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TRIBUTÁRIO
Tributação e Justiça Social
Regina Helena Costa
21/08/2020
Alcançado o trigésimo aniversário da Constituição da República, entendemos oportuno trazer alguma reflexão sobre a conexão entre tributação e justiça social.
A justiça social é abrangente, compreendendo não apenas a realização da liberdade, mas também a paz e a felicidade. Diz, assim, com as condições concretas de vida do povo e, portanto, exige um conjunto de políticas públicas visando combater a desigualdade e a exclusão social.
A Constituição da República estampa farta normatividade acerca da dignidade humana e da justiça social. Logo em seu art. 1º, aponta a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (inciso III).
Adiante, ao arrolar os objetivos fundamentais desta, apresenta, dentre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária bem como a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, caput e incisos I e III).
Disciplinando a ordem econômica, o texto fundamental estabelece que ela é “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social”, observados diversos princípios, dentre eles a “redução das desigualdades regionais e sociais” (art. 170, caput e inciso VII, destaques nossos).
Nessa moldura constitucional, tão expressiva acerca da justiça social, cabe relembrar que o tributo constitui não apenas expediente arrecadatório, mas instrumento de transformação social, de efetivação da justiça social. Dentre as espécies tributárias, destacam-se, em tal contexto, os impostos.
O ponto de partida do entrelaçamento entre a justiça social e tributação é o princípio da capacidade contributiva, hospedado no art. 145, § 1º da Constituição. A capacidade contributiva pode ser definida como a aptidão, da pessoa colocada na posição de destinatário legal tributário, para suportar a carga tributária, numa obrigação cujo objeto é o pagamento de imposto, sem o perecimento da riqueCza lastreadora da tributação.[1]
Consubstancia a diretriz para a modulação da carga tributária em matéria de impostos, porquanto sendo esses tributos não vinculados a uma atuação estatal, sua graduação deve levar em conta circunstância que diga respeito ao próprio sujeito passivo.
Dentre os principais efeitos da aplicação desse princípio estão a manutenção do mínimo vital e a graduação dos impostos segundo a capacidade econômica do contribuinte. Cuidando-se de pessoa física, o mínimo vital é, em singela síntese, aquela quantidade de riqueza mínima a propiciar ao sujeito uma vida digna e, desse modo, a fixação desse quantum há de ser compatível com a realidade, considerando as despesas essenciais à sua manutenção e à de sua família.
A graduação dos impostos segundo a capacidade econômica do contribuinte, por sua vez, impõe a adoção da progressividade, técnica segundo a qual quanto maior a base de cálculo do imposto, maior a alíquota sobre ela incidente.
Posto isso, em outro viés, há de se recordar a noção de carga tributária: o grau de sacrifício que o Estado impõe aos seus cidadãos, por meio do pagamento de tributos, com vista aos objetivos que pretende alcançar. A escolha desse grau de sacrifício consubstancia, assim, autêntica decisão política.
No Brasil, historicamente, a tributação concentra-se no consumo de bens e serviços – a chamada tributação indireta – e não no patrimônio e na renda – a tributação direta – como ocorre nos países mais desenvolvidos. A demonstrá-lo os estudos desenvolvidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, que apontam, há décadas, que cerca de 2/3 da nossa carga tributária recaem sobre o consumo e apenas 1/3 sobre renda e patrimônio[2].
Como a tributação sobre o consumo não considera a capacidade contributiva de quem adquire os bens e serviços, ela acarreta a regressividade do sistema tributário, impondo maior carga tributária justamente àqueles que têm menor capacidade contributiva, com grave dano social. Por outro lado, a regressividade – noção oposta à de progressividade – alivia a carga tributária daqueles contribuintes de maior renda, onerando-os menos do que o devido.
Ainda, na chamada tributação direta – aquela recaente sobre a renda e o patrimônio – o sistema tributário apresenta baixa progressividade, porquanto a majoração da base de cálculo dos impostos correspondentes não se reflete no aumento das respectivas alíquotas.
Aliados os perfis da tributação direta e da indireta, o resultado é a alta regressividade do sistema tributário, com a oneração, em maior nível, justamente daqueles que ostentam menor capacidade contributiva, em detrimento da justiça social. Essa ausência de sintonia entre tributação e justiça social, persiste, em todos os níveis (federal, estadual, municipal), há décadas, como consequência da inexistência de prática do federalismo cooperativo ou solidário.
Diante desse quadro e na ocasião do trigésimo aniversário da Constituição de 1988, a conclusão que se impõe é a de que a verdadeira e necessária reforma tributária é a que venha a promover a justiça social, disciplinando a exigência de impostos consoante a aptidão econômica daqueles que os devem pagar.
Prescinde tal reforma de alteração constitucional – exige, ao revés, a integração de todos os entes federativos numa política fiscal conjunta que vise a diminuição da carga tributária indireta (consumo), minimizando, assim, a regressividade do sistema, bem como deslocando a concentração dessa carga na tributação direta (renda/patrimônio), com a elevação da progressividade do sistema tributário.
Somente assim o tributo cumprirá plenamente sua função social, de instrumento de promoção da redução das desigualdades sociais, da efetivação do princípio da dignidade humana e, enfim, da busca da justiça social.
Referências bibliográficas
Costa, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 4ª ed. São Paulo, Malheiros, 2015.
IPEA. Comunicado n. 92, “Equidade fiscal no Brasil : Impactos Distributivos da Tributação e do Gasto Social”, 2011, disponível em www.ipea.gov.br, consulta em 1º.09.2018.
[1] Cf. nosso Princípio da Capacidade Contributiva, 4ª ed., São Paulo, Malheiros, 2015, p. 112.
[2]E.g Comunicado IPEA n. 92, “Equidade fiscal no Brasil : Impactos Distributivos da Tributação e do Gasto Social”, 2011, disponível em www.ipea.gov.br.
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