais pobre e vulnerável. A agudeza do momento não se enquadra em fatos ensejadores da medida excepcional, inexistindo em caráter nacional efetiva comoção ou sublevação apta a colocar em risco as instituições.
Relembre-se a narrativa sobre a construção do cavalo de Troia. Como se sabe, durante longos anos os troianos resistiram ao cerco que lhes afligia; dissimulando uma retirada, os gregos teriam deixado um enorme animal de madeira com guerreiros escondidos; conhecemos o restante: os troianos, supondo ser aquilo uma oferenda aos deuses, o carregaram para dentro de sua bastilha até então inexpugnável e decidiram conservá-lo. Os inimigos, assim, penetraram na resistência. E os troianos teriam com aquela postura selado o seu destino e sua ruína.
A fortaleza da Constituição também deve resistir ao assédio que quer se alavancar, insuscetível, no caso da pandemia, a justificar um regime extravagante. A garantia ao mandato popular e a normalidade democrática não deveriam ceder a impulsos de ocasião.
O que vivenciamos pode ser um terremoto na saúde pública e na vida social e econômica do país. Tecnologia e informação devem estar a serviço da sociedade. Todavia, ainda que em tempos extraordinários, cumpre não se deixar seduzir por tal exceção.
Irreversíveis seriam os danos acaso as garantias constitucionais fossem suspensas, eis que integram o regime de exceção, dentre outras, as restrições à imprescindível liberdade de imprensa. Essa gravíssima interferência do Estado apenas aprofundaria as dificuldades. Ademais, são limitadíssimas as chances de rever decisões tomadas.
O agir conscientemente no momento em curso, por meio de coordenação, consenso e eficiência, e o comprometer-se são características do estado permanente da esperança. E, para isso, cabe manter a vigília constitucional, porquanto não há cavalos de Troia na Constituição. Não fechemos os caminhos ao que, nada obstante o presente contaminado e desafiador, pudermos chamar de futuro.
Fonte: Folha de S. Paulo
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