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O caso Britney Spears e os limites da curatela
Anderson Schreiber
25/11/2021
Dia 1º de julho, a Bessemer Trust, uma empresa que administra mais de US$ 100 bilhões de seus clientes, requereu formalmente seu desligamento da gestão do patrimônio da cantora americana Britney Spears, que vive sob a curatela do pai há 13 anos.[1]
A atitude da empresa é o primeiro efeito mais concreto do bombástico depoimento prestado por Britney a uma corte de Los Angeles no fim de junho, em que afirmou que a curatela vinha sendo exercida de modo “abusivo”. Britney alega que foi forçada a realizar shows contra a sua vontade, que foi submetida ao uso de medicamento não desejado (lítio) e que foi impedida de retirar um dispositivo intra-uterino (DIU) para que não pudesse concretizar sua intenção de ter um novo filho. “Eu só quero minha vida de volta” – concluiu a cantora.[2]
Sobre a curatela de Britney
No direito norte-americano, a curatela (conservatorship) pode abranger tanto a gestão do patrimônio quanto os cuidados com a saúde e a vida pessoal do curatelado. No caso de Britney Spears, seu pai, Jamie Spears, atuava como curador tanto do patrimônio quanto da vida pessoal de sua filha desde 2008, quando a cantora se envolveu em uma série de episódios polêmicos e foi internada sucessivamente em clínicas de reabilitação.
Em 2019, uma curadora profissional, Jodi Montgomery, foi designada para cuidar da saúde e da vida pessoal de Britney, enquanto o pai da cantora e a Bessemer Trust seguiram administrando o seu patrimônio. Jamie Spears alega que, por isso mesmo, todas as restrições suscitadas por Britney em relação a uma possível gravidez e ao uso forçado de medicamentos não são de sua responsabilidade. Jodi Montgomery, por sua vez, afirma que sempre foi uma defensora incansável da cantora, que o pai é a fonte dos seus sofrimentos e que apresentará ao Poder Judiciário um plano para o encerramento da curatela.[3]
Em meio à batalha judicial, ganhou força nas redes sociais o movimento #FreeBritney, em defesa da cantora. Ao mesmo tempo, o rumoroso caso parece ter inaugurado um interessante debate nos Estados Unidos sobre os limites da curatela e as formas de evitar o seu exercício abusivo em diferentes casos concretos. Como, afinal, impedir que o interesse do curador acabe prevalecendo sobre os interesses pessoais e econômicos do curatelado? Como evitar que o patrimônio do curatelado passe a funcionar preponderantemente como fonte de renda para os curadores, criando uma espécie de incentivo odioso a um prolongamento desnecessário da curatela? Como saber qual é o momento de extinguir uma curatela instituída, ao menos em sua origem, para proteger o curatelado?
Curatela no Código Civil Brasileiro
As mesmas questões se colocam entre nós. No Brasil, o Código Civil sujeita à curatela
(a) as pessoas que, por alguma causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade,
(b) os “ébrios habituais”,
(c) os “viciados em tóxico” e
(d) os “pródigos” (art. 1.767).[4]
A própria indicação destas “categorias” genéricas consiste, a rigor, em um erro do legislador. Não é o enquadramento em um rótulo abstrato (carregado, não raro, de conteúdo discriminatório) que autoriza a nomeação de um curador, mas sim o exame necessariamente concreto e individualizado daquele que será submetido à curatela.
É preciso que tenha restado cabalmente demonstrado que a pessoa não tem, por alguma razão temporária ou permanente, o discernimento necessário para exprimir sua vontade. A curatela não é, portanto, uma medida aplicável às pessoas idosas, pela simples razão de sua idade avançada, nem é cabível sua decretação em casos de lapsos breves de memória e outras dificuldades ocasionais que não comprometem a manifestação consciente da vontade. Trata-se de uma medida extrema.
Outro equívoco da legislação brasileira é designar, preferencialmente, como curador o cônjuge ou companheiro e, na falta deste, os pais, e, sucessivamente, os descendentes do curatelado. Somente “na falta das pessoas mencionadas”, o Código Civil cogita da livre escolha do curador pelo juiz (art. 1.775).
Embora nossa jurisprudência não siga esta diretriz de modo tão rígido, há, na prática, uma nítida preferência pela nomeação de parentes e familiares como curadores. Ocorre que, frequentemente, os familiares possuem interesses próprios em relação à preservação do patrimônio do curatelado, do qual, um dia, podem vir a ser herdeiros. Nesses casos, afigura-se mais adequada a nomeação de curadores profissionais, com expertise em gestão patrimonial e subordinados ao dever de prestar contas aos parentes do curatelado, inclusive perante o próprio juízo.
Curatela e administração do patrimônio
Quanto à sua extensão, é preciso destacar que, no direito brasileiro, toda a disciplina da curatela é construída sob a ótica da administração do patrimônio do curatelado, e não sob a perspectiva da proteção dos seus interesses existenciais. Daí por que o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) chega a afirmar que “a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial”, não alcançando “o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto” (art. 85). Admite-se, todavia, que a curatela se estenda, excepcionalmente, sobre decisões que podem ter repercussão existencial, desde que haja um comprovado risco à pessoa do curatelado ou a demonstrada necessidade de preservar a sua própria dignidade (Enunciado n. 637 da VIII Jornada de Direito Civil do CJF).
Limites da curatela
Hoje, há consenso entre os civilistas brasileiros no sentido de que a curatela não pode, quer no campo patrimonial, que no campo existencial, implicar supressão indevida da autonomia do curatelado, devendo a atuação do curador se restringir àqueles aspectos em que a livre manifestação de vontade poderia efetivamente trazer ao curatelado um injustificado prejuízo.
Na mesma direção, o Código de Processo Civil estabelece expressamente que o juiz deve, na sentença que decreta a interdição, levar em consideração “as características pessoais do interdito, observando suas potencialidades, habilidades, vontades e preferências” (CPC, art. 755, II). Com isso, supera-se o velho modelo binário ou dicotômico, em que ou havia curatela e todos os atos do curatelado dependiam do curador, ou não havia curatela e o curatelado podia praticar todo e qualquer ato indistintamente.
A curatela passa a ser vista como um instrumento que deve ser moldado à luz das necessidades específicas de cada curatelado, de modo que um curador pode ter como função apenas a prática de certos atos (e.g., alienação de bens imóveis), enquanto outros podem continuar a ser livremente praticados. Essa modulação ou proporcionalidade da curatela mitiga o risco de restrições excessivas ao curatelado.
A curatela exige, ainda, acompanhamento permanente para que seja prontamente extinta se restaurada a capacidade do curatelado de exprimir sua vontade. Nessa direção, o Estatuto da Pessoa com Deficiência afirma que a curatela é uma “medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso”, que deve “durar o menor tempo possível” (art. 84, § 3º). A reavaliação continuada da situação do curatelado é importante para evitar o prolongamento abusivo da curatela, devendo, à falta de outro parâmetro, se aplicar, no mínimo, o prazo de dois anos que a lei institui para a tutela de menores (Código Civil, art. 1.765).
Publicação icônica do meio artístico musical, a revista Rolling Stone escreveu sobre Britney Spears: “uma das vocalistas mais polêmicas (e bem sucedidas) do século XXI”.[5] Seu legado talvez acabe por transcender o campo da arte, produzindo um precedente judicial que ajudará, de um modo ou de outro, a trazer visibilidade a uma discussão quase sempre invisível: os limites da curatela e as medidas necessárias para evitar seu exercício abusivo.
[1] Notícia do The New York Times, 1.7.2021.
[2] Reportagem de Mark Savage, Britney Spears: everything she said in Court, in BBC News, 24.6.2021.
[3] Revista Rolling Stone, notícia publicada em 30.6.2021.
[4] Há, ainda, casos de curatela especial, como aquela aplicada ao nascituro (art. 1.779) e a curatela do ausente (art. 22).
[5] Rolling Stone, Britney Spears: biography, 2008.