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Repensando o Direito Civil Brasileiro – O Estatuto da Pessoa com Deficiência e a Teoria das Capacidades (Parte II)

CRÍTICA À NOVA DISCIPLINA DA CAPACIDADE DE FATO APÓS A ENTRADA EM VIGOR DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

CURSO DIDÁTICO DE DIREITO CIVIL

DIREITO CIVIL BRASILEIRO

ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

PESSOA COM DEFICIÊNCIA

TEORIA DAS CAPACIDADES

Felipe Quintella

Felipe Quintella

23/09/2016

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Vamos voltar a conversar sobre os reflexos do Estatuto da Pessoa com Deficiência na teoria das capacidades.

Como eu havia prometido na Parte I deste texto, vamos refletir, agora, sobre o deslocamento da hipótese de impossibilidade de manifestação de vontade do art. 3º, inc. III do Código Civil para o art. 4º, inc. III.

Comecemos relembrando quais as consequências das incapacidades de fato do ponto-de-vista do Direito Civil.

Primeiramente, considerando-se que as pessoas absolutamente incapazes presumidamente não têm o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil, a elas se atribui um representante, que pratica tais atos por elas, quando necessário. Os representantes são os pais, quando no exercício do poder familiar, ou um tutor (art. 1.634, inc. VII e art. 1.747, inc. I). Vale destacar que, desde que entrou em vigor o EPD, e a única hipótese de incapacidade absoluta passou a ser a dos menores de dezesseis anos, deixou de existir a figura do representante curador.

Ademais, caso um ato seja praticado pessoalmente pela pessoa absolutamente incapaz, e não por seu representante, tal ato é considerado nulo (art. 166, inc. I), justamente porque se presume que foi praticado sem o devido discernimento. Como o ato nulo jamais se convalida (art. 169), a nulidade pode ser arguida a qualquer tempo e grau de jurisdição, bem como deve ser suscitada pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir (art. 168, parte final), e, também, pronunciada de ofício pelo juiz (art. 168, parágrafo único).

Ou seja, se Maria, com quatorze anos de idade, doou a Caio uma joia de família, mas não cumpriu a obrigação de entregar, e Caio a acionou judicialmente, o juiz, ao verificar a idade da doadora, deveria de imediato declarar a nulidade da doação. Supondo, por outro lado, que Maria entregasse espontaneamente a joia, tal doação poderia ser declarada nula, por exemplo, vinte anos depois, desde que houvesse prova do negócio. Com isso, Caio teria de restituir a joia a Maria.

Por fim, contra os absolutamente incapazes não correm nem os prazos prescricionais (art. 198, inc. I) nem os prazos decadenciais (art. 208, c/c art. 198, inc. I).

Logo, supondo que Maria herdou do pai um crédito, com seis anos de idade, e que o devedor não quitou o débito voluntariamente, nem o representante de Maria cobrou o pagamento, o prazo prescricional somente começaria a correr para que Maria demandasse o pagamento a partir de quando ela completasse dezesseis anos.

Já com relação às pessoas relativamente incapazes, por sua vez, por se presumir que têm discernimento, porém incompleto ou insuficiente, atribui-se um assistente, que participa do ato com o incapaz, o qual também deve manifestar sua vontade. Os assistentes são os pais, quanto aos filhos maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, desde que estejam no exercício do poder familiar; ou um tutor, quanto aos menores, na falta dos pais; ou um curador, quanto aos incapazes maiores  (art. 1.634, inc. VII; art. 1.747, inc. I; e art. 1.781 c/c art. 1.747, inc. I, respectivamente).

Caso um ato seja praticado pela pessoa relativamente incapaz sem a participação do seu assistente, tal ato é considerado anulável (art. 171, inc. I), e não nulo. Destarte, tanto poderá ser anulado, se assim o pleitear algum interessado, quanto poderá ser confirmado, por ratificação expressa (art. 172), ou convalidado, pelo decurso do prazo decadencial (art. 178, inc. III). E, é bom frisar: a anulação só pode ser pleiteada pelo interessado; não pode ser pronunciada de ofício pelo magistrado (art. 177).

Ou seja, se Maria tivesse doado a Caio a joia de família com dezessete anos de idade, tal doação poderia ser anulada até Maria completar vinte e dois anos (quatro anos contados de quando Maria completou dezoito anos). Se Caio ajuizasse ação exigindo o cumprimento da obrigação de entregar a joia, em razão da mora de Maria, o juiz não poderia reconhecer a causa de anulabilidade do negócio, caso Maria ou seu assistente não a alegassem. Além disso, se Maria entregasse a joia, não poderia, dez anos mais tarde, exigir a restituição.

Finalmente, contra os relativamente incapazes não há a proteção quanto ao decurso dos prazos prescricionais e decadenciais.

Logo, supondo que Maria sofreu um dano moral quando tinha dezessete anos, só teria até os vinte para pleitear a respectiva indenização, porquanto o prazo de três anos do art. 206, § 3º, inc. V já corre contra ela, mesmo enquanto relativamente incapaz.

Importante: o prazo decadencial para pleitear a anulação do negócio praticado pelo relativamente incapaz sem seu assistente, especificamente, por força de lei, só começa a correr após a aquisição de capacidade plena (art. 178, inc. III), mas não por ficar suspenso antes disso, e sim porque, neste caso, o legislador escolheu como termo inicial do prazo justamente a data em que cessa a incapacidade.

Pois bem. O Estatuto da Pessoa com Deficiência deslocou a hipótese de incapacidade por impossibilidade de manifestação da vontade do art. 3º, inc. III para o art. 4º, inc. III. O tradicional exemplo desta hipótese, vale lembrar, é a pessoa em coma.

De acordo com a legislação hoje em vigor, uma pessoa que não pode exprimir sua vontade, seja por causa transitória ou permanente, é considerada relativamente incapaz.

Por conseguinte, aplicando-se a esta hipótese específica as consequências que relembramos acima, deve ser apontado ao incapaz um assistente, para praticar os atos da vida civil com ele. Os atos que este vier a praticar pessoalmente, sem o assistente, serão considerados anuláveis. E, contra o incapaz, correm os prazos prescricionais e decadenciais…

Mas, espere.

O ato jurídico, para existir, não depende de sujeito, objeto e manifestação de vontade? Em outras palavras, a manifestação de vontade não consiste em um elemento intrínseco essencial do ato jurídico, sem o qual o ato sequer existe?

E não estamos tratando da hipótese, justamente, da pessoa que não pode exprimir sua vontade?

Ora, como, então, considerá-la relativamente incapaz?

Se ela não pode exprimir sua vontade, seu “assistente” terá, sempre, de praticar o ato por ela, e não com ela. Representando-a, portanto, e não lhe assistindo.

Há, aí, um grave problema, pois, em tese, o ato do assistente praticado sem a necessária manifestação de vontade do assistido deve ser considerado inválido; a própria ideia de assistente deixa claro que ele assiste, ou seja, ajuda, auxilia. Quem representa é o representante

Mas, em se tratando de pessoa que não pode exprimir a sua vontade, o assistente terá, necessariamente, de agir como representante, sob pena de não haver quem possa validamente atuar no interesse do incapaz.

E, o que mais assusta: os prazos prescricionais e decadenciais correm contra a pessoa que não pode manifestar sua vontade!

Quer dizer, a pessoa acorda do coma e descobre que transcorreram os prazos, contra ela, enquanto ela não podia manifestar sua vontade, e agora já não há o que se possa fazer — salvo, quando for o caso, exigir do assistente indenização pelos prejuízos causados pelo decurso do prazo (arts. 195 e 208).

Mas, impende lembrar: não é todo ato que o assistente (ou mesmo o representante) pode praticar pelo incapaz.

Por exemplo, a Lei de Registros Públicos (LRP) — Lei nº 6.015/73 — atribui à pessoa, ao atingir a maioridade, o direito de alterar seu nome, sem necessidade de se ouvir o Ministério Público, e de decisão judicial (art. 57 da LRP). Tal direito, todavia, extingue-se no prazo de um ano (art. 57 da LRP). Se a pessoa completar dezoito anos estando impossibilitada de manifestar sua vontade — por exemplo, porque está em coma — e só vier a poder manifestá-la depois de já ter completado dezenove, não poderá mais mudar de nome sem processo, porque o direito que o art. 57 da LRP lhe conferiu já terá sido extinto pelo decurso do prazo decadencial. E, por óbvio, não se há que pensar que o assistente, ainda que atuando como representante, pudesse ter exercido esse direito em nome da pessoa…

Em conclusão: é extremamente importante que, o quanto antes, o legislador corrija o gravíssimo erro cometido pelo EPD e volte a considerar a impossibilidade de manifestação da vontade como hipótese de incapacidade absoluta.

Ademais, é igualmente importante que o legislador, no mínimo, volte a atribuir às pessoas com deficiência a proteção que o Direito Civil lhes dava por meio da possibilidade de invalidação (declaração de nulidade ou anulação, dependendo do caso) dos atos por elas praticados pessoalmente, bem como por suspender ou impedir o fluxo dos prazos, no caso da incapacidade absoluta. Insisto: antes que graves e irreversíveis danos sejam causados às pessoas cuja situação o Estatuto, justamente, queria melhorar.


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PARA APROFUNDAMENTO, veja também:
— QUEIROZ, Fabio; MORAIS, Luísa Cristina de Carvalho; LARA, Mariana Alves. [Orgs.] A teoria das incapacidades e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. O capítulo introdutório — A teoria das capacidades no Direito brasileiro: de Teixeira de Freitas e Clovis Bevilaqua ao Estatuto da Pessoa com Deficiência — é da lavra do Prof. Felipe Quintella.
— CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Teixeira de Freitas e a história da teoria das capacidades no Direito Civil brasileiro. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, 2013. Dissertação de mestrado do Prof. Felipe Quintella.

Veja também:

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