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DIREITO MÉDICO

Henderson Fürst

Henderson Fürst

04/07/2023

Um dos marcos do início da civilização humana é um fêmur quebrado que foi calcificado.1 Isso porque, diante de um cenário hostil à sobrevivência de um dos seres mais frágeis, uma perna fraturada representaria poucas chances de resistência, e se houve a possibilidade de calcificar, é porque alguém cuidou dela para que pudesse se recuperar.

É assim que podemos contar que os cuidados da saúde surgem como reflexo da própria civilização humana, pois é a capacidade de cuidado de seus membros que possibilitava que as comunidades se desenvolvessem. É possível observar até mesmo que o desenvolvimento da democracia está de algum modo relacionado ao desenvolvimento da própria medicina.2

Para que o cuidado pudesse ser melhor aplicado, bem como o seu conhecimento desenvolvido, parte da comunidade passou a abdicar-se de tarefas rotineiras de subsistência, dependendo de permutas entre si. A estruturação metodológica e o crescimento social demandarão também uma melhor organização, que implicará no surgimento das primeiras escolas de ofício em saúde na Idade Média em Montpellier (1181), Londres (1123), Bologna (+-1200), Oxford (1220), Siena (1245), Coimbra (1290), Florence (1321), Praga (1348), Pádua (1399), entre outras. Também outras atividades relacionadas à saúde irão se organizar em ofícios, como o boticário, o protético, o dentista, e demandarão escolas, bem como fornecedores de matérias-primas e materiais dos mais distintos. E eis o modo como, em grandes saltos históricos, configura-se o que é o universo das atividades relacionadas à saúde.

Assim, quando falamos nos cuidados da saúde, nos referimos a um complexo ecossistema que abarca muito mais que a oferta de serviços de consultas e cirurgias. Por trás de cada ato exercido por profissionais de saúde há um complexo fluxo econômico que envolve desde a produção de conhecimentos até a produção tecnológica de fármacos, próteses, insumos cirúrgicos, equipamentos de diagnóstico por imagem, de proteção individual, passando por sua distribuição adequada, controle de qualidade, de custo x benefício, entre outros detalhes.

Para compreender esse complexo ecossistema, é possível abordar vários aspectos e facetas, com diversos recortes, que possibilitarão diferentes análises. Uma delas, por exemplo, é a análise jurídica do custeio desse complexo ecossistema, que se dá de várias formas – no Brasil, por exemplo, tem-se a coexistência de um sistema de cobertura universal de saúde (o Sistema Único de Saúde) com o sistema suplementar de saúde, além de iniciativas filantrópicas e de caridade; em outros lugares, apenas a iniciativa privada, eventualmente coexistindo com o seguro de saúde comunitário, entre outras inúmeras combinações possíveis; e, claro, sempre estará presente a própria pessoa que recorre ao ecossistema para ter acesso à saúde custeando individualmente.

Todavia, por mais complexo que seja, há uma unidade matricial de relações, que é a base de todo ecossistema de cuidados em saúde, que remete ao primitivo fêmur quebrado e calcificado: a relação entre paciente e profissionais de saúde.

A tão chamada “relação médico-paciente” compreende um complexo de atos, manifestações, dilemas, problemas e incidências normativas que, na prática do dia a dia, passou-se a se chamar de Direito Médico.

O Direito Médico usualmente é tratado como uma nova área do direito. Certamente é uma nova área de atuação profissional do direito, com crescente demanda tanto preventiva quanto contenciosa, seja na esfera ético-profissional, seja na cível ou ainda na criminal.

Mas, enquanto ciência, o Direito Médico é uma nova área jurídica? Apenas se considerarmos um paradigma pós-positivista e funcionalista é que poderemos considerar que, sim, o Direito Médico é uma nova área do direito.

De forma didática, seria como um recorte temático e transversal de todo o direito, pois, como se verá na obra que tenho o privilégio de prefaciar, o Direito Médico lida com a incidência normativa de todas as áreas do direito na relação médico-paciente e precisa lidar com a complexa análise do suporte fático para interpretar adequadamente o suporte normativo. Disso falaremos adiante.

Para compreender como o Direito Médico só pode ser formulado num paradigma pós-positivista e funcionalista, vamos nos restringir à análise do postulado da aplicação de um método. Para o paradigma positivista fundado no cartesianismo, é imprescindível que se adote um método apropriado, uma vez que a segurança e a validade do resultado do pensamento científico são dadas pelo método, que também confere coerência e sentido à operação científica, e o postulado racionalista pressupõe um direito coerente, preciso, completo, não redundante, decisível e logicamente derivável.3

Como postulado do racionalismo, a estrutura de construção científica do direito também passou a se pautar pela fragmentação do conhecimento, reduzindo o fenômeno jurídico a partes menores determinadas por problemas mais específicos determináveis por métodos igualmente mais específicos. Surgem as áreas específicas do direito com suas particulares formas de estabelecer postulados de representação do mundo, ou seja, cada qual com uma estrutura normativa própria, cujo conteúdo é reconhecidamente daquele fragmento científico do direito. Essa é a característica marcante do racionalismo legado às ciências positivistas: a simplificação do mundo para melhor compreendê-lo – é preciso separar o mundo em partes para compreender o todo.4

No caso do Direito Médico, não se pode falar em uma fragmentação do fenômeno jurídico para melhor compreendê-lo, tampouco estamos diante de um conteúdo científico que fora simplificado para melhor determinação do método ao qual deve ser aplicado. Antes, o objeto do Direito Médico é um problema sistêmico apresentado pela sociedade civil ao qual toda a ciência jurídica articula seu conhecimento e métodos para tentar compreender e sistematizar normativamente. Dessa forma, o Direito Médico demanda conhecimentos específicos de cada área cartesiana do direito, bem como a interação entre cada uma delas.

Um exemplo dessa articulação específica e conjunta é dado pelo caso do testamento vital, ou diretrizes antecipadas de manifestação de vontade. Articula-se especificamente o conhecimento do direito civil para saber a natureza jurídica e os requisitos de existência, validade e eficácia, para perquirir se há como encaixar tal modalidade de manifestação de vontade para quando não se é possível manifestar sobre questões existenciais dentro de normativas preexistentes e se os formalismos que existem são aplicáveis também a tal modalidade de manifestação, bem como se é possível desconsiderar tais formalidades para caso de uma manifestação explícita, como é o caso das pessoas que, não querendo ser ressuscitadas em caso de colapso cardiorrespiratório fora do ambiente hospitalar, tatuam no peito a decisão “DNR” (Do Not Ressucitate). Tal manifestação de vontade seria suficientemente válida para ter os efeitos de uma diretriz antecipada de vontade? E se, ao ser encontrada, a pessoa portadora de uma tatuagem DNR estivesse vestindo uma camiseta de ativismo “pro-life choice”, corrente de ideologia favorável à manutenção da vida em qualquer forma e estágio (sendo, por exemplo, contrária ao aborto, à eutanásia etc.)? A articulação conjunta de conhecimento ocorreria quando questionada a conduta do médico que deixasse de salvar a vida de tal paciente. Teria ocorrido omissão de socorro da qual decorreu homicídio culposo? Ou então seria atípica, ou talvez não se possa alegar antijuridicidade diante da dúvida, ou ainda alegar a culpabilidade do agente?

O Direito Médico não pode, portanto, ser compreendido no paradigma positivista de bases racionalistas. A complexidade do suporte fático demanda igualmente abordagem complexa e integral do conhecimento jurídico, o que só pode ser realizado por meio do paradigma pós-positivista de bases hermenêuticas5.

A maneira de estruturar o Direito Médico tampouco pode ser com base nas clássicas formulações do conhecimento científico jurídico específico, segundo princípios e sistemas normativos que representem os dogmas do conhecimento positivo de completude do ordenamento para lidar com aquele fato. Deve ser proposto como uma função do conhecimento jurídico em torno dos problemas apresentados pela relação médico-paciente.

A área, como se pode ver, é apaixonante. Mas já antecipo que não é mais apaixonante que a Bioética – minha primeira área de formação. Deixo aos leitores a missão de descobrirem por si sós por qual se apaixonam mais. Ao citar a Bioética aqui, faço com o intuito de que o estudo do Direito Médico seja sempre – sempre! – feito conjuntamente com a Bioética, pois é o conhecimento que a humanidade desenvolveu que melhor nos auxilia a compreender adequadamente o suporte fático e interpretar corretamente o direito para aplicá-lo.

Tendo exposto estas reflexões preliminares, ficam evidentes as virtudes da presente obra para o estudo, aprimoramento e atualização do Direito Médico. Em primeiro lugar, Osvaldo Simonelli trouxe a leitura ampla do direito que se aplica à relação médico-paciente. Como se poderá notar, o autor aprecia tanto a responsabilidade civil quanto a criminal, além da ética e suas consequências recíprocas e complexas. Não se trata de apenas uma das análises, como é frequente que ocorra no direito brasileiro, mas de forma conjunta, sabendo que é uma área pós-positivista.

Da mesma forma, o autor traz ao leitor um capítulo inteiro sobre Bioética, explicando sua relevância e demonstrando como aplicá-la cotidianamente na adequada interpretação dos casos que, como se sabe, são cada vez mais inimagináveis e surpreendem pelos conflitos axiológicos que carregam em si.

E, como não fosse suficiente, o autor também avalia o fenômeno jurídico do conjunto das diversas relações médico-paciente e seus sistemas de financiamento, dando origem à análise dos sistemas de saúde, para que se saiba situar em qual contexto se encontra.

Por fim, outro ponto que quero destacar na leitura da obra de Simonelli é a suaindissociabilidade da prática. O autor escreve para pessoas reais, lidando com sofrimentos reais de pacientes e profissionais, e que precisam dar respostas. É um livro com respostas, não com angústias, e que irá caminhar lado a lado de seus leitores para ajudar na práxis cotidiana, bem como na formação de profissionais que possam lidar com a crescente demanda jurídica do sistema de saúde.

Com isso, espero que os leitores desta obra a apreciem tanto quanto eu apreciei ao lê-la pela primeira vez. É um privilégio ter sido seu primeiro leitor, tanto quanto é um privilégio compartilhar da amizade de Osvaldo em tempos tão interessantes, e nele tenho um constante interlocutor para minhas próprias incertezas teóricas em inéditas questões que surgem em Bioética e Direito Médico.

Boa leitura.7

Henderson Fürst
Doutor em Direito pela PUC-SP. Doutor e mestre em Bioética pelo CUSC. Professor de Bioética e de Direito Médico do Hospital Israelita Albert Einstein. Professor de Direito Constitucional da PUC-Campinas. Presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP, cargo que também ocupou no Conselho Federal da OAB. Diretor da Sociedade Brasileira de Bioética. Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina. Membro da CISS/Conselho Nacional de Saúde. Editor jurídico do Grupo Editorial Nacional

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