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São preocupantes os fundamentos usados para validar a contribuição ao Sebrae
Hugo de Brito Machado Segundo
08/10/2020
Julgando o Recurso Extraordinário 603.624, o Supremo Tribunal Federal fixou a tese, no tema de repercussão geral 325, segundo a qual “as contribuições devidas ao Sebrae, à Apex e à ABDI com fundamento na Lei 8.029/1990 foram recepcionadas pela EC 33/2001”.
A decisão, com todo o respeito que a Corte merece, não foi acertada, especialmente pelos seus fundamentos. Se significam alguma coisa — e em um Estado de Direito precisam significar, não podendo ser meros pretextos lançados de forma aleatória e arbitrária —, indicam postura muito preocupante do STF frente ao Direito Constitucional Tributário.
Para melhor entender o julgado, e os problemas que criou, ou amplificou, convém relembrar um pouco da controvérsia subjacente, colhendo como amostra a contribuição ao Sebrae, embora o que sobre ela será dito seja por igual aplicável às demais consideradas como recepcionadas (Apex e ABDI).
De acordo com a Constituição, a União pode instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico, e de interesse de categorias profissionais ou econômicas (art. 149). Muitas contribuições foram criadas, a partir de 1988, ou recepcionadas, com fundamento apenas nos termos bastante amplos do art. 149 da CF/88.
Entretanto, o próprio texto constitucional possui disposições mais específicas, que tratam de determinadas contribuições. É o caso daquelas destinadas à Seguridade Social (art. 195), e da Cide-combustíveis (art. 177, § 4º). Tem-se, assim, uma subespécie de contribuição, submetida a regramento eventualmente distinto.
Nessa ordem de ideias, se a contribuição tem amparo constitucional em dispositivo específico, é a ele que, em um primeiro momento, o legislador infraconstitucional deve obediência, para institui-la e discipliná-la validamente. Se não, seu fundamento será apenas o art. 149 da CF/88, que até o advento da EC 33/2001 tinha termos bastante genéricos, a permitir a instituição de contribuições sobre as mais variadas bases.
Ocorre que, com a EC 33/2001, a CF/88 passou a estabelecer que as contribuições instituídas com amparo no genérico art. 149 deveriam incidir sobre bases imponíveis específicas. Confira-se a redação:
“Art. 149. (…)
(…)
§ 2º As contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata o caput deste artigo: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001)
(…)
III – poderão ter alíquotas: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001)
a) ad valorem , tendo por base o faturamento, a receita bruta ou o valor da operação e, no caso de importação, o valor aduaneiro; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001)
(…)”
Fechou-se, com isso, uma janela imensa, por intermédio da qual, com a complacência do Supremo Tribunal Federal, a União vinha implodindo o sistema tributário delineado na Constituição Federal de 1988. Isso porque, a partir de então, tais exações deveriam pelo menos limitar-se às bases imponíveis indicadas, não podendo alcançar qualquer base escolhida pelo legislador.
A medida foi salutar, pois, realmente, em vez de instituir e majorar impostos, submetidos expressamente a limitações constitucionais ao poder de tributar como as imunidades constantes do art. 150, VI, da CF/88 (clique aqui), e muitos dos quais geradores de arrecadação partilhada com Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, a União vinha claramente preferindo (ab)usar de sua competência para instituir contribuições.
Sob esse rótulo plástico e flexível, assistiu-se ao desmonte da equilibrada divisão de rendas tributárias operada em 1988, pois toda sorte de exação passou a ser criada, majorada, e mesmo convalidada (veja-se, a propósito: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Contribuições e Federalismo. São Paulo: Dialética, 2005).
O Adicional de Tarifa Portuária, por exemplo, tinha sua validade defendida pela União, ao argumento de que seria uma tarifa. Os contribuintes impugnavam a cobrança, alegando tratar-se de taxa inconstitucional. Apreciando a questão, o STF, de ofício, tirou da cartola o fundamento de que seria uma contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE), convalidando-a com esse rótulo (RE 218.061/SP).
E como todo tributo, de uma forma ou de outra, intervém de algum modo na economia, várias outras exações passaram a ser defendidas, pelo Fisco, como ostentando essa natureza, ainda que nada disso tenha sido sequer imaginado quando de sua instituição no passado. Foi o que se deu com a contribuição para o Incra, e, no que mais de perto interessa a este texto, também com a destinada ao Sebrae.
Mas o STF também decidiu, quando convalidou a contribuição criada pela LC 110/2001, que podem ser criadas contribuições sociais “gerais”, ou seja, não voltadas a uma finalidade especificamente indicada na Constituição como motivadora da criação de uma contribuição. E, como se não fosse isso suficiente, decidiu mais recentemente (RE 878.313 — tema 846 de repercussão geral) que essa contribuição pode continuar sendo cobrada, mesmo já se tendo atingido a finalidade “social” para a qual ela fora inicialmente criada (recuperar o déficit das contas do FGTS).
Veja-se: diante desse cenário, construído pelo STF, a União pode instituir praticamente qualquer exação, para qualquer finalidade, dando-lhe o rótulo ou de “CIDE”, ou de “contribuição social geral”. Se, como arremate, lembrarmos da DRU, e mesmo que a eventual tredestinação, ou desvio, na destinação das contribuições não pode ser questionada por contribuintes, nem invalida a cobrança, o quadro está completo.
O mínimo que se poderia esperar, nesse cenário, seria que tais exações, pelo menos, pudessem ser instituídas, a partir da EC 33/2001 e da alteração por ela levada a efeito no art. 149 da CF/88, apenas sobre “o faturamento, a receita bruta ou o valor da operação e, no caso de importação, o valor aduaneiro.”
Mas eis que, apreciando o tema 325 de repercussão geral, o STF decide que a contribuição ao Sebrae é constitucional, tendo sido recepcionada pela EC 33/2001. E por que não seria?
Simples. Porque a contribuição para o Sebrae incide sobre a folha de pagamentos, base diversa daquelas elencadas no art. 149 da CF/88. E ela não é uma contribuição de seguridade, de modo a encontrar amparo no art. 195, que permite a tributação da folha de pagamentos… Como o próprio STF já decidiu, trata-se de uma Cide.
Vale lembrar que a CF/88 tem disposição expressa para permitir que outras contribuições, excepcionalmente, sejam cobradas sobre a folha de pagamentos, a indicar a exclusividade dessa base para as contribuições de seguridade. É o que se dá com o art. 240 da CF/88, relativamente às contribuições do chamado “sistema ´S´”. Só que a contribuição ao Sebrae não é do “sistema ´S´”, nem pode ser considerada “de interesse de categorias profissionais ou econômicas”, pois ela é cobrada de médias e grandes empresas, para financiar ações em benefício das pequenas e microempresas. É, em suma, como já decidiu o STF, uma Cide. E, como tal, a partir de 2001, só poderia incidir sobre “o faturamento, a receita bruta ou o valor da operação e, no caso de importação, o valor aduaneiro.” Não sobre a folha de pagamentos…
Considerada a própria jurisprudência do STF, portanto, apesar de todo o elastério que sempre deu às regras constitucionais referentes à instituição de contribuições, não havia espaço para considerar válida a contribuição, fundada apenas no art. 149 da CF/88 (como a destinada ao Sebrae), que incidisse sobre bases diversas das ali indicadas expressamente.
Mas o STF declarou constitucional a exação, usando, em suma, os seguintes fundamentos:
(a) as bases indicadas no art. 149 são meramente exemplificativas;
(b) a declaração de inconstitucionalidade privaria o Sebrae de recursos necessários ao seu funcionamento.
Os fundamentos, como dito, são preocupantes. A questão é inclusive muito maior, e mais ampla, do que a mera discussão sobre a subsistência do dever de pagar tais exações em particular, ou sobre o desmedido elastério sempre concedido à União em matéria de contribuições. O problema, para usar uma expressão mal empregada pelo STF na ocasião, são as suas consequências para o Direito Tributário como um todo.
Quanto a serem exemplificativas as regras de competência, trata-se de algo logicamente equivocado, que simplesmente aniquila por completo a própria ideia de competência. Não se está diante, como pode parecer em uma análise apressada, de mera questão interpretativa, referente aos limites semânticos do texto (o que é renda? o que é faturamento? o que é mercadoria? o que é serviço?). Não. Isso não tem nada com essa discussão, ou sobre serem tipos ou conceitos as palavras empregadas, ou sobre saber se a vaguidade é ou não insuprimível à linguagem (como de fato é). A questão é muito mais grave, pois diante da decisão, nem importa mais discutir o que tais palavras significam, se são vagas ou não etc, pois elas são meros exemplos.
Não faz diferença saber se o conceito de mercadoria é fechado, se deve ser colhido no direito mercantil infraconstitucional pré-1988, ou se evoluiu, ou se deve ser encontrado no senso comum, ou no direito do consumidor contemporâneo. Isso simplesmente não importa, se se entender, v.g., que a regra do art. 155, II, da CF/88 é exemplificativa do que os Estados podem tributar, pois eles poderão também tributar validamente qualquer outra coisa. Para que discutir o que é “renda e proventos”, “serviço de qualquer natureza”, ou “produto industrializado”, se tais expressões fossem só exemplos do que os entes públicos estão constitucionalmente habilitados a tributar?
Agregue-se, agora, a este fundamento, o segundo: de que é preciso levar em conta “as consequências do julgado” em face das quais, para não criar mais problemas ao Fisco, não seria possível declarar inconstitucional um tributo, quando isso privar o credor tributário da receita correspondente. Foi o que fez o STF, no caso, sendo então possível perguntar: qual a decisão que, declarando um tributo inconstitucional, não terá como consequência privar o ente público de sua arrecadação? Se esse for um efeito a ser evitado, para não se criarem problemas ao poder público, nenhum tributo poderá ser declarado inconstitucional! Aliás, quanto maior o número de vítimas da violação à ordem jurídica, e por quanto mais tempo ela for perpetrada, maiores serão os motivos para que ela não seja reconhecida.
Perceba a leitora que não se está, aqui, criticando o uso de argumentos consequencialistas. Pelo contrário. Se está, dentro do mesmo tipo de raciocínio, apontando o equívoco de se usar este argumento, precisamente porque a sua consequência será a impossibilidade de se declarar qualquer tributo inconstitucional, por mais evidente que seja sua incompatibilidade com o sistema jurídico. Essa é uma consequência que não se pode aceitar, em um Estado que pretende ser “de Direito”. E há outras, como a tendência, no mundo, de não se onerar a folha de salários, diante da evolução da tecnologia e da inteligência artificial. Em vez de tributar pesadamente quem emprega seres humanos, e desonerar (com créditos de contribuições não cumulativas…) quem “emprega” máquinas, pode-se pelo menos não onerar com tantos penduricalhos o pagamento do trabalho humano, finalidade para a qual o entendimento sob análise — que poderia ter colhido a oportunidade para forçar o Poder Público a encontrar outra fonte de financiamento para o Sebrae — prestou grande desserviço.
O mais relevante, porém, é: diante desses dois fundamentos, segundo os quais as regras que determinam como tributos podem ser instituídos são apenas exemplificativas, e de que o reconhecimento da invalidade deve ser evitado quando implicar privar o ente público dos recursos correspondentes, é o caso de se perguntar: para que ainda serve o Direito Tributário, construído a tão duras penas, em lento processo de tentativa e erro, ao longo de séculos de abusos?
Se as regras de um jogo enunciam meros exemplos da infinidade de comportamentos que os jogadores podem, querendo, adotar; e, desrespeitadas, nada acontece, é o próprio jogo, enquanto realidade institucional, que deixa de existir. Que o STF avalie também essa consequência, quando voltar a apreciar questões tributárias.
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