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Como uma onda no mar: a recente jurisprudência sobre licenciamento ambiental do STF
Paulo de Bessa Antunes
09/06/2020
Este artigo objetiva realizar uma breve análise da recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal [STF] relativa ao licenciamento ambiental. O tema é relevante seja pelo (1) aspecto da proteção ambiental, seja pelo das (2) competências federativas. Como se espera poder demonstrar, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade [ADI] 5.475/AP é um retrocesso em direção à maior centralização de poderes na União, o que não significa, necessariamente, maior proteção ao meio ambiente.
1 – Federalismo cooperativo em matéria ambiental
Uma das principais funções das Cortes de Justiça é dizer o direito com segurança e estabilidade. A reiteração de decisões judiciais em um mesmo sentido é fundamental para que a jurisprudência, como “sucessão harmônica de decisões” (REALE, 1974, p. 187) possa servir como antecipação da compreensão dos tribunais sobre determinado assunto, assegurando a certeza do direito. Logo, mudanças de orientação dos tribunais não devem ocorrer repentinamente e sem motivos relevantes, como se deu nos casos que serão examinados neste artigo, julgados pelo STF.
No Brasil, dada a sua natureza federativa, cabe ao STF estabelecer, concretamente, o conteúdo das repartições de competências entre os diferentes entes federativos. Em matéria ambiental, esta é uma questão crucial. O elevado nível de burocratização do licenciamento ambiental e, igualmente, o alto número de atividades submetidas a licenciamento ambiental[1] tem servido de base para um movimento com vistas à sua simplificação (D`Oliveira, 2020). Um problema jurídico relevante em relação à questão é o de saber qual a natureza específica do licenciamento ambiental e como enquadrá-lo no conjunto de competências constitucionais? A jurisprudência do STF, em tema de federalismo, tem sido oscilante, pois reconhece maiores ou menores competências dos estados com oscilações muito rápidas, com tendência a privilegiar as competências federais (ANTUNES, 2015).
Algumas decisões recentes do STF têm reconhecido maior competência dos estados em matéria de saúde pública e meio ambiente. Já em 2017, o STF dava início ao reconhecimento do princípio da subsidiariedade em matéria ambiental, conforme o decidido no RE 194.704 que afirmou o seguinte: “[n]a ausência de norma federal que, de forma nítida (clear statement rule), retire a presunção de que gozam os entes menores para, nos assuntos de interesse comum e concorrente, exercerem plenamente sua autonomia, detêm Estados e Municípios, nos seus respectivos âmbitos de atuação, competência normativa.”
O passo mais relevante, contudo, foi a decisão relativa à utilização de amianto, ocasião na qual foi declarada a inconstitucionalidade da Lei Federal nº 9.055/1995, reconhecendo-se, em relação ao tema, a “competência legislativa plena dos estados” (ADI 3.937)[2]. Em relação aos recursos hídricos e à cobrança pelo seu uso, o STF entendeu que “os estados-membros têm autonomia constitucional para formular suas leis de organização administrativa, inclusive para o setor de recursos hídricos.”[3]
1.1 – O licenciamento ambiental (licenças ambientais)
A Lei Complementar n° 140/2011 [LC 140], com vistas a regulamentar o artigo 23 da Constituição Federal [CF], define o licenciamento ambiental como “o procedimento administrativo destinado a licenciar atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental” (artigo 2º, I).
O artigo 3º, IV da LC 140 estabelece como um dos objetivos fundamentais que regem as relações entre os entes federativos, no exercício da competência comum, “garantir a uniformidade da política ambiental para todo o País, respeitadas as peculiaridades regionais e locais”. É desnecessário dizer que tal questão é fundamental em uma federação. Ora, a política ambiental brasileira é aquela estabelecida pela Lei nº 6.938/1981 [(Política Nacional do Meio Ambiente) PNMA] que, em seu artigo 9º, IV reconhece o “licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras” como seus instrumentos. Há que se ressaltar, ainda, que a PNMA não estabelece um padrão de licenças aplicáveis ao licenciamento ambiental, pois tal matéria ficou relegada ao poder regulamentar, em nível federal. É desnecessário dizer que, somente com muito esforço intelectual é possível enquadrar decretos no conceito de norma geral (CF, artigo 24, § 1º); os decretos, como se sabe, são atos administrativos que regulamentam a aplicação das leis. Em um modelo federativo, como regra, os regulamentos são emitidos pelo Chefe do Executivo do ente federativo responsável pela produção da lei.
No caso do processo administrativo (licenciamento ambiental), cuida-se claramente de norma de economia interna dos diferentes entes federativos e, no caso dos Estados, contemplada no artigo 20 da Constituição Federal.
O modelo trifásico de licenciamento ambiental (Decreto Federal nº 99.274, de 6 de junho de 1990, artigo 19), há longa data está superado[4]. Vários modelos têm sido utilizados em lugar da rigidez estabelecida pelo padrão federal[5], tais modificações correspondem ao acúmulo de experiencias ao longo de anos que demonstraram que o padrão federal não é capaz e atender ao licenciamento de atividades de pequeno e médio porte e potencial de poluição[6]. Isto se deve ao fato de que o modelo federal foi concebido para grandes impactos e que, ao longo dos anos, o licenciamento ambiental foi se expandindo para atividades menores. Sem dúvida, a estratégia de licenciamento adotada pelos estados corresponde ao legítimo exercício de sua autonomia constitucional em relação à sua auto-organização e, especialmente, em relação às suas capacidades técnicas, financeiras e materiais. Quanto a este aspecto, deve ser observado que o Projeto de Lei nº 3729/2004[7] que sobre o licenciamento ambiental, regulamenta o inciso IV do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, e dá outras providências, na prática incorpora os diferentes modelos de licenças ambientais contidos nas inúmeras normas estaduais e municipais. Busca o PL, certamente, adequar o padrão geral às realidades do licenciamento ambiental realmente praticado no Brasil.
Não cabe confundir maior ou menor proteção ambiental com o processo de licenciamento, pois este na condição de mero instrumento de uma política, não confere proteção ambiental. Limita-se a estabelecer condições de funcionamento de uma atividade. A proteção ambiental é conferida pela atuação do empreendedor dentro dos limites estabelecidos pela licença e não pelo caminho utilizado para a sua concessão. O que tem se observado é que a grande preocupação, em torno do tema, tem se limitado aos processos e não aos resultados. Isto sobrevaloriza o licenciamento ambiental e as discussões ao seu redor. Por outro lado, a discussão serve para encobrir o evidente déficit administrativo no que concerne ao efetivo acompanhamento do cumprimento das licenças concedidas, bem como a inexistência de estratégias claras de avaliação ambiental.
2 – Ações Diretas de Inconstitucionalidade n.º 4615/CE e 5475/AP
A ADI 4.615 CEARÁ[8] foi ajuizada arguindo a inconstitucionalidade da Lei nº 14.882, de 27.01.2011, do Estado do Ceará[9], que estabeleceu procedimentos ambientais simplificados para implantação e operação de empreendimentos e/ou atividades de porte micro com potencial degradador baixo e adota outras providências. A ADI 4.615/CE foi julgada improcedente, aos 28/10/2019, tenho a Corte afirmado que:
A Lei 6.938/1981, de âmbito nacional, ao instituir a Política Nacional do Meio Ambiente, elegeu o Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA como o órgão competente para estabelecer normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras a ser concedido pelos Estados e supervisionado pelo IBAMA. O CONAMA, diante de seu poder regulamentar, editou a Resolução 237/1997, que, em seu art. 12, § 1º, fixou que poderão ser estabelecidos procedimentos simplificados para as atividades e empreendimentos de pequeno potencial de impacto ambiental, que deverão ser aprovados pelos respectivos Conselhos de Meio Ambiente. A legislação federal, retirando sua força de validade diretamente da Constituição Federal, permitiu que os Estados-membros estabelecessem procedimentos simplificados para as atividades e empreendimentos de pequeno potencial de impacto ambiental. [ADI 4.615, rel. min. Roberto Barroso, j. 20-9-2019, P, DJE de 28-10-2019.]
Entretanto, aos 20/04/2020, o STF julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade [ADI] 5.475/AP[10] para declarar formal e materialmente inconstitucional o inc. IV e o § 7º do art. 12 da Lei Complementar nº 5/1994 do Amapá, alterada pela Lei Complementar estadual nº 70/2012 que instituía a Licença Ambiental Única[11], na verdade uma forma simplificada de licenciamento ambiental, tal como existente em outros estados da federação. É curioso que a argumentação que serviu de base para a procedência da ADI, bem como os procedentes invocados, está alicerçada na inexistência de estudos ambientais para a concessão das licenças ambientais (ADI n. 1.086, ADI n. 3.035). A Lei do estado do Amapá não suspendeu a exigência de licenciamento ambiental, limitando-se a estabelecer um conjunto de licenças, dentro do qual se encontrava a Licença Ambiental Única.
Assim, a decisão proferida na ADI 5.475/AP está em rota de colisão com o decidido na ADI 4.615/CE e até mesmo com a decisão proferida na ADI 5312/TO[12] proposta em face da Lei nº 2.713/2013 do Estado do Tocantins[13]que dispensava de licenciamento ambiental as atividadesagrosilvopastoris.
Com efeito, o critério para a avaliação de impactos ambientais não é o segmento econômico, mas a sua efetiva ou potencial capacidade de produzir degradação ambiental[14]. por outro lado, o simples fato de que uma atividade possa ou não causar degradação ambiental não é suficiente para acionar a aplicação do inciso IV do § 1º do artigo 225 da CF. A Constituição só exige Estudo Prévio de Impacto Ambiental [EIA] para os casos de significativa degradação ambiental. No particular, observe-se que a Resolução CONAMA nº 237/1997 (artigo 3º, parágrafo único) atribui aos órgãos encarregados do licenciamento ambiental definir o grau de impacto das diversas atividades. Entendemos que, certamente, o STF teria andado melhor se tivesse examinado a questão pela ótica do artigo 23 e não do artigo 225, § 1º, IV , pois a mensagem transmitida é que os estudos prévios de impacto ambiental se constituem em regra no que se refere à avaliação ambiental de empreendimentos.
Contudo, sabe-se que o licenciamento ambiental realizado com a exigência de EIA é minoritária no conjunto de licenciamentos concedidos. A decisão está em linha com o decidido na ADI 1086/SC[15], julgada procedente para declarar inconstitucional o artigo 182, § 3º da Constituição de Santa Catarina. Estudos de Impacto Ambiental não se dispensam, ou são cabíveis ou não, havendo potencial ou efetiva significativa degradação do meio ambiente, o EIA será sempre cabível e exigível.
3 – Conclusão
É importante que o STF reveja a decisão proferida na ADI 5475/AP, pois ela está em contradição com a jurisprudência mais recente da Corte e pode implicar na invalidação dos sistemas de licenciamento ambiental que estão em plena aplicação em muitos estados e municípios brasileiros.
Referências:
ANTUNES, Paulo de Bessa. Federalismo e Competências Ambientais no Brasil. São Paulo: Atlas. 2ª edição. 2015
D`Oliveira, Rafael Lima Daudt. A Simplificação no Direito Administrativo e Ambiental. Rio de Janeiro: Lúmen Juris. 2020.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: José Bushatsky. 2ª edição. 1974
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[1] Ver anexo I da Resolução Conama 237/1997. Disponível em: < http://www2.mma.gov.br/port/conama/res/res97/res23797.html > Acesso em 07/06/2020
[2] Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 12.684/2007 do Estado de São Paulo. Proibição do uso de produtos, materiais ou artefatos que contenham quaisquer tipos de amianto ou asbesto. Produção e consumo, proteção do meio ambiente e proteção e defesa da saúde. Competência legislativa concorrente. Impossibilidade de a legislação estadual disciplinar matéria de forma contrária à lei geral federal. Lei federal nº 9.055/1995. Autorização de extração, industrialização, utilização e comercialização do amianto da variedade crisotila. Processo de inconstitucionalização. Alteração nas relações fáticas subjacentes à norma jurídica. Natureza cancerígena do amianto crisotila e inviabilidade de seu uso de forma efetivamente segura. Existência de matérias-primas alternativas. Ausência de revisão da legislação federal, como determina a Convenção nº 162 da OIT. Inconstitucionalidade superveniente da Lei Federal nº 9.055/1995. Competência legislativa plena dos estados. Constitucionalidade da Lei estadual nº 12.684/2007. Improcedência da ação.[ADI 3.937, rel. p/ o ac. min. Dias Toffoli, j. 24-8-2017, P, DJE de 1º-2-2019.]
[3] [ADI 3.336, rel. min. Dias Toffoli, j. 14-2-2020, P, DJE de 6-3-2020.]
[4] Disponível em: < http://www.meioambiente.mg.gov.br/regularizacao-ambiental/sistema-de-licenciamento-ambiental-sla > Acesso em: 07/06/2020
[5] Dentre outras, veja-se a Lei nº 15434 de 09/01/2020 (Rio Grande do Sul) Art. 54. Disponível em: < https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=388665 > Acesso em: 06/06/2020
[6] Disponível em: < https://iema.es.gov.br/licenciamento-simplificado > Acesso em: 07/06/2020
[7] Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=257161 > Acesso em: 06/06/2020
[8] Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15341579166&ext=.pdf > Acesso em 05/06/2020
[9] Disponível em: < https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=123271 > Acesso em 06/05/2020
[10] Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343275190&ext=.pdf > Acesso em 05/06/2020
[11] Disponível em: < https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=304634 > Acesso em: 05/06/2020
[12]A possibilidade de complementação da legislação federal para o atendimento de interesse regional (art. 24, § 2º, da CF) não permite que Estado-Membro dispense a exigência de licenciamento para atividades potencialmente poluidoras, como pretendido pelo art. 10 da Lei 2.713/2013 do Estado do Tocantins. O desenvolvimento de atividades agrossilvipastoris pode acarretar uma relevante intervenção sobre o meio ambiente, pelo que não se justifica a flexibilização dos instrumentos de proteção ambiental, sem que haja um controle e fiscalização prévios da atividade.[ADI 5.312, rel. min. Alexandre de Moraes, j. 25-10-2018, P, DJE de 11-2-2019.]
[13] Disponível em: < https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=254460 > Acesso em: 06/05/2020
[14] Lei nº 6.938/1981, artigo 10.
[15] STF – ADI: 1086 SC, Relator: Min. ILMAR GALVÃO, Data de Julgamento: 10/08/2001, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 10-08-2001 PP-00002 EMENT VOL-02038-01 PP-00083.