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A pandemia do coronavírus e as teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva

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Felipe Quintella

Felipe Quintella

19/03/2020

Vivemos um momento sem precedentes na história de cada um de nós. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde decretou a pandemia do coronavírus, denominado SARS-CoV-2, causador da doença denominada COVID-19.

A pandemia causou diversas repercussões jurídicas — razão pela qual, na Teoria do Direito Civil, dizemos que constitui um fato jurídico.

Diversas dessas repercussões estão no plano dos Direitos das Obrigações e dos Contratos.

Neste artigo, focarei nas teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, do ponto de vista das relações civis.

Em textos subsequentes, tratarei da teoria da onerosidade excessiva do ponto de vista das relações de consumo, bem como de outras repercussões da pandemia no plano do Direito Civil.

Vamos lá, então. Imagine que a sociedade Faça Festas Ltda. houvesse alugado da Negócios Imobiliários Ltda., em 19 de março de 2019, um espaço de eventos, por R$ 30.000,00, pelo prazo de oito anos. A Faça Festas, então, passou a promover diversos eventos festivos no imóvel locado. Em razão da pandemia do coronavírus SARS-CoV-2 em 2020, no entanto, foram proibidos, no município em que está localizado o espaço, todos os eventos dos tipos que a Faça Festas promove.

Indaga-se, pois: deve a Faça Festas Ltda. pagar os aluguéis durante o período em que os eventos estiverem proibidos? Há algo que possa pleitear?

Em razão de dúvidas como essas, decorrentes de situações de excepcionalidade que sempre ocorreram na história da humanidade, é que, há muito, o Direito passou a seguir a ideia de que os contratos de execução continuada ou diferida devem ser cumpridos conforme as circunstâncias fáticas do momento da contratação.

Tal ideia foi denominada, pelos eruditos, de cláusula rebus sic stantibus — corruptela da expressão em latim “contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur”, o que quer dizer, aproximadamente, “contratos de trato sucessivo dependentes de circunstâncias futuras se entendem pelas coisas como se encontram”.

No Direito brasileiro atual, a ideia de que os contratos de execução continuada ou diferida devem ser cumpridos conforme as circunstâncias fáticas do momento da contratação é objeto das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva.

Vejamos cada uma delas.

Teoria da Imprevisão

A ideia antiga da cláusula rebus sic stantibus, somada a precedentes da justiça inglesa na virada do século XIX para o século XX, e a uma lei francesa do pós-I Guerra Mundial levou ao desenvolvimento, no Brasil, do que se denominou teoria da imprevisão.

Hoje, a teoria da imprevisão consta no art. 317 do Código Civil de 2002, segundo o qual “[q]uando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.

Como se vê, a teoria da imprevisão, no Direito brasileiro, admite a revisão contratual.

Conforme eu e o Prof. Elpídio Donizetti explicamos no nosso Curso de Direito Civil, são quatro os pressupostos da revisão contratual por aplicação da teoria da imprevisão:

(1) que se trate de contrato comutativo de execução diferida ou continuada; (2) que, quando da execução, tenha havido alteração das circunstâncias fáticas vigentes à época da contratação; (3) que essa alteração fosse inesperada e imprevisível quando da celebração do contrato; (4) por fim, que a alteração tenha promovido desequilíbrio entre as prestações.

Teoria da Onerosidade Excessiva

Decorre do Código Civil italiano de 1942 (arts. 1.467 a 1.469), por sua vez, a denominada teoria da onerosidade excessiva. Como o referido Código inspirou os autores do anteprojeto de lei que gerou o Código Civil brasileiro de 2002, este acabou contemplando tal teoria.

Nos termos do art. 478 do Código brasileiro de 2002, “[n]os contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.”

O art. 479, por sua vez, à luz do princípio da conservação do negócio jurídico, estabelece que “[a] resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.”

Como se vê, a teoria da onerosidade excessiva, no Direito brasileiro, admite a resolução do contrato, a pedido da parte prejudicada, ou a sua revisão, se a parte beneficiada se oferecer para restabelecer o equilíbrio contratual.

Vale lembrar que resolução do contrato é a sua extinção sem cumprimento.

Conforme explicamos no Curso de Direito Civil, em caso de aplicação da teoria da onerosidade excessiva, além dos pressupostos para a aplicação da teoria da imprevisão, exige-se, ainda, que se demonstre “(5) uma situação de grande vantagem para um contratante, e, (6) em contrapartida, uma situação de onerosidade excessiva para o outro”.

Aplicação das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva e a pandemia do coronavírus

Em síntese, havendo alteração imprevisível das circunstâncias do momento da contratação durante o curso de contrato de execução continuada ou diferida, que cause desequilíbrio entre as prestações, pode a parte prejudicada pleitear a revisão do contrato, por aplicação da teoria da imprevisão (art. 317 do CC/02).

Quando o desequilíbrio for tal que torne o contrato excessivamente oneroso para uma das partes — e, por conseguinte, excessivamente vantajoso para a outra —, pode a parte prejudicada, ademais, pleitear a resolução do contrato, por aplicação da teoria da onerosidade excessiva (art. 478 do CC/02), com o que o contrato se extinguirá sem cumprimento.

Nesse caso, se a parte beneficiada se dispuser a restabelecer o equilíbrio entre as prestações, poderá o juiz, à luz do princípio da conservação do negócio jurídico e com fundamento no art. 479 do Código, apenas revisar o contrato, em vez de resolvê-lo.

Voltemos, agora, ao caso do contrato celebrado entre a Faça Festas e a Negócios Imobiliários.

Primeiramente, observe-se que a locação é negócio jurídico de execução continuada — pressuposto (1).

Ademais, veja-se que, com a proibição da realização de eventos em março de 2020, foram alteradas as circunstâncias da execução do contrato, com relação às circunstâncias do momento da celebração — pressuposto (2).

Além disso, constata-se que, quando da contratação, em março de 2019, era imprevisível a pandemia do coronavírus em 2020 — pressuposto (3). Vale lembrar que os primeiros casos de COVID-19 e a descoberta do SARS-CoV-2 somente ocorreram no segundo semestre de 2019.

Por fim, com a proibição da realização de eventos, o espaço alugado praticamente não terá utilidade para a locatária, causando significativo desequilíbrio entre as prestações do contrato — aluguel de R$ 30.000,00 por espaço que não pode mais ser usado para o fim para o qual foi locado — pressuposto (4).

Conclui-se, pois, que poderia a Faça Festas Ltda. pleitear a revisão do contrato de locação, com base na teoria da imprevisão (art. 317).

Imaginemos, por exemplo, que, para manter o valor do aluguel que foi acertado por oito anos, na expectativa de que a proibição não se estenda por muito tempo, a Faça Festas considere que seria melhor pedir a revisão contratual, para reduzir o valor do aluguel durante a manutenção da proibição da realização de eventos.

Ocorre que a proibição da realização de eventos, decorrente da pandemia, causou não apenas significativo desequilíbrio, mas tornou o contrato excessivamente oneroso para a Faça Festas, que terá que pagar aluguel por um imóvel que não poderá usar para o fim contratado — pressuposto (5) —, e excessivamente vantajoso para a Negócios Imobiliários, que receberá aluguel por um imóvel que não será usado — pressuposto (6).

Veja-se: dada a quase total inutilidade do imóvel para a Faça Festas e o elevado valor do aluguel ajustado, não há dúvida de que se trata de hipótese de onerosidade excessiva.

Sendo assim, caso prefira, pode a Faça Festas pleitear a resolução do contrato de locação, com base na teoria da onerosidade excessiva (art. 478).

Se a Negócios Imobiliários propuser a não cobrança de aluguel enquanto perdurar a proibição da realização de eventos no município, poderá o juiz, então, decidir pela revisão do contrato, conservando-o, com o equilíbrio restabelecido.

Não deixe de consultar o Curso de Direito Civil para esclarecer suas dúvidas sobre temas de obrigações e contratos, e sobre o Direito Civil em geral.

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