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A teoria do adimplemento substancial é aplicável nos crimes tributários?

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A teoria do adimplemento substancial é aplicável nos crimes tributários?

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REVISTA FORENSE 432

Revista Forense

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11/01/2021

Revista Forense – Volume 432 – ANO 116
JUNHO – DEZEMBRO DE 2020
Semestral
ISSN 0102-8413

FUNDADA EM 1904
PUBLICAÇÃO NACIONAL DE DOUTRINA, JURISPRUDÊNCIA E LEGISLAÇÃO

FUNDADORES
Mendes Pimentel
Estevão Pinto
Edmundo Lins

DIRETORES
José Manoel de Arruda Alvim Netto – Livre-Docente e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Eduardo Arruda Alvim – Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/FADISP

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DOUTRINA NACIONAL

A) DIREITO PROCESSUAL CIVIL

B) DIREITO PENAL

C) DIREITO CONSTITUCIONAL

D) DIREITO ADMINISTRATIVO

E) DIREITO TRIBUTÁRIO

F) CADERNO DE DIREITO DESPORTIVO

Resumo: O estudo examina, ineditamente, suposta aplicabilidade da teoria do adimplemento substancial nos crimes tributários. Para isso, analisa as obrigações no direito civil e tributário, os crimes tributários, a extinção da punibilidade e menciona ainda a repercussão no direito financeiro. A investigação baseia-se em normas, doutrina e jurisprudência. Ao final, demonstra a impraticabilidade do adimplemento substancial nos crimes tributários de forma genérica, sem previsão legal. Não obstante, define duas hipóteses para sua aplicação.

Palavras-chave: Direito Civil; Direito Tributário; Crimes Tributários; Adimplemento Substancial; Extinção da punibilidade.

Abstract: The study examines the supposed applicability of the theory of substantial performance in tax crimes. For that, it analyzes the obligations in the civil and tax law, the tax crimes, the extinction of the punishment and also mentions the repercussion in the financial law. In the end, it demonstrates the impracticability of the substantial performance in tax crimes in general, without legal provision. Nevertheless, it defines two hypotheses for its application.

Keywords: Civil Law; Tax Law; Tax Crimes; Substantial Performance; Extinction of Punishment.

Sumário: Introdução – 1. Obrigações no Direito Civil – 1.1. Cumprimento das obrigações – Adimplemento – 2. Obrigações no Direito Tributário – 2.1. Obrigação tributária – 2.2. Tributo – 2.3. Crédito tributário – 2.4. Extinção do crédito tributário – Pagamento e remissão – 2.5. Exclusão do crédito tributário – Isenção – 2.6. Crimes tributários – 2.7. Extinção da punibilidade nos crimes tributários – 3. Adimplemento substancial e crimes tributários – 3.1. Necessidade do pagamento integral do tributo para extinguir a punibilidade – 3.2. Inaplicabilidade automática da teoria do adimplemento substancial na extinção da punibilidade nos crimes tributários – 3.3. Possibilidade de o legislador conceder isenção ou remissão parcial – Adimplemento substancial tributário – Conclusão – Referências.

INTRODUÇÃO

Com aplicação no direito privado, a teoria defende que se considere mantido o vínculo jurídico se houver satisfação de parte significativa da prestação – sua quase integralidade –, em respeito à boa-fé objetiva, à vedação ao abuso de direito e ao enriquecimento sem causa.

Ocorre o adimplemento substancial em face da satisfação do interesse do credor, a despeito do descumprimento mínimo da prestação acordada inicialmente pelas partes da relação jurídica. O devedor poderá ser considerado adimplente se cumprir parte significativa da obrigação, a sua quase totalidade. Precipuamente, a obrigação reputar-se-á cumprida e satisfeita, a despeito de sua não satisfação integral. Isso porque o interesse principal do credor foi atingido.

Perante o descumprimento mínimo do devedor, restará ao credor a possibilidade de pleitear a prestação remanescente, de forma a recompor o não atendimento total da obrigação avençada. Consequentemente, o devedor não se sujeitará a sanções decorrentes de completo inadimplemento, a exemplo da resolução do contrato pelo incumprimento mínimo.

A questão a ser discutida é se a teoria do adimplemento substancial – instituto de direito civil –, aplica-se às obrigações do direito tributário – ramo do direito público, referente ao dever de pagar tributos como forma extintiva de punibilidade de crimes tributários. Em outras palavras, indaga-se aqui se a referida teoria é aplicável aos crimes tributários.

A lacuna interpretativa que se faz é: a pessoa que paga a quase totalidade do tributo fraudado ou sonegado, 90% do valor devido por exemplo, pode alegar o cumprimento da obrigação tributária – com fulcro no adimplemento substancial – e pleitear a extinção das sanções penais correspondentes?

Para atingir tal desiderato, o estudo utiliza-se da doutrina, legislação e jurisprudência. Ademais, utiliza-se de três eixos de pesquisa: i) as obrigações no direito civil, analisando-se diversos elementos e o adimplemento substancial; ii) as obrigações no direito tributário, perscrutando características gerais dos tributos; bem como os crimes tributários, sua respectiva extinção e, por fim, iii) a infactibilidade do adimplemento substancial nos crimes tributários – também na perspectiva do direito financeiro – realizada de maneira abstrata, sem respaldo em lei.

  1. OBRIGAÇÕES NO DIREITO CIVIL

Conforme lição de Pothier, é da essência das obrigações três características básicas: i) a existência de uma causa ensejadora do nascimento da obrigação; ii) pessoas que contratam entre si; iii) alguma coisa estabelecida como objeto da contratação. “As causas das obrigações são os contratos, os quase contratos, os delitos, os quase delitos, algumas vezes a lei ou a simples equidade” (POTHIER, 1947, p. 11). No âmbito do direito civil, a obrigação pode ser conceituada como instituto que significa a “relação jurídica transitória, estabelecendo vínculos jurídicos entre duas diferentes partes (denominadas credor e devedor, respectivamente), cujo objeto é uma prestação pessoal, positiva ou negativa, garantido o cumprimento, sob pena de coerção judicial” (CHAVES; ROSENVALD, 2013, p. 35). Do conceito exposto, chama a atenção o primeiro termo utilizado – “relação jurídica”. No magistério de Orlando Gomes, em um primeiro momento, a relação jurídica “é o vínculo entre dois ou mais sujeitos de direito que obriga um deles, ou os dois, a ter certo comportamento. É, também, o poder direto de uma pessoa sobre determinada coisa”. Em um segundo momento, “é o quadro no qual se reúnem todos os efeitos atribuídos por lei a esse vínculo, ou a esse poder” (GOMES, 2008, p. 86).

Por conseguinte, a relação jurídica é o vínculo de natureza jurídica entre sujeitos do qual emana efeitos cogentes, expressando poder. O vínculo é a união, a ligação, o imbricamento. Já os efeitos são a consequência dessa relação entre as partes. Assim, a relação jurídica obriga os sujeitos, jungindo-os ao estabelecido. Outro elemento constante da obrigação é o sujeito da relação jurídica. Sujeito é a pessoa obrigada, é o ser que assume a posição de credor ou devedor na respectiva relação obrigacional. Na relação obrigacional, o titular do direito pessoal é o credor, ao passo que o sujeito passivo é o devedor, ligado juridicamente à obrigação entabulada (PLANIOL, 1949, p. 1). Vale dizer, é quem tem o direito a receber (credor) e, de outra banda, quem deve prestar (devedor). O último elemento que compõe a obrigação é a prestação, isto é, o objeto a ser entregue em face da existência da relação jurídica entre as partes. O objeto prestado pode ser positivo (dar ou fazer alguma coisa) ou negativo (não fazer), sendo decorrente da conduta humana. Assim, percebe-se que a obrigação é a relação jurídica entre os sujeitos que têm por objeto a prestação. Esses elementos estão correlacionados entre si, de modo a produzir os efeitos que lhes são inerentes.

1.1. Cumprimento das obrigações – adimplemento

Quando uma obrigação é criada, a intenção inicial é que ela seja cumprida, que seja satisfeita. Espera-se que ocorra no mundo dos fatos aquilo que foi projetado juridicamente pela lei ou pela vontade das partes. Isso ocorre porque a obrigação possui uma finalidade, um interesse subjacente. E quando não ocorre a satisfação desse interesse juridicamente tutelado, lesiona-se o direito do credor, ocorrendo o inadimplemento da obrigação.

Por sua vez, o vocábulo “adimplemento” consiste no cumprimento, o atendimento, à satisfação da obrigação posta. O adimplemento se dá quando o devedor entrega ao credor a prestação decorrente da relação jurídica, ocorrendo, assim, o cumprimento da obrigação. Portanto, a obrigação é reputada adimplida quando o devedor realiza a obrigação a qual se vinculara, cumprindo o previamente estabelecido. De acordo com Enneccerus, o cumprimento alude ao solutio, que “significava, em sua origem, a dissolução pelo devedor do vínculo obrigatório, entretanto, mais tarde foi limitada, em sentido estrito, ao cumprimento”. O cumprimento da obrigação resulta na extinção da prestação devida (ENNECCERUS; KIPP; WOLFF, 1944, p. 298-299).

Com efeito, o cumprimento da obrigação enseja a extinção do vínculo jurídico entre o devedor e o credor, proporcionando o fim da relação obrigacional respectiva. Em razão disso, afastam-se as consequências do descumprimento, como o pedido de resolução do contrato, as perdas e danos, os juros, a atualização monetária e os honorários advocatícios, conforme estabelecido no art. 389 do Código Civil.

Outrossim, o cumprimento da obrigação é elemento fundamental não só no mundo jurídico, como também nas relações sociais. O inadimplemento gera consequências prejudiciais ao capital investido, ao tráfego de bens e serviços, além de ocasionar insegurança jurídica e econômica. Isto posto, sobressai em importância o cumprimento das obrigações decorrentes das relações jurídicas, de modo que as projeções produzam seus efeitos esperados, protegendo-se a confiança legítima das partes.

1.2. Adimplemento substancial

Adimplemento substancial é tema que não é tratado com profundidade pelos teóricos do direito civil de 1916 nem pelo código atual de 2002. Na verdade, a teoria do adimplemento substancial é tratada pela doutrina e pela jurisprudência, não sendo prevista expressamente no Código Civil, sendo fruto de interpretação teleológica.

Isso ocorre porque, para o direito civil tradicional, é a entrega da prestação estabelecida que caracteriza o adimplemento da obrigação. No caso das obrigações de valor, é o pagamento que extingue a dívida, nos termos do art. 304 do Código Civil. Na literalidade do art. 313 do Código Civil, “o credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida”. Nesse sentido, é a entrega da prestação que extingue a respectiva obrigação. Se houver pagamento, extingue-se a obrigação. Não havendo o pagamento do valor estabelecido, reputar-se-á o devedor como inadimplente, sujeitando-se às consequências dela decorrentes nos termos do art. 389 do Código Civil: “não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”.

Diante disso, surge a temática do adimplemento substancial. A questão posta em exame é: o que significa adimplemento substancial? Esse adimplemento substancial é considerado pagamento e, consequentemente, meio hábil para extinguir a obrigação, inclusive a penal tributária? Essas perguntas serão respondidas a seguir.

1.2.1. Origem e conceito do adimplemento substancial

Para entender a finalidade e a extensão de um instituto jurídico, afigura-se útil mencionar, ainda que minimamente, o fato ensejador da sua origem, mormente quando não há amparo legal expresso. Esclarecedora é a lição de Luiz Amaral:

A teoria do adimplemento substancial teve origem no século XVIII na Inglaterra. Sua construção se deu em razão da atividade das Cortes inglesas a partir da aplicação do sistema da equity. Por meio desta, possível na common law – embora dela distinta –, buscou-se amenizar o rigor contratual decorrente do caráter absoluto dos contratos, a fim de adequá-los a fatos que ocorriam na dinâmica contratual e que produziam resultados tidos por injustos pela comunidade e pelas Cortes judiciais inglesas. Esse foi o berço da denominada doutrina da substantial performance conhecida no Brasil como teoria do adimplemento substancial. (AMARAL, 2019, p. 86-87)

Anelise Becker assevera, ao citar o Prof. Clóvis do Couto e Silva, que o conceito de adimplemento substancial “constitui um adimplemento tão próximo ao resultado final, que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo tão somente o pedido de indenização e/ou de adimplemento”, haja vista que vez que a resolução viria a ferir o princípio da boa-fé (BECKER, 1993, p. 60-61). O adimplemento substancial possui a característica da quase inteireza prestacional, por isso é afastado o direito de resolver o contrato. Se em razão do inadimplemento mínimo fosse albergado ao credor o direito de resolver todo o contrato e suas consequências, configurar-se-ia ato desproporcional, além de promover o enriquecimento sem causa do credor.

Considerando que o elemento essencial do adimplemento substancial é a quase totalidade da prestação realizada pelo devedor, impende mencionar quais os critérios utilizados para identificar se a prestação foi ou não entregue em sua quase inteireza. Com esteio em Anelise Becker, há que se perquirir se o devedor incidiu em “inadimplemento fundamental” ou “adimplemento substancial”:

Quando o inadimplemento é fundamental, o essencial da prestação não foi cumprido, pelo que, não foram atendidos os interesses do credor, facultando-se-lhe a resolução do negócio. […] De outro lado, quando o adimplemento é substancial, foi cumprido aquilo que era essencial na relação obrigacional e, por isso, satisfeitos os interesses do credor. (BECKER, 1993, p. 61)

Nesse caso, o credor poderá pleitear a diferença que não foi satisfeita integralmente, a despeito de a avença manter-se indene. Percebe-se que a satisfação ou não do interesse do credor é que determinará a caracterização do “adimplemento substancial” ou “inadimplemento fundamental” da obrigação. Infelizmente, não há critério objetivo previamente estabelecido para determinar o adimplemento substancial do contrato. Em razão disso, tribunais ingleses e norte-americanos adotam três condições para identificar o adimplemento substancial:

A primeira delas é a proximidade entre o efetivamente realizado e aquilo que estava previsto no contrato. A segunda, é que a prestação imperfeita satisfaça os interesses do credor. A terceira (questionável se considerar-se o adimplemento substancial apenas sob uma ótica objetivista) refere-se ao esforço, diligência do devedor em adimplir integralmente. (BECKER, 1993, 63)

Desse modo, o adimplemento substancial possui as características da proximidade com a prestação avençada; a satisfação do interesse do credor, malgrado o não cumprimento total da obrigação e a tentativa de adimplemento pelo devedor. Esses elementos que identificam o adimplemento substancial sobressaem, visto que, ante a ausência normativa expressa sobre o referido instituto, a elucidação doutrinária clarifica e identifica requisitos mínimos para sua aplicação no meio jurídico.

1.2.2. Fundamento principiológico do adimplemento substancial no Código Civil de 2002

Como dito alhures, o adimplemento substancial é fruto de construção doutrinária e jurisprudencial. Sua utilização decorre da aplicação de princípios estatuídos no diploma civilista de 2002. O Código Civil adota princípios (CHAVES; ROSENVALD, 2013, p. 21) que irradiam sobre os negócios jurídicos, a exemplo da socialidade, eticidade e a operabilidade. Como corolários desses novos preceitos no Código Civil, exsurge a aplicação do princípio da boa-fé objetiva – derivada da eticidade, e a função social do contrato – advinda da socialidade (AMARAL, 2019, p. 100). O art. 421 do Código Civil dispõe: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”. De igual modo, o art. 422 consigna: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Deflui do diploma civilista princípios que permeiam a relação contratual entre as partes, estabelecendo a exigência social de conduta proba, correta, honesta. Com esteio no art. 187 do Código Civil, os contratantes não podem exceder o exercício do direito contratual, sendo vedado o abuso de direito: “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Portanto, não pode ser pleiteada a resolução do contrato quando a outra parte tiver cumprido substancialmente com sua obrigação e lhe impor sanções severas, como se houvesse inadimplido totalmente na relação jurídica. Chancelar tal conduta configurar-se-ia enriquecimento sem causa, também vedado pelo código civil brasileiro: “Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”. Assim, necessário impor regras que vedem o enriquecimento ilícito de uma parte em face do prejuízo imposto à outra.

1.2.3. Consequências da adoção da teoria do adimplemento substancial

Indagação oportuna surge acerca dos efeitos da aplicação do princípio da substancial performance. Consoante estudo de Anelise Becker, os efeitos jurídicos decorrentes da aplicação da teoria do adimplemento substancial são os seguintes:

Manutenção da relação contratual. No caso de adimplemento substancial, há um adimplemento bom o suficiente para satisfazer o interesse do credor, pelo que não há comprometimento da comutatividade. Haverá, isto sim, com a resolução. Eventuais diferenças serão remediadas através de indenização. […] Cabe perdas e danos. A parte inadimplente nunca pode lucrar por sua inadimplência e à outra nunca pode ser permitido perder por isso. Esse ressarcimento pode-se dar através de compensação, se a contraprestação divisível ainda não foi realizada ou, se já o foi ou for indivisível, mediante o pagamento de quantia suficiente para a reequiparação. […] Pedido de adimplemento. Cabe ao credor, independentemente do ressarcimento dos prejuízos sofridos em razão do cumprimento inexato, o pedido de adimplemento da parte faltante, se tal for possível. (BECKER, 1993, p. 65-66)

Posto isso, são três as consequências decorrentes da aplicação da teoria do adimplemento no direito civil: a continuidade da relação contratual; a facultatividade de o credor pleitear perdas e danos e, por fim, a possibilidade de suscitar o cumprimento da parcela faltante da obrigação. Tais consequências expressam significativa relevância no âmbito contratual, uma vez que permite a manutenção do vínculo contratual, malgrado o descumprimento de parte mínima da obrigação avençada pelo devedor.

Agora, resta analisar eventual aplicabilidade da teoria do adimplemento substancial no âmbito das obrigações do direito tributário, mormente nos crimes tributários. Para tanto, analisar-se-á institutos basilares do direito tributário.

  1. OBRIGAÇÕES NO DIREITO TRIBUTÁRIO

2.1. Obrigação tributária

No Direito, os termos jurídicos são utilizados com sentido próprio, configurando sentido específico. Antes de conceituar “obrigação tributária”, necessário mencionar primeiramente a relação jurídica tributária. De acordo com Leandro Paulsen, “a relação tributária é uma relação obrigacional cujo objeto é uma prestação pecuniária. Num dos polos, está o devedor; no outro, o credor” (PAULSEN, 2014, p. 998). Esse conceito trata da razão de ser da obrigação tributária, que é o dever de pagar tributo, consistindo na obrigação principal (art. 113, § 1º, CTN). Não obstante, também há a obrigação acessória, que se refere ao dever de prestações positivas ou negativas, de interesse da arrecadação ou fiscalização dos tributos (art. 113, § 2º, CTN).

Com efeito, a “obrigação tributária” é o vínculo jurídico entre o sujeito passivo (devedor) e o sujeito ativo (pessoa jurídica de direito público), cuja prestação pode ser principal – pagamento de dinheiro – ou acessória – prestação positiva ou negativa. Em outras palavras, o objeto prestacional na obrigação tributária poder ser a entrega de pecúnia (dinheiro) ou prestações positivas ou negativas (fazer/não fazer).

De fato, a obrigação tributária assemelha-se às obrigações oriundas do direito civil, porquanto ambas possuem o trinômio: sujeitos, relação jurídica e prestação. Sem embargo, possuem diferenças. Isso porque no direito civil as partes possuem ampla liberdade de se autovincularem à obrigação, notadamente a liberdade contratual, inclusive no estabelecimento de contratos atípicos (arts. 421 e 425, CC). O direito civil é caracterizado pelo princípio da autonomia da vontade, perfectibilizando-se o contrato com o consentimento das partes, de modo que “o contrato, por sua natureza, exala liberdade” (PLANIOL; RIPERT, 1952, p. 19).

Noutro giro, a obrigação tributária decorre de lei imposta pelo Estado, não havendo margem criacionista pelos próprios indivíduos. O princípio da legalidade tributária é tão essencial que possui assento na Constituição Federal (art. 150, I) e no Código Tributário Nacional (art. 9º, I). É uma garantia do cidadão frente ao poder estatal, de modo que se mostra inafastável a edição de lei na criação ou majoração de tributo, definindo a hipótese de incidência e a obrigação correspondente – aspecto material, espacial, temporal, pessoal e quantitativo (PAULSEN, 2018, p. 201). Isso quer dizer, não decorre da vontade estrita das partes a criação de tributo, que se dá mediante a lei, porquanto decorre do poder ius imperium do Estado. Outra diferença é quanto aos sujeitos, havendo ampliação subjetiva passiva pelo próprio Estado na forma da lei, isto é, uma das partes ostenta superioridade em relação à outra, a ponto de incluir terceiros na relação obrigacional independentemente da aceitação do sujeito passivo. Tal fenômeno ocorre quando a lei obriga ao cumprimento da obrigação tributária tanto o contribuinte como o responsável tributário, nos termos do art. 121 do CTN:

Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária. Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se: I – contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador; II – responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.

Vale dizer, na relação tributária, o Estado alarga os sujeitos responsáveis pelo cumprimento da prestação de pagar tributo. Diferentemente do direito civil, em que os sujeitos da relação obrigacional é quem pré-determinam a abrangência subjetiva, as pessoas que ficarão submetidas a satisfazer o objeto da avença constante na relação jurídica. Ademais, a obrigação tributária diverge no que se refere à natureza da prestação a ser satisfeita, haja vista que no direito civil, os objetos, as coisas e até mesmo a omissão do agente pode ser a prestação a ser cumprida na relação jurídica. Entrementes, na obrigação tributária, a prestação principal consiste no pagamento do tributo, que se dá por meio do dinheiro. Sendo assim, a obrigação principal aqui é muito restrita se comparada às incomensuráveis hipóteses que podem ser objeto de tratativas no direito civil. Desse modo, não se confundem as obrigações civis das obrigações tributárias.

2.2. Tributo

Na relação jurídica tributária, o tributo é o principal objeto a ser prestado pelo devedor na obrigação com o ente federado. Em outras palavras, no vínculo obrigacional passivo entre pessoa e Estado, o pagamento do tributo é a forma basilar de cumprimento prestacional. Para a identificação correta do instituto, mostra-se salutar a análise de seu conceito. A doutrina majoritária conceitua “tributo” como:

Prestações em dinheiro exigidas compulsoriamente, pelos entes políticos, de quem revela capacidade contributiva ou que se relacione direta ou indiretamente a atividade estatal específica, com vistas à obtenção de recursos para o financiamento geral do Estado ou para o financiamento de atividade ou fins realizados e promovidos pelo Estado ou por terceiros no interesse público. (PAULSEN, 2014, p. 735)

Com a tributação, estabelece-se um “novo fato no conjunto dos fenômenos econômicos de uma comunidade”, transferindo-se dinheiro das mãos de particulares para a economia pública (MORA, 1952, p. 125). Atualmente, adota-se a classificação quinquipartida das espécies tributárias, porquanto são cinco as espécies tributárias estabelecidas pela Constituição Federal de 1988, quais sejam: imposto, taxa, contribuição de melhoria, empréstimo compulsório e as contribuições especiais (PAULSEN, 2018, p. 52). O conceito legal de tributo é insculpido no art. 3º do Código Tributário Nacional: “tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.

Da definição legislativa extraem-se consideração importantes. O primeiro é que “tributo é prestação pecuniária compulsória”, ou seja, é uma prestação de pagamento obrigatória. Não consiste em uma omissão, ou obrigação de fazer ou até mesmo em entregar coisa imóvel por exemplo. Ademais, essa obrigação de pagamento é obrigatória, impositiva. Não há facultatividade em seu não cumprimento, sendo que o pagamento deve ser feito em dinheiro, não podendo o cumprimento da prestação ocorrer mediante prestação de serviços ou outra forma diversa, exemplificadamente.

Outra intelecção deveras importante é que tributo não é sanção de ato ilícito, não significando ato punitivo estatal, mas sim decorre da necessidade de as pessoas contribuírem com dinheiro para a consecução das inúmeras atividades de incumbência do Estado. Afora isso, o tributo somente pode ser exigido por lei. Lei aqui em sentido estrito, literal, ou seja, sujeita-se ao princípio da reserva de lei ou da legalidade estrita (SILVA, 1994, p. 602). Dispositivo normativo diverso de lei não pode instituir tributos, a exemplo de portarias, resoluções ou convenções entre partes. Por fim, a cobrança de tributo é atividade a qual a administração tributária é obrigada a realizar, não tendo os seus agentes discricionariedade na cobrança ou não do tributo, mas devem cumprir com seu dever legal como servidor público e atuar de ofício.

2.3. Crédito tributário

O sintagma crédito tributário significa o “direito subjetivo de que é portador o sujeito ativo de uma obrigação tributária e que lhe permite exigir o objeto prestacional, representando por uma importância em dinheiro” (PAULSEN, 2014, p. 139). Com efeito, crédito tributário é o direito de a pessoa jurídica de direito público exigir o pagamento do tributo ante a existência da relação obrigacional tributária. O art. 139 do CTN dispõe: “o crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta”. Registre-se que o crédito tributário é constituído pelo lançamento, sendo este o procedimento administrativo que verifica a existência do fato gerador, a matéria tributária, o montante devido, o sujeito passivo e, se for o caso, propõe a aplicação de penalidade, na literalidade do art. 142 do CTN.

Destarte, crédito tributário não se confunde com obrigação tributária (PAULSEN, 2018, p. 241). Ora, o crédito tributário se origina da obrigação tributária. A obrigação tributária é termo mais amplo, consistindo em relação jurídica entre o sujeito passivo e ativo, havendo a necessidade de prestação, sendo este último o objeto da relação obrigacional. Já o crédito tributário é produto dessa vinculação obrigacional, havendo relação de consectariedade.

Assim, se for extinta a obrigação tributária, consequentemente extinguir-se-á o crédito tributário. Não obstante, a extinção do crédito tributário não atinge a obrigação tributária, porquanto esta possui existência autônoma. O art. 140 do CTN é expresso ao determinar que “as circunstâncias que modificam o crédito tributário, sua extensão ou seus efeitos, ou as garantias ou os privilégios a ele atribuídos, ou que excluem sua exigibilidade não afetam a obrigação tributária que lhe deu origem”. Diante do exposto, verifica-se a autonomia entre a obrigação tributária e o crédito tributário, não se confundindo os institutos.

2.4. Extinção do crédito tributário – pagamento e remissão

A extinção do crédito tributário consiste no aniquilamento do direito de exigir o pagamento de tributo. O pagamento do crédito tributário consiste na entrega, pelo sujeito passivo, de soma em dinheiro ao sujeito ativo, decorrente do crédito tributário. Conforme o art. 156, I, do CTN, o pagamento é a primeira forma de extinção do crédito tributário. Impende salientar que é necessário o pagamento integral do crédito tributário, sob pena de incidir juros de mora, penalidades cabíveis e medidas de garantia, nos termos do art. 161, caput, CTN. Somente o pagamento integral possui o condão de extinguir o crédito tributário e afastar as consequências nefastas do inadimplemento na seara tributária.

Noutro giro, meio hábil também para extinguir o crédito tributário é a remissão, que consiste no perdão do tributo (PAULSEN, 2014, p. 1304). Com o instituto da remissão tributária, o sujeito passivo fica livre do pagamento do tributo devidamente exigível. Tal medida decorre de opção do legislador, atento aos diversos interesses políticos e sociais que o circundam. “Dentre as causas de extinção do crédito tributário, a remissão é bastante rara. Poucas são as leis que a estabelecem. Recentemente, porém, a Lei nº 13.254/2016, que é conhecida como Lei da Repatriação, permitiu a regularização de ativos mantidos no exterior” (PAULSEN, 2018, p. 265).

Assente-se que o instituto da remissão tributária depende de edição de lei autorizativa que conceda o referido benefício, podendo o perdão ser parcial ou total do tributo devido. Ademais, a remissão pode ter várias causas ensejadoras, nos termos do art. 172, do CTN:

Art. 172. A lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário, atendendo: I – à situação econômica do sujeito passivo; II – ao erro ou ignorância excusáveis do sujeito passivo, quanto a matéria de fato; III – à diminuta importância do crédito tributário; IV – a considerações de equidade, em relação com as características pessoais ou materiais do caso; V – a condições peculiares a determinada região do território da entidade tributante.

Dessa forma, a critério do legislador e mediante lei em sentido estrito, pode ser criada remissão parcial ou total de tributos, inclusive na seara dos crimes tributários.

2.5. Exclusão do crédito tributário – isenção

A doutrina diverge quanto ao conceito de isenção tributária. Para uns, isenção configura “dispensa legal do pagamento do tributo”. Para outros, consiste em “hipótese de não incidência, legalmente qualificada” (CARRAZA, 2012, p. 980-982). A despeito da divergência conceitual, o importante é que, malgrado a obrigação tributária, com a isenção o respectivo crédito não será exigido; logo, dispensa-se o cumprimento da obrigação (PAULSEN, 2014, p. 1334). O art. 175 do CTN estabelece que a isenção tributária é modalidade de exclusão do crédito tributário, sendo que, a “exclusão do crédito tributário não dispensa o cumprimento das obrigações acessórias, dependentes da obrigação principal cujo crédito seja excluído”.

Impende salientar que a criação válida de isenção depende de lei, nos termos do art. 176, caput, do CTN: “A isenção, ainda quando prevista em contrato, é sempre decorrente de lei que especifique as condições e requisitos exigidos para a sua concessão, os tributos a que se aplica e, sendo caso, o prazo de sua duração”.

Em que pese a literalidade do art. 176 do CTN ao exigir “lei” como requisito para a concessão de isenção, doutrina especializada entende outras espécies normativas como autorizadoras da isenção. Nessa senda, Roque Carraza preceitua que as isenções tributárias podem ser concedidas mediante lei ordinária, lei complementar, tratado internacional e por decreto legislativo estadual ou distrital, quando se tratar de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação) (CARRAZA, 2012, p. 993).

De fato, a isenção tributária não pode ser concedida aleatoriamente, sem respaldo legal em sentido estrito. Disso resulta a impossibilidade de concessão de isenção baseada unicamente em contrato entre as partes, ato administrativo, portaria ou outro veículo que não seja ato normativo equiparável à lei. Ademais, a lei instituidora da isenção tributária pode estabelecer critérios e requisitos para a concessão do benefício, havendo ampla margem ao legislador para instituir as hipóteses que serão contempladas pelo ente tributante.

Consoante o tributarista Roque Carraza, as isenções podem ser “transitórias ou permanentes, estas e aquelas concedidas de modo condicional ou incondicional”. (CARRAZA, 2012, p. 1007-1009). A consequência é que as isenções transitórias possuem prazo certo de vigência, enquanto as isenções permanentes não possuem essa prefixação de prazo, duram por prazo indeterminado. As isenções condicionais são aquelas que o legislador estabelece requisitos para concessão, ao passo que as isenções incondicionais são concedidas pura e simplesmente, sem exigência de contrapartida. Essa gama de opções é salutar, porquanto permite atender as peculiaridades de cada ente federativo, estimular certas atividades e refratar outras, atingindo, assim, aos diversos interesses da sociedade.

2.6. Crimes tributários

Como visto anteriormente, o Estado, mediante relação jurídica obrigacional, cria o tributo, exigindo-se o pagamento para extinguir a referida obrigação. Por vezes, o Estado cria, mediante lei, hipóteses que afastam a obrigatoriedade de adimplemento, a exemplo da remissão e da isenção. Como forma dissuasória do descumprimento da lei tributária mediante fraude, o Estado estabelece tipos penais, criminalizando certas condutas. Tal aspecto recai sobre o direito penal tributário.

Conceitualmente, direito penal tributário é o “conjunto de normas de natureza penal que sancionam práticas relacionadas à violação de natureza tributária, que não deve ser confundido com o direito tributário penal, cujo objeto são as sanções de ordem administrativo-tributária” (BALTAZAR, 2014, p. 817). “Os tipos penais tributários configuram, normalmente, crimes materiais ou de resultado, pressupondo a supressão ou redução de tributo devido. Mas também há crimes formais, que prescindem de qualquer resultado material para a sua consumação” (PAULSEN, 2018, p. 330).

Assim, crimes tributários são parte específica do direito penal com preponderância do aspecto tributário, porquanto o objeto da tutela penal é o tributo, havendo incidência de normas específicas, a exemplo da Lei 8.137/90 e Lei 10.684/2003. Conforme lição de Paulo Baltazar, “o bem jurídico é a integridade do erário, a arrecadação ou a ordem tributária, entendida como o interesse do Estado na arrecadação dos tributos, para a consecução de seus fins. Cuida-se de bem macrossocial, coletivo” (BALTAZAR, 2014, p. 819).

Assente-se a previsão de crimes tributários no Código Penal, não havendo necessariamente a exigência de o tipo estar esculpido somente em lei específica de caráter penal tributário, a exemplo dos arts. 168-A e 337-A do código punitivo. Os crimes tributários mais comuns são: apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do Código Penal); sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A do Código Penal) e sonegação de tributos (arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990). Imperioso registrar que nos crimes tributários em geral, o mero inadimplemento da obrigação tributária por si só não configura crime:

Desde logo, é importante deixar claro que a conduta de deixar de pagar tributo, por si só, não constitui crime. Assim, se o contribuinte declara todos os fatos geradores à repartição fazendária, de acordo com a periodicidade exigida em lei, cumpre todas as obrigações tributária acessórias e tem escrita contábil regular, mas não paga o tributo, não há crime algum, mas mero inadimplemento (STJ, AgRg no REsp 1.158.834, Rel. Min. Maria Thereza, 6ª T. u., 19.2.2013; TRF4, AC 200771100020007, Rel. Márcio Rocha, 7ª T., u. 31.5.2011) – (BALTAZAR, 2014, p. 818)

Em outras palavras, comumente nos crimes tributários, o não pagamento simples e puro do tributo não caracteriza conduta criminosa a ser sancionada com sanção criminal, sendo censurada a sonegação fiscal, consoante jurisprudência do STJ:

  1. A conduta de inadimplir o crédito tributário, de per si, pode não constituir crime. Caso o sujeito passivo declare todos os fatos geradores à Administração Tributária, conforme periodicidade exigida em lei, cumpra as obrigações tributárias acessórias e mantenha a escrituração contábil regular, não há falar em sonegação fiscal (Lei nº 8.137/1990, art. 1º), mas em mero inadimplemento, passível de execução fiscal. Os crimes contra a ordem tributária, exceto o de apropriação indébita tributária e previdenciária, pressupõem, além do inadimplemento, a ocorrência de alguma forma de fraude, que poderá ser consubstanciada em omissão de declaração, falsificação material ou ideológica, a utilização de documentos material ou ideologicamente falsos, simulação, entre outros meios. 3. Hipótese em que a denúncia foi instruída com elementos de informação capazes de provar a materialidade dos crimes tributários em questão, tendo apontado inícios suficientes de autoria ao réu, ora recorrente. A Representação Fiscal para fins Penais aponta a materialidade de sonegação fiscal, e não mero inadimplemento. (STJ, RHC 86.565/SP, 2019).

Assim, a reprovação da norma penal se dá quando o não pagamento deriva de ato fraudatório pelo sujeito passivo. Elemento comum nos crimes tributários é a ausência de pagamento, total ou parcial, do tributo devido mediante fraude, omissão, falsidade ou outro artifício ardiloso, nos termos do voto do Min. Relator Ricardo Lewandowski:

Dessa forma, as condutas tipificadas na Lei 8.137/1991 não se referem simplesmente ao não pagamento de tributos, mas aos atos praticados pelo contribuinte com o fim de sonegar o tributo devido, consubstanciados em fraude, omissão, prestação de informações falsas às autoridades fazendárias e outros ardis. Não se trata de punir a inadimplência do contribuinte, ou seja, apenas a dívida com o Fisco. Por isso, os delitos previstos na Lei 8.137/1991 não violam o art. 5º, LXVII, da Carta Magna bem como não ferem a característica do Direito Penal de configurar a ultima ratio para tutelar a ordem tributária e impedir a sonegação fiscal. (STF, ARE 999425 RG/SC, 2017).

Tal entendimento reputa-se eficaz e atende ao princípio da proporcionalidade, evitando sancionar com pena de prisão o mero inadimplemento de tributo. Agora, oportuno colacionar os tipos penais tributários. Para conhecimento da conduta proibida, transcrevo o texto da norma que trata dos crimes contra a ordem tributária. Os arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90 possuem a seguinte redação:

Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V. Art. 2º Constitui crime da mesma natureza: I – fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo; II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; III – exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal; IV – deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento; V – utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública. Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Da leitura supra, percebe-se a diversidade de condutas que caracterizam crimes contra a ordem tributária, sendo o tipo penal misto ou alternativo. Além disso, os delitos podem ser praticados mediante ato comissivo ou omissivo, conforme previsão específica constante na Lei nº 8.137/90. Por seu turno, o Código Penal, em que pese criminalizar condutas em geral, também estabelece sanção na esfera tributária. Exemplo é o disposto do art. 168-A, que trata da apropriação indébita previdenciária, que possui a seguinte redação:

Apropriação indébita previdenciária. Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. § 1º Nas mesmas penas incorre quem deixar de: I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público; II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços; III – pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.

O delito de apropriação indébita previdenciária caracteriza-se pela omissão do agente, isto é, quando deixa de repassar à previdência social as contribuições devidas, bem como quando deixa de pagar o benefício a segurado quando a cota respectiva já tiver sido reembolsada à empresa. De igual modo, a codificação genérica do Código Penal prevê tipo sobre o crime de sonegação de contribuição previdenciária, nos termos do art. 337-A:

Sonegação de contribuição previdenciária. Art. 337-A. Suprimir ou reduzir contribuição social previdenciária e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I – omitir de folha de pagamento da empresa ou de documento de informações previsto pela legislação previdenciária segurados, empregado, empresário, trabalhador avulso ou trabalhador autônomo ou a este equiparado que lhe prestem serviços; II – deixar de lançar mensalmente nos títulos próprios da contabilidade da empresa as quantias descontadas dos segurados ou as devidas pelo empregador ou pelo tomador de serviços; III – omitir, total ou parcialmente, receitas ou lucros auferidos, remunerações pagas ou creditadas e demais fatos geradores de contribuições sociais previdenciárias: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

O delito de sonegação de contribuição previdenciária ocorre com o ato de suprimir ou reduzir valor da contribuição social previdenciária ou qualquer acessório mediante conduta omissiva, consistindo em omitir as informações e sujeitos que especifica, bem como quando deixa de lançar mensalmente quantias descontadas ou devidas.

Posto isso, após breve cotejo dos tipos penais caracterizados dos crimes tributários mais comuns, agora resta analisar a extinção da punibilidade, sobretudo nos crimes tributários, para em seguida perscrutar acerta da suposta aplicação da teoria do adimplemento substancial nos crimes tributários.

2.7. Extinção da punibilidade nos crimes tributários

A extinção da punibilidade possui notável destaque, porquanto se busca descobrir se a teoria do adimplemento substancial pode ser aplicada nos crimes tributários, possuindo, consequentemente, o condão de extinguir a punibilidade dos respectivos delitos, objeto do presente estudo. Para isso, mostra-se necessário identificar doutrinariamente a definição de extinção da punibilidade.

Consoante exposição de Cézar Roberto Bitencourt, a extinção da punibilidade trata-se de “uma renúncia, uma abdicação, uma derrelição do direito de punir do Estado. Deve dizer-se, portanto, com acerto, que o que cessa é a punibilidade do fato, em razão de certas contingências ou por motivos vários de conveniência ou oportunidade política” (BITENCOURT, 2008, p. 721). De fato, a extinção da punibilidade é a perda do direito punitivo estatal, de modo que a sanção decorrente do delito não possa mais ser imposta. Na lição de Guilherme de Souza Nucci, a extinção da punibilidade “é o desaparecimento da pretensão punitiva ou executória do Estado, em razão de específicos obstáculos previstos em lei” (NUCCI, 2014, p. 545). Isto é, a extinção da punibilidade “não afeta em nada a existência do delito, senão a sua perseguibilidade no processo penal” (MUÑOZ CONDE, 2010, p. 402). A extinção da punibilidade decorre de circunstâncias ocorridas após a prática da ação punível, quando a lei aniquila o direito à pena já originado (VON LISZT, p. 465). Com a extinção da punibilidade, destrói-se a “pretensão punitiva preexistente” (FONTAN BALESTRA, 1998, p. 637).

Com efeito, a extinção da punibilidade decorre de lei, que deverá estabelecer as hipóteses, as condições e os critérios adotados, a exemplo do art. 107 do Código Penal. Verifica-se que há um paralelismo de formas, ou seja, da mesma forma que é a lei que tipifica o conceito de crime, é a lei que extinguirá a punibilidade (a lei cria, a lei extingue)[1]. Dessa forma, cumpre-se o princípio da legalidade (art. 5º, II e XXXIX, CF/88). O legislador pátrio, atento à política criminal, editou leis federais dispondo sobre a extinção da punibilidade de certos crimes tributários. A Lei nº 9.983, de 14 de julho de 2000, que inseriu dispositivos ao Código Penal – arts. 168-A e 337-A, previu extinção de punibilidade do crime de apropriação indébita previdenciária se espontaneamente houver declaração, confissão e pagamento do valor devido: “Art. 168-A § 2º É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal”.

Aqui a norma exige expressamente o pagamento como condicionante, já que o agente se apropriara indevidamente do valor devido ao Estado. A redação da norma é clara nas condições estabelecidas, sendo condicionantes para obtenção do beneplácito penal. No mesmo sentido, também acrescido pela Lei nº 9.983/2000, o art. 337-A do Código Penal prevê a extinção da punibilidade do crime de sonegação de contribuição previdenciária, possuindo a seguinte redação: “Art. 337-A […] § 1º É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara e confessa as contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal”.

Nesse caso, diferentemente do crime de apropriação indébita previdenciária, não exige imediatamente o pagamento, visto que, o agente omitiu informações ao Fisco e não se apropriara, como no tipo penal anteriormente comentado A redação da norma despenalizadora é clara ao exigir espontaneidade na declaração e confissão. Não obstante, o pagamento será devido após a declaração do contribuinte, que possui o condão de constituir o crédito tributário, nos termos da súmula 436 do STJ: “A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco”. A despeito da extinção da punibilidade na seara penal, haverá a obrigação do agente na esfera tributária, subsistindo o dever de pagamento do tributo respectivo. Ad argumentandum tantum, as próprias leis especiais, concessivas da extinção da punibilidade tributária, exigem o pagamento integral do tributo respectivo, a exemplo dos arts. 9º da Lei nº 10.684/2006 e 69 da Lei nº 11.941/2009, conforme será visto a seguir.

Outrossim, sobressai a Lei nº 10.684, de 30 de maio de 2003, mormente o seu § 2º. Tal fato decorre da ampliação das hipóteses de extinção de punibilidade de crimes tributários. Foram previstos não só a apropriação indébita previdenciária, como já constava na Lei nº 9.983/2000, como também foram incluídos os casos de sonegação de contribuição e os crimes dos arts. 1º e 2º contra a ordem tributária. O § 2º do art. 9º da Lei nº 10.684, de 30 de maio de 2003 possui a seguinte redação:

Art. 9º É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.

Já o § 2º trata propriamente da extinção da punibilidade dos crimes tributários mencionados no caput: “§ 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios”. Por opção legislativa, o pagamento integral dos débitos tributários extingue a punibilidade dos ilícitos supramencionados. Tal previsão benéfica de natureza penal decorre também do fato de que o pagamento extingue o crédito tributário, consoante o art. 156, I, do CTN.

Portanto, o sujeito passivo ao pagar o tributo devido que fora fraudado/sonegado, finda por extinguir o crédito tributário, não havendo motivo para a sanção, daí o fundamento do benefício penal. Ademais, o princípio da intervenção mínima preceitua que o Estado atue criminalizando condutas somente quando for realmente necessário, evitando sanções penais desnecessárias. De igual modo, o art. 69 da Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, previu a extinção da punibilidade de crimes tributários previstos na Lei nº 8.137/90 e nos arts. 168-A e 337-A do Código Penal, que transcrevo abaixo:

Art. 68. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º  e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, limitada a suspensão aos débitos que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento, enquanto não forem rescindidos os parcelamentos de que tratam os arts. 1º a 3º desta Lei, observado o disposto no art. 69 desta Lei. […] Art. 69. Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no art. 68 quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento.

Hipóteses de aplicação dessa norma findou sendo questionada judicialmente. Desse modo, para infirmar dúvidas, manifestou-se o Pretório Excelso, sendo pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

Ação Penal. Crime tributário. Tributo. Pagamento após o recebimento da denúncia. Extinção da punibilidade. Decretação. HC concedido de ofício para tal efeito. Aplicação retroativa do art. 9º da Lei federal nº 10.684/03, cc. art. 5º, XL, da CF, e art. 61 do CPP. O pagamento do tributo, a qualquer tempo, ainda que após o recebimento da denúncia, extingue a punibilidade do crime tributário. (STF, HC 81.929/RJ, 2003)

No mesmo sentido, decisão do Supremo Tribunal Federal mais recente corroborou o entendimento:

3.1 A extinção da punibilidade pelo pagamento do débito tributário encontra respaldo na regra prevista no artigo 69 da Lei nº 11.941/2009, que não disciplina qualquer limite ou restrição em desfavor do agente […] 4. Pedido de extinção da punibilidade em virtude do pagamento do débito tributário acolhido. (STF, AD 516 ED/DF, 2013).

Assim, como visto alhures, o legislador previu as hipóteses de extinção de punibilidade e estabeleceu os respectivos critérios. A jurisprudência chancela o posicionamento. O ponto nevrálgico agora é perquirir sobre a aplicabilidade da teoria do adimplemento substancial nos crimes tributários.

  1. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL E CRIMES TRIBUTÁRIOS

Perpassada a teoria das obrigações, os elementos do direito tributário e crimes tributários, nesse momento, a questão é avaliar a possibilidade de aplicação da teoria do adimplemento substancial nos débitos que fundamentam os crimes tributários em geral. Em outras palavras, o adimplemento significativo ou quase total do tributo sonegado/fraudado autoriza a extinção da punibilidade dos crimes tributários, por considerar atingida a obrigação principal, isto é, o interesse precípuo do credor, assim como no direito civil?

Para responder a essa pergunta, revela-se útil mencionar sobre o direito público e o direito privado. Assim, o direito penal tributário integra ramo do direito público. Consequentemente, prepondera o interesse público, tendo as normas a finalidade de atender ao interesse da coletividade, caracterizando-se pela indisponibilidade. De outra banda, o direito privado tem por finalidade o interesse particular, isto é, atender à ordem privada dos indivíduos, sendo comumente disponíveis pelos titulares (GOMES, 2008, p. 09-10). Disso resulta que a finalidade de ambos os ramos jurídicos é diametralmente oposta – interesse público versus interesse privado.

Considerando a diversidade do interesse da norma de direito público e de direito privado, resta incompatível a interlocução descomedida de princípios inerentes a um ramo jurídico, aplicando indistintamente ao outro, visto que, o interesse finalístico de ambos é antagônico.

3.1. Necessidade do pagamento integral do tributo para extinguir a punibilidade

Como dito alhures, a extinção da punibilidade decorre da lei. Posto isto, o § 2º da Lei nº 9.983, de 14 de julho de 2000, que inseriu o art. 168-A ao Código Penal, estabeleceu o pagamento como causa apta a afastar a respectiva sanção. Em seguida, mais assertivamente, outros diplomas legislativos estabeleceram critério objetivo e inafastável para extinguir a punibilidade: o pagamento integral, nos termos do art. 9º da Lei 10.684/2003 e os arts. 68 e 69 da Lei nº 11.941/2009.

Essas leis configuram lei penal tributária específica e benéfica, pois permite ao réu afastar-se da sanção legal mediante cumprimento de requisito específico: o pagamento integral do valor devido. Sendo assim, a condição deve ser cumprida para que haja a consequência do favor legal – extinção da punibilidade. Não pode haver interpretação contra dispositivo expresso em lei – contra legem. O interprete não pode ser legislador positivo, revogando norma literal expressa em dispositivo normativo, no caso, a Lei nº 10.684/2003 e a Lei nº 11.941/2009). Esse é o entendimento pacífico do STF:

Portanto, o Supremo Tribunal Federal não pode atuar “contra legem”, impossibilitando a alteração do índice de repasse do montante devido pela União. Tal atitude equivaleria a uma inovação no ordenamento jurídico contra o direito posto, violando a cláusula da separação dos Poderes. (STF, ACO 1044/MT, 2016)

Desse modo, a regra legal que prevê a extinção da punibilidade deve ser observada, não podendo haver interpretação claramente dissonante à norma que já é benéfica por si só, pois extingue a punibilidade de sanção penal.

3.2. Inaplicabilidade automática da teoria do adimplemento substancial na extinção da punibilidade nos crimes tributários

Como é cediço, considerando que o direito tributário e o direito penal compõem o direito público, não podem ser aplicadas automaticamente preceitos do direito privado – que possuem características a satisfação de interesse particular, a disponibilidade do direito/interesse, a possibilidade de renúncia; enfim, possuem repercussão patrimonial e individual. De outra banda, haja vista a especialidade da lei penal tributária, que exige pagamento integral, não pode ser adotada de forma automática a teoria do adimplemento substancial como causa extinguidora da punibilidade dos crimes tributários, sob pena de subverter princípios do ramo jurídico específico – direito público.

Ademais, na perspectiva do direito financeiro, há o interesse público na arrecadação da integralidade do tributo, de maneira que haja recursos suficientes para custear as diversas despesas do Estado no atendimento à coletividade. De fato, a efetiva arrecadação da receita tributária constitui o principal instrumento de política fiscal, consoante a Norma Brasileira de Contabilidade, NBC TSP 01, de 21 de outubro de 2016, de modo que o tributo é “a maior fonte de receita de muitos governos e de outras entidades do setor público” (SANTOS, 2019, p. 125). Ocorre que, havendo redução da tributação sem a chancela e sem o planejamento estatal na compensação do decréscimo na receita, as próprias atividades previstas no orçamento ficarão comprometidas, em face da ausência parcial do tributo previsto.

Assim, a aplicação automática da teoria do adimplemento substancial nos crimes tributários produz consequências prejudiciais ao interesse público. A primeira é a diminuição da arrecadação do tributo estimado na elaboração do orçamento, prejudicando, consectariamente, a execução do programa governamental que dependa do valor desse recurso. Ademais, deve-se observar atentamente os dispositivos constitucionais que disciplinam o direito financeiro pátrio. Nesse sentido, o art. 165, § 6º da Constituição Federal determina que: “o projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia”. De igual modo, sobre os requisitos para a concessão de incentivo ou benefício fiscal, o art. 14 da Lei Complementar nº 101/2000 estabelece expressamente que:

A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições: I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias; II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição. § 1º A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

Outrossim, a adoção do adimplemento substancial nos crimes tributários configura remissão parcial ou até mesmo isenção parcial da receita, sendo imprescindível a prévia concessão legal. Acresça-se ainda a estimativa do impacto orçamentário ou a medida compensatória, perante a diminuição na arrecadação, como determina a legislação. O art. 172 do CTN corrobora:

A lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário, atendendo: I – à situação econômica do sujeito passivo; II – ao erro ou ignorância excusáveis do sujeito passivo, quanto a matéria de fato; III – à diminuta importância do crédito tributário; IV – a considerações de equidade, em relação com as características pessoais ou materiais do caso; V – a condições peculiares a determinada região do território da entidade tributante.

Igualmente, o art. 176 do CTN dispõe: “A isenção, ainda quando prevista em contrato, é sempre decorrente de lei que especifique as condições e requisitos exigidos para a sua concessão, os tributos a que se aplica e, sendo caso, o prazo de sua duração”. Afora isso, a aplicação imediata do adimplemento substancial nos crimes tributários gera a transgressão expressa da lei penal tributária benéfica, que permite a extinção da punibilidade mediante o pagamento integral. Vale dizer, a ampliação de benefício penal, ao arrepio da lei, configura extrapolação desenfreada de instituto despenalizador, da própria norma que estabeleceu os requisitos para a sua concessão. Tal fato caracteriza a revogação da lei penal benéfica pelo intérprete, sem atentar aos pré-requisitos da norma respectiva, violando frontalmente o Estado de Direito – Estado submetido às leis.

Com efeito, a aplicação automática da teoria de direito civil que viole disposição expressa na Constituição Federal, no Código Tributário Nacional, na Lei de Responsabilidade Fiscal e nas leis penais tributárias específicas, finda por desnaturar a autonomia e normatização própria da disciplina jurídica, no caso, do direito tributário, do direito financeiro e do direito penal.

Dessa forma, conforme exposição supra, verifica-se claramente a antinomia entre a lei civil e a lei penal tributária, somada ainda à repercussão do direito financeiro. Para solucionar tal questão, aplica-se o critério da especialidade, que é um dos mais relevantes na resolução de controvérsias entre as leis. Havendo divergência entre leis sobre a mesma matéria, deve ser aplicada a lei que trate especificamente da temática, priorizando a lei especial em detrimento da lei geral, efetivando-se o princípio lex specialis derogat legi generali (BOBBIO, 1991, p. 95-96).

Considerando que os crimes tributários fazem parte da disciplina de direito penal tributário e que repercutem nas finanças públicas, devem ser regidos pela legislação específica penal tributária e financeira; afastando-se, consectariamente, dispositivos privatísticos da lei civil – que adotam comumente o adimplemento substancial.

Por fim, no âmbito do Poder Judiciário, o Superior Tribunal de Justiça entende pela aplicação restrita da teoria do adimplemento substância nas matérias afetas ao direito contratual:

A Teoria do Adimplemento Substancial, de aplicação estrita no âmbito do direito contratual, somente nas hipóteses em que a parcela inadimplida revela-se de escassa importância, não tem incidência nos vínculos jurídicos familiares, revelando-se inadequada para solver controvérsias relacionadas a obrigações de natureza alimentar. (STJ, HC 439.973/MG, 2018)

Por conseguinte, a jurisprudência da Corte Superior entende que somente na seara do direito contratual – área restrita do direito privado – é possível aplicar a teoria do adimplemento substancial, não podendo transladar tal princípio para outras disciplinas do próprio direito civil – a exemplo das relações familiares. Assim, muito menos resta cabível a transposição isolada, sem previsão legal, de instituto do direito civil para o direito público, notadamente as relações oriundas de obrigação tributária e crimes tributários.

3.3. Possibilidade de o legislador conceder isenção ou remissão parcial – adimplemento substancial tributário

O legislador, na liberdade de conformação que possui, pode criar isenção ou remissão de tributos, seja por questão de política criminal, interesse fiscal, extrafiscal, interesse específico; enfim, por diversas razões. Os crimes tributários ostentam muita relevância, porquanto sancionam criminalmente a sonegação/fraude/má-fé do adimplemento tributário, nas hipóteses previstas na lei penal.

Destarte, os crimes tributários possuem repercussão econômico-financeira, além da esfera criminal, razão pela qual podem ser objeto de discussão no âmbito do Poder Legislativo. Nesse sentido, o legislador pátrio pode conceder isenção ou remissão nos crimes tributários, assim como é concedida isenção e remissão nos tributos em geral.

Como corolário dessa perspectiva, poderia haver a extinção da punibilidade dos crimes tributários sem o pagamento integral do tributo, como é exigido atualmente. Sem embargo, para que tal benefício ocorra, impõe-se a prévia concessão de isenção ou remissão no tipo penal tributário. Verificam-se duas hipóteses de adimplemento substancial tributário: a isenção e a remissão. Como visto alhures, a isenção constitui modalidade de exclusão do crédito tributário e depende de lei (arts. 175 e 176, CTN). Por sua vez, a remissão é espécie de extinção do crédito tributário, também exigindo lei prévia (art.172 CTN). Além disso, a isenção e remissão podem ser totais ou parciais, afastando a integralidade ou a parcialidade do tributo devido, a critério do legislador.

Sem embargo, é imprescindível a edição de lei (lei complementar, lei ordinária ou tratado internacional) pelo Congresso Nacional, porquanto os crimes tributários são cometidos contra a União, não podendo o legislador estadual, distrital ou municipal dispor a respeito. Ademais, cabe privativamente à União legislar sobre direito penal e, consequentemente, sobre a extinção da punibilidade dos referidos crimes (art. 22, I, CF/88).

Posto isso, para a concessão de isenção ou remissão tributária nos crimes tributários, que denomino adimplemento substancial tributário, impõe-se o atendimento dos requisitos da Constituição Federal (art. 165, § 6º), do Código Tributário Nacional, bem como à Lei de Responsabilidade Fiscal – LC 101/2000, em especial aos arts. 172 e 176 do CTN, e 14 da LRF. Em outras palavras, para a extinção da punibilidade dos crimes tributários sem o pagamento integral do tributo, requer primeiramente previsão legal de concessão da remissão ou isenção parcial. Outrossim, imprescindível a estimativa do impacto financeiro-orçamentário e a demonstração de que não afetará as metas fiscais ou o estabelecimento de medida compensatória, ante a diminuição da arrecadação.

CONCLUSÃO

Como visto, é inédito estudo específico sobre eventual aplicabilidade do adimplemento substancial nos crimes tributários, não encontrando investigação jurídica a respeito.

O presente artigo analisou as obrigações civis e tributárias, crimes tributários, bem como a incidência do adimplemento substancial nos crimes tributários. Ademais, verificou-se a repercussão negativa, na ótica do direito financeiro, na adoção automática dessa teoria ao arrepio da lei e sem o devido planejamento fiscal compensatório, ante a diminuição na receita tributária prevista. Constatou-se a exigência do pagamento integral do tributo para a obtenção do benefício da extinção da punibilidade dos crimes tributários especificados em lei, nomeadamente o art. 9º da Lei nº 10.684/2003 e o arts. 68 e 69 da Lei nº 11.641/2009.

Afigura-se incabível utilizar interpretação ampliativa ao ponto de considerar extinto o tributo e a respectiva penalidade havendo somente pagamento parcial, ainda que o inadimplemento seja mínimo. Isso porque a lei despenalizadora cria critério objetivo e específico – pagamento integral –, não podendo o intérprete realizar interpretação contra legem, sob pena de desvirtuação desvairada do Direito, desnaturando-o. Afora isso, não é possível o intercambiamento descomedido de princípios do direito privado com os princípios do direito público, uma vez que ambos possuem finalidades opostas: interesse privado e interesse público, respectivamente.

Destarte, ainda que se considere conflito entre a legislação civil e a legislação penal tributária, esta última deve prevalecer – regulando a temática –, uma vez que, havendo antinomias, aplica-se o princípio lex specialis derogat legi generali. (BOBBIO, 1991, p. 95-96).

Não obstante, atendidos os pressupostos constitucionais e legais, é possível que o legislador conceda isenção ou remissão nos crimes tributários, o que conceituo de adimplemento substancial tributário. De fato, ante a previsão criada pelo legislador, o pagamento de parte significativa ou a quase totalidade dos tributos sonegados/fraudados – que fundamentam os crimes tributários –, considerar-se-ia suficiente, extinguindo a punibilidade respectiva. Desse modo, atende-se ao princípio da legalidade, tanto na perspectiva do direito penal quanto do direito tributário e financeiro.

Assim, via de regra e abstratamente, é vedada a adoção da teoria do adimplemento substancial nos crimes tributários, salvo previsão legal em sentido contrário, concessiva de isenção ou remissão – caracterizando o adimplemento substancial tributário.

CARLOS EDUARDO FERREIRA DOS SANTOS

Advogado e consultor jurídico. Membro consultor da Comissão Especial de Direito Penal Econômico, do Conselho Federal da OAB. Mestrando em Política Criminal pela Universidad de Salamanca (Espanha). Integra o grupo de investigación “Estado, Instituciones y Desarrollo”, da Asociación Latinoamerica de Ciencia Política e o comitê de pesquisa “Systèmes judiciaires compares” da Association Internationale de Science Politique. Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC Minas.

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[1] Informe-se que a regra não é absoluta quanto à indispensabilidade da lei em sentido estrito para extinguir punibilidade de crimes, haja vista a competência privativa do Presidente da República de conceder indulto e comutar penas, que se dá mediante edição de Decreto presidencial, conforme art. 84, XII, bem como a competência exclusiva do Congresso Nacional de conceder anistia, nos termos do art. 48, VIII, CF/88.

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