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O acordo de não persecução cível e a hipótese de inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea “l, da Lei Complementar 64/1990
03/11/2020
A Lei Complementar 64/1990 (Lei de Inelegibilidades) regulamentou o art. 14, § 9º, da Constituição Federal, erigindo diversas hipóteses de inelegibilidade. Cerca de 20 anos após sua promulgação, essa norma foi alterada pela Lei Complementar 135/2010 – também chamada de “Lei da Ficha Limpa”.
Não é objetivo deste ensaio analisar todas as hipóteses de inelegibilidade elencadas na LC 64/1990, com as alterações promovidas pela LC 135/2010. Cuidaremos apenas da hipótese prevista no artigo 1º, inciso I, l, que tem em mira a proteção da probidade administrativa e da moralidade para o exercício de mandato eletivo em vista da experiência pregressa do candidato como agente público. Confira-se:
Art. 1.º São inelegíveis:
I – para qualquer cargo:
l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou preferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena; (incluído pela Lei Complementar n.º 135, de 2010).
A configuração da inelegibilidade enfocada requer: (i) condenação por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito[i]; (ii) que essa condenação transite em julgado ou seja proferida por órgão judicial colegiado; e (iii) que seja aplicada na sentença condenatória a sanção de suspensão dos direitos políticos.
Nos casos em que a conduta ímproba imputada se subsumir à hipótese de inelegibilidade em exame, questão interessante é saber se será admitida a celebração do acordo de não persecução cível (ANPC), previsto no artigo 17, § 1º, da Lei 8.429/1992.
No âmbito do Ministério Público do Estado de São Paulo[ii], a Resolução 1.193/2020-CPJ veda a celebração do ANPC justamente nos casos em que a conduta ímproba se subsumir à hipótese de inelegibilidade acima destacada. Desse teor o seu artigo 3º:
Art. 3º – Nos casos em que a conduta ímproba imputada se subsumir às hipóteses de inelegibilidade, nos termos alínea “l”, do inciso I, do art.1º, da Lei Complementar n° 64/1990, não será admitido o acordo que afaste os efeitos nela previstos.
Tem-se, na hipótese, uma importante limitação ao ANPC, que não poderá ser celebrado se o agente ímprobo já ostentar contra ele uma condenação à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou preferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito.
A Resolução 1.193/2020-CPJ presume não ser vantajosa ao interesse público a solução negociada do conflito, nessas circunstâncias. Por conseguinte, o membro do Ministério Público não poderá celebrar o ANPC, devendo optar, necessariamente, pela continuidade da ação de improbidade administrativa. Trata-se, como se vê, de pressuposto negativo do ANPC. A norma busca, com isso, evitar o esvaziamento da causa de inelegibilidade em questão, quando todos os pressupostos necessários à sua incidência já estiverem preenchidos. No entendimento do Colégio de Procuradores de Justiça, o ANPC não pode esvaziar os efeitos da regra de inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, l, da LC 64/90.
A nosso sentir, o artigo 3º da Resolução 1.193/2020 – CPJ/MPSP só alcança os acordos celebrados na fase judicial, quando já existir decisão transitada em julgado ou prolatada por órgão colegiado, condenando o agente ímprobo à suspensão dos direitos políticos, por ato doloso que importe lesão ao erário e enriquecimento ilícito. Vale dizer, antes da existência de uma decisão condenatória nesses moldes, poderá o Ministério Público celebrar o ANPC, sempre que esta solução se mostrar mais vantajosa ao interesse público do que o ajuizamento ou a continuidade da ação de improbidade administrativa.
A respeito desse tema, por uma questão de transparência, faz-se mister registrar o entendimento de parte da doutrina, no sentido de que o ANPC não pode ser celebrado se a investigação/demanda judicial tiver por finalidade apurar/punir alguém por ato de improbidade em que se alegue a ocorrência simultânea de enriquecimento ilícito e prejuízo ao erário. Para os defensores dessa tese, a via judicial, nesses casos, é imperativa, pois, sendo a condenação judicial um pressuposto legal obrigatório para o surgimento dessa inelegibilidade, não pode o ANPC, criado por lei ordinária, dar poder aos legitimados ativos para decidirem quais casos poderão ir à análise do poder judiciário e, potencialmente, gerar a condenação com o respectivo surgimento da inelegibilidade, e quais não irão a julgamento sem gerá-la[iii].
A adoção desse entendimento levaria a uma interpretação mais restritiva da regra prevista no artigo 3º da Resolução 1193/2020 – CPJ/MPSP, em ordem a afastar a possibilidade de acordo desde a fase de investigação, se já constatada a prática de ato de improbidade administrativa apto a atrair a hipótese de inelegibilidade em questão.
Ousamos discordar desse entendimento, por diversas razões. Em primeiro lugar, porque não se pode pretender limitar o alcance da regra prevista no artigo 17, § 1º, da Lei 8.429/1992, sob o influxo de uma regra prevista na Lei Complementar 64/1990. As leis ordinárias e as leis complementares são espécies normativas primárias, que retiram validade diretamente da Constituição Federal, não havendo hierarquia entre elas, mas sim campos de atuação materialmente distintos[iv]. A diferença entre elas está na reserva material feita pela Constituição Federal, que elencou expressamente as matérias que devem ser tratadas por lei complementar e aprovadas por maioria absoluta, de modo que à lei ordinária cabe disciplinar as matérias residuais. A matéria referente ao acordo de não persecução cível não é reservada pela Constituição Federal à Lei Complementar 64/1990. Logo, não há nenhum impedimento para que a Lei 8.429/1992 discipline tal instrumento de justiça negociada de forma plena.
Fixada tal premissa, e considerando que a LIA não estabeleceu nenhum limite material para a celebração do ANPC, é imperioso concluir que o acordo poderá alcançar toda e qualquer modalidade de improbidade administrativa, inclusive aquela que importar enriquecimento ilícito e lesão ao patrimônio público. Reprise-se, não se pode restringir o alcance do ANPC, instrumento de justiça negociada disciplinado pela Lei 8.429/1992, com fundamento em uma regra prevista na Lei Complementar 64/1990, que possui campo de atuação materialmente diverso.
Noutro flanco, a vingar essa tese mais restritiva à celebração do ANPC, por uma questão de coerência, deverá o Ministério Público brasileiro adotar o mesmo entendimento na esfera criminal. É dizer, não se poderá admitir a celebração de acordo de não persecução penal, nem tampouco de acordo de colaboração premiada, em todos os crimes descritos no artigo 1º, alínea, “e”, da LC 64/1990, quais sejam: 1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; 2. Contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; 3. contra o meio ambiente e a saúde pública; 4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade; 5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; 6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; 7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; 8. de redução à condição análoga à de escravo; 9. contra a vida e a dignidade sexual; e 10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando. Afinal, em todas essas infrações penais, a condenação judicial também é pressuposto legal obrigatório para o surgimento dessa inelegibilidade.
A adoção de tal entendimento, por consectário lógico, esvaziaria a tutela, pela via negociada, tanto do patrimônio público quanto de vários outros bens jurídicos cuja proteção foi confiada ao Ministério Público, na contramão da tendência mundial de fomento à solução de conflitos por métodos autocompositivos, inclusive na esfera do direito sancionador (penal e extrapenal).
Se não bastasse, não se pode ignorar o fato de que muitas das condutas que importam enriquecimento ilícito e lesão ao erário podem ser de pequena gravidade, a indicar a solução negociada como a mais adequada. Pense-se, por exemplo, no caso de um agente público municipal que é flagrado usando um veículo da prefeitura para fins particulares. Sua conduta importa enriquecimento ilícito e lesão ao erário, indiscutivelmente. Contudo, justamente em razão da pequena ofensividade desse tipo de comportamento, se proposta a ação de improbidade administrativa, dificilmente o agente ímprobo será condenado à suspensão dos direitos políticos. Não celebrar o ANPC, nessas circunstâncias, com base nessa tese mais restritiva, não atenderá ao interesse público.
Mas não é só isso. A adoção desse entendimento também pode inviabilizar a celebração de importantes acordos de colaboração, que proporcionariam alavancagem probatória em várias investigações de casos mais complexos. Imagine-se, por exemplo, uma situação envolvendo um agente público que, envolvido num esquema de desvio de centenas de milhões de reais dos cofres públicos, em benefício próprio e de terceiros, aceita colaborar com as investigações do Ministério Público, comprometendo-se a identificar os outros responsáveis pelo ilícito, apresentar provas documentais e auxiliar na recuperação dos recursos desviados do erário. Não celebrar o acordo, nesse contexto, representaria abrir mão de uma proteção mais ampla ao patrimônio público.
Com o máximo respeito às opiniões contrárias, pensamos que essa tese mais restritiva à celebração do ANPC está fundada numa premissa equivocada – suposta limitação de um instituto previsto na LIA, por influência de uma regra prevista na LC 64/1990 – e poderá comprometer a atuação resolutiva do Ministério Público na defesa da probidade administrativa. Se não bastasse, ainda poderá interferir de forma bastante negativa na atuação ministerial na esfera criminal.
Nessa ordem de ideias, entendemos que a interpretação menos restritiva para o artigo 3º da Res. 1193/2020/CPJ/MPSP – sugerida no presente ensaio – afasta os riscos de uma atuação ineficiente e incoerente por parte do Ministério Público, ao mesmo tempo em que resguarda a eficácia da norma em exame, que consagra uma importante regra de política institucional do parquet paulista no domínio da improbidade administrativa.
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[i] Nesse sentido, confira-se: TSE, AgR no REsp 71-30/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 25.10.2012 (Informativo TSE qno XIV – 2012, n. 31).
[ii] Regra semelhante foi editada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Desse teor o artigo 4º do Provimento 58/2018 – PGJ: Art. 4.º Nos casos em que a conduta ímproba imputada subsumir-se às hipóteses de inelegibilidade, nos termos do art. 1.º, inciso I, alínea “l”, da Lei Complementar n. 64/1990, não será admitida a composição que afaste os efeitos dessa lei.
[iii] Nesse sentido: PINHEIRO, Igor Pereira. Lei anticrime e acordo de não persecução cível: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Jhmizuno, p. 17.
[iv] Nesse sentido: STF, RE 573.255-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJ 23.5.2008.