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A autonomia do médico durante a pandemia de Covid-19

Alessandra Varrone

Alessandra Varrone

30/03/2023

No início de 2020, o mundo foi tomado pelo rápido contágio do vírus covid-19 e, desde então, os profissionais da Medicina e cientistas de todo mundo batalham para recuperar a saúde daqueles acometidos pela enfermidade. Importantes debates bioéticos tomaram conta dos noticiários, consultórios médicos e hospitais, principalmente relacionados a autonomia do médico para prescrição de medicamentos para tratar essa enfermidade, o que levou, inclusive, a manifestação de entidades médicas sobre o assunto.

Em março de 2021, a Associação Médica Brasileira publicou um boletim em que condenou a prescrição e uso de alguns medicamentos que, segundo a entidade, não teriam eficácia contra a covid-19, posição institucional diferente daquela contida na publicação do mês de julho de 2020, em que assegurava a “autonomia do médico ao receitar os medicamentos”1.

Sobre o tema, por sua vez, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – CREMESP, em janeiro de 2021, publicou uma nota pública “reforçando que diretores clínicos, responsáveis técnicos e demais gestores não podem obrigar o médico a prescrevê-los. O Conselho também reforça a todos os médicos a necessidade de cautela para a prescrição desse e de outros tratamentos sem evidências científicas que comprovem sua eficácia, de forma a seguir o princípio bioético da não-maleficência”2

Também o Conselho Federal de Medicina se pronunciou sobre o tema e, por meio de nota oficial, reconheceu a autonomia do médico e do paciente na escolha do tratamento que lhe parece mais adequado, alertando, contudo, pela não isenção de responsabilidade do profissional nestes casos. Nesse mesmo sentido, em 2020, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução n. 04/20 em que estabelece o respeito a autonomia do médico que, em decisão compartilhada com o enfermo, pode eleger a terapia que julgar mais conveniente para o enfrentamento da doença3

Coleção método essencial

Autonomia do médico e conduta para tratamento de covid-19

Frente a ambivalência de entendimentos científicos e institucionais, fica a questão: qual deve ser a conduta do médico para o tratamento do enfermo de covid-19? 

Não existe solução pronta e automática para esta questão, o que demanda análise de várias normas que governam a bioética contemporânea.

É sabido que o diagnóstico, tratamento das doenças e reabilitação dos enfermos compõe o ato médico (art. 2º, inc. II e III da Lei de Atos Médicos), essencialmente relacionado aos seus juízos avaliativos e conclusivos, calcados no conhecimento profissional adquirido para o exercício da medicina. É certo, contudo, que a autonomia na prescrição medicamentosa ou no tratamento terapêutico escolhido pelo médico não é fruto de suas opiniões solipsistas visto que depende das conclusões e estudos que cientificamente reconhecem a eficácia e adequação de determinados tratamentos.

É a Medicina Baseada em Evidência4 que deve, na maioria das vezes, servir de bússola para as decisões médicas porque seus resultados são respaldados em múltiplos estudos prévios sobre determinadas patologias. Ocorre que, porque a Covid-19 se trata de um vírus novo, os cientistas e médicos de todo mundo navegam por águas desconhecidas e, embora tenham um mapa geral deste trajeto, desenhado pelas pesquisas feitas antes em situações e patologias parecidas, ainda não encontraram um protocolo médico definitivo sobre o melhor tratamento dos pacientes acometidos por esta doença. 

Princípios hipocráticos da não maleficência e da beneficência

Em situações como essa, diante da urgência que o caso reclama, a atuação médica deve ser regida pelos princípios hipocráticos da não maleficência e da beneficência para iluminar a conduta a ser adotada.

Influenciado pela ética utilitarista, o princípio hipocrático da beneficência propõe que a atuação médica deve se pautar em promover a otimização do bem-estar do paciente, de modo que, seu tratamento deve ser feito mediante emprego de todas as diligências possíveis colocadas à sua disposição.

Já o princípio hipocrático da não maleficência visa garantir e abonar a atuação médica, ainda que arriscada ou perigosa, mas desde que voltada ao tratamento do caso e não vise causar dano intencional ao paciente. Isso implica no dever médico de emprego de toda a técnica necessária para não causação de prejuízos ao enfermo.

A aplicação desses princípios médicos ganha um peso decisivo no tratamento dos pacientes com Covid-19 visto que, como dito acima, ainda não há pesquisas, fármacos e protocolos definitivos e eficazes para esses casos.

Esse quadro de imprecisão pode, para alguns, justificar a prescrição off label5de medicamentos ordinariamente empregados no tratamento de outras doenças, inclusive como modo de prevenir o contágio da Covid-19. Para outros, porém, o médico não deve assim proceder, pena de criar insegurança e riscos desnecessários à saúde do paciente.

Seja como for, tanto uma opção como outra deve ser ratificada dentro do espaço legítimo conferido pela autonomia profissional do médico, fundamental para lhe assegurar decisões pautadas pelas normas acima citadas, voltadas ao melhor tratamento para seu paciente e das quais, inclusive, deve partir sua eventual responsabilização. Isso implica que a escolha pelo protocolo empregado no tratamento do enfermo deve ser do profissional médico, adotado de forma conjunta e esclarecida com o paciente, sem coação ou ameaça de superiores hierárquicos, públicos ou privados.

Por isso vale lembrar que o médico “exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente” (inc. VII do Código de Ética Médica).

É certo que, independentemente da linha de entendimento considerada como mais correta, a fim de evitar o descrédito profissional e a ruína da saúde do paciente, é dever indeclinável do médico a busca de atualização científica, capaz de embasar adequadamente suas decisões visto que a medicina, mais que qualquer outra ciência do saber, está em constante alteração evolutiva. A autonomia profissional, naturalmente, não deve ser entendida como liberação irrestrita do profissional em prescrever medicamentos ou tratamentos, baseados apenas em opiniões totalmente subjetivas. O recurso terapêutico eleito deve ser reconhecidamente eficaz e benéfico à condição de saúde do paciente, sob pena de sua conduta ser compreendida como afronta ao princípio da não maleficência.

Qual seria então a conduta mais correta a ser adotada pelo médico? A resposta passa pela compreensão dos princípios bioéticos acima mencionados e dos deveres estabelecidos no Código de Ética Médica segundo o qual cabe ao médico “aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade” (inc. V dos Princípios Fundamentais).

O dever de atuação profissional do médico, principalmente em casos de patologias raras ou cujo tratamento seja incerto, como no caso envolvendo a Covid-19, deve ser regido pelo ponto de equilíbrio situado entre o desejo de tratar o paciente, que é regido pelos princípios hipocrático da beneficência e hipocrático da não maleficência, bem como pela necessidade de resguardo de sua autonomia profissional, orientada pelo dever de aprimoramento e atualização contínua.

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NOTAS

Associação Médica Brasileira diz que uso de cloroquina e outros remédios sem eficácia contra Covid-19 deve ser banido – AMB

CREMESP – Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo

3 Microsoft Word – Notaoficial.26.03.2021-B.docx (cfm.org.br)

4 SOUZA, Alessandra Varrone de Almeida Prado. Direito Médico, ed. JHMizuno, 2020.

5 São aqueles medicamentos indicados para tratar outras doenças que não somente as descritas na bula.

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