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O negacionismo no Direito de Família
Anderson Schreiber
11/05/2021
As medidas de isolamento social exigidas pelo combate à pandemia de covid-19 produziram diferentes consequências sobre as formas como as relações afetivas e familiares se desenvolvem. Alguns casais de namorados, por exemplo, passaram a conviver sob o mesmo teto sem que tivessem necessariamente o “objetivo de constituição de família” a que se refere o artigo 1.723 do Código Civil, obrigando a jurisprudência brasileira a repensar o usual parâmetro da moradia comum como indício de configuração de união estável.
De outro lado, o extraordinário incremento de formas remotas de convivência parece ter permitido o desenvolvimento de vínculos afetivos profundos, mesmo à distância, suscitando interessantes discussões sobre aquilo que se vem denominando de “união estável virtual” – no mesmo momento em que dispara o interesse pelo chamado “divórcio online”.[1] As relações entre pais e filhos também sofreram fortes impactos: pais separados precisaram reorganizar a forma como exercem a guarda ou a visitação de seus filhos, de modo a diminuir ao máximo a circulação neste momento e, em alguns casos extremos, a migrar para modos de convívio online a fim de preservar a saúde e a vida de pessoas em grupos de risco.
Todas essas adaptações a uma nova realidade já representaram um intenso desafio para as famílias brasileiras que, atentas aos dados científicos, compreenderam o risco inerente a uma pandemia que já gerou mais de 400 mil mortes no país. O direito de família, contudo, vem sendo chamado a responder demandas produzidas por uma outra patologia: o negacionismo. Como se sabe, o negacionismo é uma tentativa de ignorar a realidade, escapando ao desconforto e ao medo que ela provoca. O negacionista produz uma outra versão dos acontecimentos que não tem amparo em dados científicos, nem em dados de experiência.
O negacionismo mata. E mata não apenas os negacionistas, mas todos aqueles que se encontram de alguma forma sujeitos ao poder exercido pelos negacionistas. Se essa verdade parece evidente diante de atos do poder público, não deixa de ser igualmente verdadeira diante de atos de poder privado. O que fazer, por exemplo, se um pai divorciado decide negar o risco inerente à pandemia e circular livremente com os filhos sem adotar qualquer medida de proteção? O que dizer, em outro exemplo, da situação de uma mãe, de um pai ou de ambos que submetem seus filhos ao chamado “tratamento precoce”, com uso de medicamentos como hidroxicloroquina ou ivermectina, que não têm eficácia comprovada contra a covid-19 e ainda podem produzir efeitos colaterais nocivos? Como se deve agir, em último exemplo, diante de pais que se recusam a receber vacina aumentando o risco a que está exposta a saúde de seus filhos, ou, ainda, se recusam a levar à vacinação filhos que integram grupos de risco (comorbidades), ao argumento de que o medicamento é, na verdade, uma “vachina”, fabricada por chineses interessados em aniquilar a população mundial para… não se sabe bem para quê. Qual deve ser a resposta jurídica a esse tipo de atitude?
O Poder Judiciário brasileiro começa a ser chamado a examinar essas novíssimas questões do direito de família. Decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, atendeu o pedido de um pai para impedir que a mãe viajasse com filha menor impúbere do Rio de Janeiro a Manaus para visitar os avós no auge da pandemia.[2] Em outro exemplo, o mesmo Tribunal condenou a atitude de um pai que, vivendo em uma república estudantil na cidade do Rio de Janeiro, insistia em buscar para o pernoite sua filha de quatro anos que morava com a mãe em município diverso, percorrendo de ônibus um trajeto de mais de 100km (cem quilômetros), sendo que a própria mãe havia oferecido ao pai que pernoitasse na casa dos avós, situada naquele mesmo município.[3] Já o Tribunal de Justiça de Minas Gerais suspendeu as visitas de um pai a sua filha de dois anos, diante do risco suscitado pela própria conduta do pai ao participar de festas e churrascos com aglomerações.[4]
É evidente que a pandemia não é, por si só, uma justificativa para suspender visitações ou convívio dos filhos com seus pais. Bem ao contrário, em nota pública, o Instituto Brasileiro de Direito de Família registrou que “a negativa ao exercício da convivência parental presencial e? um ato extremo e o Magistrado deve optar por este caminho somente em casos onde for comprovada a existência de risco para a criança/adolescente ou para a sociedade”.[5] O que se deve avaliar, portanto, é o risco concreto para a criança ou adolescente naquele caso específico. Nessa mesma direção, nossos tribunais já têm consolidado, por exemplo, o entendimento de que, dentre os genitores médicos, é preciso distinguir aqueles que efetivamente se encontram na linha de frente do combate à covid-19 daqueles que, diversamente, estão atendendo em consultórios privados com a adoção de todas as cautelas necessárias a evitar o contágio.[6]
Mesmo naqueles casos extremos em que os tribunais têm determinado a suspensão do convívio com um dos pais, tal determinação tem sido acompanhada de contracautelas importantes, como (a) a garantia de um tempo mínimo de convívio remoto por chamadas de vídeo; (b) a possibilidade de revisão a qualquer tempo da decisão diante da mitigação da situação de risco; e (c) o direito à compensação futuras dos dias pelos quais vigorou o excepcional afastamento.[7]
Os tribunais brasileiros também têm se posicionado francamente a favor de alterações de regimes de guarda compartilhada no sentido de estender o número de dias que os filhos passam com pais divorciados. Nossas cortes têm acolhido, por exemplo, pedidos de que períodos originariamente fixados em sete dias sejam estendidos para quinze dias,[8] o que atende, em regra, ao melhor interesse da criança. Não raro se tem recorrido, em sede judicial e extrajudicial, a uma analogia com o regime previsto em acordos de guarda para as férias escolares, pois são regimes habitualmente construídos sob a premissa de que o convívio será mais concentrado com um dos pais, alternadamente com o outro.
E aqui se chega a um ponto extremamente polêmico: a questão da volta às aulas. A atitude generalizada do poder público brasileiro de manter abertos os espaços físicos das escolas, em um momento em que o país vive um dos picos da crise de saúde pública, conta com apoiadores e críticos. Mandar ou não as crianças para a escola tem sido a escolha de Sofia enfrentada por muitas famílias brasileiras. São conhecidos os incontáveis benefícios do convívio escolar. A escola não é apenas local de construção de conhecimento, mas também de desenvolvimento da afetividade, de habilidades sociais e da própria autonomia do menor. O afastamento físico da escola mostra-se especialmente gravoso no caso de crianças e adolescentes em estado de vulnerabilidade social ou econômica, que, por vezes, enfrentam, como alternativas sombrias ao ambiente escolar, a subnutrição, a exploração do trabalho infantil e a violência doméstica.
Por outro lado, é evidente que a presença física na escola expõe alunos a algum aumento no risco de contágio por covid-19.[9] Na maior parte das escolas, os pais dos alunos não têm conhecimento da atitude que os pais dos colegas de seus filhos adotam em relação à pandemia: se respeitam ou não o distanciamento social e outras medidas de saúde. Não se pode ignorar, ainda, o fato de que crianças contaminadas podem representar perigosos vetores de transmissão (o que é agravado pelo seu perfil, muitas vezes, assintomático) para seus pais, avós, irmãos e outras pessoas de seu convívio, além dos professores e funcionários das escolas.[10] Lugar de criança é na escola, como diz o bordão, mas é também na família e na sociedade que integram, sendo certo que os diferentes riscos envolvidos em cada caso concreto devem ser sopesados.
E aí entra novamente o direito de família. Se a escolha já é complexa para pais que vivem juntos e tendem a compartilhar o mesmo ambiente familiar, a situação pode se tornar verdadeiramente dramática nas hipóteses de guarda compartilhada. Pais que exercem a guarda compartilhada de seus filhos vivem, não raro, em circunstâncias distintas: um genitor que mora com seus próprios pais, idosos, terá possivelmente uma postura mais cautelosa com a circulação que aquele que vive só. Essas circunstâncias podem influenciar na própria visão de cada um sobre o tema. Não há aqui fórmula mágica, mas qualquer decisão deve atentar às circunstâncias concretas dos diferentes ambientes que a criança frequenta. Deve-se avaliar, nesse sentido, cada criança, cada família, cada escola, cada município, sempre à luz dos índices e dados disponíveis em relação ao estado da pandemia naquele momento.
Assim, parece que uma decisão adequada dos pais sobre este tema deve ser pautada, tal como outros tantas vinculados à circulação das crianças em tempos de pandemia, em fatores que se refiram à concreta situação do menor e de seus familiares, dentre os quais (a) as condições médicas da própria criança, como já tem ressaltado nossos tribunais ao tratar de conflitos relativos à circulação de menores diagnosticados com asma,[11] bronquiolite de repetição[12] e outros problemas que possam representar concretamente maior risco em caso de contaminação por covid-19;[13] (b) a idade das crianças e a avaliação concreta do eventual prejuízo ao seu desenvolvimento escolar; (c) a possibilidade de oferta de meios alternativos, como aulas particulares ou aulas e outras atividades em conjuntos com outras crianças que tenham pais que estejam igualmente respeitando o distanciamento social; (d) o grau de contaminação da região e os índices móveis em relação ao contágio, à letalidade e à ocupação de leitos; (e) a distância, o meio em que se dará o percurso e o nível de segurança no trajeto a ser percorrido até a escola; e (f) a condição de saúde dos demais familiares que convivem com a criança nas casas que habitam, como avós idosos, irmãos recém-nascidos ou outros familiares que, por qualquer outra razão, integram grupo de risco. Cumpre recordar, nesse particular, que o respeito à vida e à saúde de todos os familiares do menor é também um dever de cada um dos pais.
Em caso muito polêmico, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Santa Catarina negou o pedido de uma mãe, que se encontra em rigoroso tratamento contra o câncer, para suspender ou reduzir as visitas paternas, alegando que não poderia, de sua parte, correr o risco de contrair o vírus e que o pai do menor, além de trabalhar em comércio externo, continuava a frequentar bares e restaurantes.[14] Como dito, a suspensão do convívio é, de modo geral, uma medida extrema, mas não se pode tampouco ser conivente com o negacionismo. Seja quais forem as circunstâncias, ser pai é, em essência, ser responsável, o que exige no exercício do dever de proteção dos filhos uma atitude que não seja contrária aos dados científicos e empíricos coletados até aqui sobre a pandemia, com heróico esforço dos profissionais de saúde.
Nesta última terça-feira, a morte do ator e humorista niteroiense Paulo Gustavo por complicações decorrentes da covid-19 provocou comoção em todo o país. No dia seguinte, em diferentes cidades do Brasil, pessoas foram às janelas para emitir uma salva de palmas em um tributo espontâneo ao artista e a todas as vítimas da pandemia. No mesmo momento, noticiários de todo o mundo anunciavam que, em um gesto histórico, o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, decidiu apoiar perante a OMS a quebra de patentes sobre vacinas contra a covid-19. O Itamaraty segue se posicionando contrariamente à ideia.
A questão não é simples, naturalmente, mas há em todo esse debate uma certeza indisputável: não é mais possível, a esta altura, situar qualquer outro interesse acima do perigo representado pela pandemia para a vida e a saúde de todos os brasileiros. Mais óbvio que isso só o fato de que a Terra não é plana.
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[1] Notícia do portal Migalhas intitulada “O divórcio online na pandemia do coronavírus” registra que o “Google Brasil revelou um aumento vertiginoso de 9900% na busca pelo termo divórcio online gratuito” (5.11.2020).
[2] TJRJ, Agravo de Instrumento 0044289-18.2020.8.19.0000, Rel. Des. Luiz Fernando de Andrade Pinto, j. 26.8.2020.
[3] TJRJ, Agravo de Instrumento 0041460-64.2020.8.19.0000, Rel.ª Des.ª Maria Helena Pinto Machado, j. 26.8.2020.
[4] “Por comportamento impróprio, Justiça proíbe pai de ver filha durante a pandemia”, disponível em: https://jmonline.com.br/novo/?noticias,1,GERAL,199037 (17.7.2020).
[5] IBDFAM, disponível em: https://ibdfam.org.br/assets/img/upload/files/IBDFAM%20-%20Considera%c3%a7%c3%b5es%20sobre%20a%20recomenda%c3%a7%c3%a3o%20do%20Conanda.pdf (15.6.2020).
[6] Como já decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, é preciso diferenciar a situação do profissional de saúde que atua na linha de frente de combate à pandemia da situação, por exemplo, do profissional que, “apesar de ser médico, é ortopedista eexerce suas atividades em seu consultório particular, sem vínculo com hospitais, pronto socorros ou qualquer outra unidade de atendimento na linha de frente do Covid-19” (TJRJ, Agravo de Instrumento 0048792-82.2020.8.19.0000, Rel. Des. Nagib Slaibi Filho, j. 21.10.2020).
[7] TJSP, Agravo de Instrumento 2150914-47.2020.8.26.0000, Rel. Des. Alexandre Marcondes, j. 22.2.2021: “(…) Razoabilidade da breve suspensão dos encontros presenciais, especialmente considerando a proposta de realização de chamadas de áudio e vídeo com o menor, além de posterior compensação do período de afastamento.”
[8] TJRJ, Agravo de Instrumento 0019439-94.2020.8.19.0000, Rel. Des. Mario Assis Gonçalves, j. 16.11.2020.
[9] Ver, entre outras fontes, https://www.health.harvard.edu/diseases-and-conditions/coronavirus-outbreak-and-kids (6.5.2021).
[10] Sobre este tema em particular, ver: https://www.rededorsaoluiz.com.br/instituto/idor/novidades/criancas-podem-ser-vetores-de-contaminacao.
[11] TJSP, Agravo de Instrumento 2099934-96.2020.8.26.0000, Rel. Des. Jair de Souza, j. 4.8.2020.
[12] TJRJ, Agravo de Instrumento 0053539-75.2020.8.19.0000, Rel. Des. Andre Luiz Cidra, j. 25.11.2020.
[13] TJRJ, Agravo de Instrumento 0031868-93.2020.8.19.0000, Rel. Des. Maurício Lopes, j. 1º.7.2020.
[14] Ver inteiro teor da decisão em: https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/tjsc-garante-direito-fundamental-de-filho-de-ver-o-pai-durante-a-pandemia-da-covid-19 (19.4.2021).