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A lei 14.118/21 e suas repercussões para o Direito de Família. Breves anotações
Flávio Tartuce
29/01/2021
A lei 14.118, de 12 de janeiro de 2021, instituiu o programa Casa Verde Amarela – em substituição ao programa Minha Casa, Minha Vida (Lei 11.977/09) -, para aquisição de imóveis por famílias de baixa renda. O diploma legal emergente recebeu muitos comentários neste início de ano, notadamente a respeito das regras que impactam o Direito de Família. Porém, na verdade, como se verá por este breve texto, a nova norma reproduziu comandos que estavam previstos na legislação anterior. Sobre a sua amplitude de aplicação, o art. 1º da lei 14.118/21 prevê que o novo programa tem a finalidade de promover o direito à moradia a famílias residentes em áreas urbanas com renda mensal de até R$ 7.000,00 (sete mil reais) e a famílias residentes em áreas rurais com renda anual de até R$ 84.000,00 (oitenta e quatro mil reais).
A norma também estatui que o programa está associado ao desenvolvimento econômico, à geração de trabalho e de renda e à elevação dos padrões de habitabilidade e de qualidade de vida da população urbana e rural. Como ressalva importante, o seu § 1º enuncia que, na hipótese de contratação de operações de financiamento habitacional, a concessão de subvenções econômicas com recursos orçamentários da União fica limitada ao atendimento de famílias em áreas urbanas com renda mensal de até R$ 4.000,00 (quatro mil reais) e de agricultores e trabalhadores rurais em áreas rurais com renda anual de até R$ 48.000,00 (quarenta e oito mil reais).
Como primeiro dispositivo com importante impacto para o Direito de Família, o seu art. 13 preceitua que os contratos e os registros efetivados no âmbito desse programa serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher e, na hipótese de esta ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647, 1.648 e 1.649 do Código Civil.
O art. 1.647 da codificação privada exige a outorga conjugal – uxória, da mulher, e marital, do marido – para os seguintes atos civis: a) alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis, o que engloba a venda e a hipoteca; b) pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens imóveis ou direitos correspondentes; c) prestar fiança ou aval e d) fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação. Nos termos do seu caput, está dispensada a outorga conjugal para esses atos, se o regime de bens entre as partes for o da separação absoluta, entendida essa como apenas a separação convencional de bens, fixada por pacto antenupcial, nos termos do art. 1.687 do Código Civil (“Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real”). Isso porque na separação obrigatória de bens – imposta pela lei, nas hipóteses do art. 1.641 da codificação – não há uma separação absoluta, pois, por força da corriqueira aplicação da súmula 377 do Supremo Tribunal Federal pelas nossas Cortes, comunicam-se alguns bens, havidos durante o casamento e desde que comprovado o esforço comum dos cônjuges (ver: STJ, EREsp. 1.623.858/MG, Rel. Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Segunda Seção, julgado em 23/5/18, DJe 30/5/18).
Seguindo no estudo do tema, o art. 1.648 do CC/02 prevê a possibilidade de suprimento da falta de outorga conjugal pelo juiz, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la. A consequência da falta da outorga conjugal, sem esse suprimento judicial, conforme o art. 1.649, é a nulidade relativa ou anulabilidade do ato correspondente, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação no prazo decadencial de dois anos depois de terminada a sociedade conjugal.
Voltando-se à lei específica, em um primeiro momento observa-se que a aquisição de imóvel pelo citado programa não necessitaria dessa autorização ou vênia conjugal, uma vez que o inciso I do art. 1.647 prevê apenas a alienação, caso da venda, e não a compra do bem. De toda sorte, é possível que o imóvel seja dado em garantia real para os fins de financiamento, o que geraria o enquadramento na parte final do comando, afastada pelo art. 13 da lei 14.118/21.
Ainda sobre esse diploma especial, nos termos do seu § 1º, esse contrato de aquisição será registrado no Cartório de Registro de Imóveis competente, sem a exigência de dados relativos ao cônjuge ou ao companheiro e ao regime de bens. Está ainda previsto no seu § 2º que o disposto nesse comando não se aplica aos contratos de financiamento firmados com recursos do FGTS. Apesar da menção ao companheiro ou convivente, anote-se que a jurisprudência superior somente tem admitido a necessidade de outorga convivencial, com a incidência de todos os comandos da codificação privada ora citados, caso a união estável esteja formalizada e registrada no Cartório de Registro de Imóveis do domicílio das partes. A esse propósito, por todos: “a invalidação da alienação de imóvel comum, realizada sem o consentimento do companheiro, dependerá da publicidade conferida à união estável mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão declaratória da existência união estável no Ofício do Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, ou pela demonstração de má-fé do adquirente” (STJ, REsp 1.424.275/MT, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 4/12/14, DJe 16/12/14).
Na verdade, ainda sobre esse art. 13 da lei de 2021, seguiu-se, em parte, o texto do art. 73-A da Lei Minha Casa, Minha Vida, incluído pela lei 12.693/12, segundo o qual, “excetuados os casos que envolvam recursos do FGTS, os contratos em que o beneficiário final seja mulher chefe de família, no âmbito do PMCMV ou em programas de regularização fundiária de interesse social promovidos pela União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647 a 1.649 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. § 1º O contrato firmado na forma do caput será registrado no registro de imóveis competente, sem a exigência de documentos relativos a eventual cônjuge. § 2º Prejuízos sofridos pelo cônjuge por decorrência do previsto neste artigo serão resolvidos em perdas e danos”. A menção às perdas e danos passou a compor o art. 15 da nova lei, conforme será exposto ainda.
Outro dispositivo a ser destacado, esse gerador de intensos debates, é o art. 14 da lei 14.118/21, segundo o qual, nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuadas as operações de financiamento habitacional firmadas com recursos do FGTS. Todavia, como exceção, estabelece o seu parágrafo único que, na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída.
Reitero que não se tratam propriamente de novidades, pois previsões no mesmo sentido já constavam do art. 35-A da lei 11.977/09, novamente incluídos pela lei 12.693/12 (“Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido no âmbito do PMCMV, na constância do casamento ou da união estável, com subvenções oriundas de recursos do orçamento geral da União, do FAR e do FDS, será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuados os casos que envolvam recursos do FGTS. Parágrafo único. Nos casos em que haja filhos do casal e a guarda seja atribuída exclusivamente ao marido ou companheiro, o título da propriedade do imóvel será registrado em seu nome ou a ele transferido”). O que é curioso perceber é a intensidade do debate que as regras geraram no ano de 2021, algo que não ocorreu da mesma forma no já remoto ano de 2012, na vigência do sistema anterior.
De início, há quem veja nas normas inconstitucionalidade, por favorecer a mulher, violando o art. 5º, inc. I, do Texto Maior. E de fato, no âmbito dos Tribunais Estaduais, a inconstitucionalidade do art. 35-A da lei 11.977/20 foi reconhecida pelos Órgãos Especiais dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, do Mato Grosso do Sul e de São Paulo (TJ/MG, Arguição de Inconstitucionalidade 1.0702.12.054293-2/002, Rel. Des. Wagner Wilson, Órgão Especial, julgamento em 11/3/15, publicação em 15/5/15; TJ/RS, Incidente de Inconstitucionalidade 70082231507, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em sessão realizada em 10/10/19; TJ/MS, Recurso 0809355-66.2015.8.12.0001, Rel. Des. Paschoal Carmello Leandro, Órgão Especial, DJMS 4/9/18, p. 46, e TJ/SP, Arguição de Inconstitucionalidade 0083671-96.2015.8.26.0000, Rel. Des Ferreira Rodrigues, Órgão Especial, j. 9/3/16). Na última Corte Estadual, ementou-se o seguinte:
“Examinando a questão com base no artigo 5º, inciso I e no artigo 226, § 5º, ambos da Constituição Federal; e considerando nessa avaliação, principalmente, a inexistência de situação de desigualdade ou de vulnerabilidade (objetivamente considerados) que pudesse justificar o tratamento diferenciado conferido à mulher em detrimento do homem (ou ao homem em detrimento da mulher), aquela imposição, referente à atribuição da propriedade do bem exclusivamente à mulher (na hipótese do art. 35-A, caput) ou ao homem (na hipótese do parágrafo único), não pode ser compreendida de outra forma, senão como atuação ilegítima, não só do ponto de vista da violação do princípio da isonomia, mas também pela caracterização de discriminação injustificada (em razão do sexo), vedada pelo artigo 3º, inciso IV, da Carta Magna, bem como por ofensa ao princípio da razoabilidade e do direito de propriedade. Inconstitucionalidade manifesta” (TJ/SP, Arguição de Inconstitucionalidade 0083671-96.2015.8.26.0000, Rel. Des Ferreira Rodrigues, Órgão Especial, j. 9/3/16).
Talvez a edição da nova lei e o crescimento do debate sobre o seu art. 14 aumentem tal reconhecimento de inconstitucionalidade no âmbito das nossas Cortes Estaduais e façam com que a questão seja levada ao Supremo Tribunal Federal.
Igualmente com sentido de crítica, há quem aponte de forma negativa o afastamento do regime de bens adotado pelos consortes, desrespeitando o exercício da autonomia privada pelas partes. Em sentido contrário, porém, argumenta-se com a situação de hipossuficiência econômica e de vulnerabilidade das mulheres, a justificar os comandos. Aponta-se, ainda com tom de crítica, a falta de tratamento quanto aos casais homoafetivos, em havendo entidade familiar constituída por eles. Não se pode negar que são argumentos jurídicos que devem ser considerados, inclusive nos novos julgamentos de inconstitucionalidade das duas normas, que devem surgir em breve.
Seguindo nos estudos da lei 14.118/21, lamento também o teor do texto ao relacionar a guarda unilateral – que quebra a regra de prioridade da guarda compartilhada, prevista nos arts. 1.583 e 1.584 do Código Civil – com o domínio sobre o imóvel. A propriedade ganha uma natureza ambulatória, seguindo a guarda sobre os filhos, o que causa estranheza, pelas dificuldades de sua efetivação, sem a necessária e esperada estabilidade relacionada ao domínio.
Por fim, caso essa atribuição da propriedade traga a um dos consortes algum prejuízo, a questão é resolvida com perdas e danos. Esse é o teor do art. 15 da lei 14.118/21, in verbis: “os prejuízos sofridos pelo cônjuge ou pelo companheiro em razão do disposto nos arts. 13 e 14 desta Lei serão resolvidos em perdas e danos”. Aqui, pode-se dizer que há uma novidade parcial no texto, pois a menção às perdas e danos apenas estava no art. 73-A da Lei n. 11.977/2009, no tocante à dispensa da outorga conjugal, como visto. De toda sorte, a imputação de responsabilidade civil e o correspondente pagamento de indenização por perdas e danos decorrem de qualquer situação em que uma parte cause prejuízo a outrem, em virtude de um ilícito praticado, nos termos do que está previsto no art. 927, caput, do Código Civil.
Em verdade, o que me parece é uma necessidade política constante de se criar, em cada governo, um programa habitacional próprio, com uma nomenclatura que agrade a um determinado grupo. E com isso, em havendo modificações ou não no texto, alteram-se as regras burocráticas ou mantêm-se problemas técnicos e inconstitucionalidades nos diplomas. Confusões, dúvidas e incertezas são geradas, afastando a propriedade e o domínio de uma desejada perpetuidade, tão comum aos institutos relacionados ao Direito das Coisas.
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