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REVISTA FORENSE
O direito de defesa no inquérito policial, de J. Canuto Mendes De Almeida

Revista Forense
26/08/2025
SUMÁRIO: I. Princípios fundamentais da ciência processual. Poder inquisitivo do juiz. Defesa contraditória. Instrução criminal provisória. II. Sumário de culpa. Inquérito policial. Pronúncia. Investigação. Regra constitucional. Conclusão.
Princípios fundamentais da ciência processual
1. Os problemas da ciência processual demandam, para satisfatória solução, em geral, invocação do significado de princípios fundamentais a que se acham tão vinculados, que, resolvê-los sem atenção a êstes, resulta em ingrata tarefa, fadada a lastimável fracasso. Visto como assim é, não há possibilidade de bem opinar sôbre a necessidade ou a conveniência de o indiciado participar da instrução criminal preliminar – quer instrução judicial, denominada “sumário de culpa”, quer instrução extrajudicial, chamada “inquérito policial” – sem que se invoque o influxo do princípio inquisitivo e do princípio do contraditório, com disponibilidade ou não, na regência da atividade processual, e sem que seja ressaltada, nas notas do respectivo significado, a da compatibilidade entre os dois princípios. Ninguém melhor do que CARNELUTTI soube dizê-lo: o juiz é livre das afirmações das partes “quando si tratta del se o del come esiste una norma di diritto“, mas, “per la posizione del fatto il giudice è, invece, vincolato alla attivitá delle parti (iudex judicare debet íuxta allegata et probata)”. Êste princípio – prossegue o mestre – pode-se representar “falando de um poderdedisposição“, que se manifesta correlato à vedação “de utilização, no processo (na sentença), do conhecimento particular do juiz, para, a formação do material de fato”: mesmo se o juiz sabe que as coisas são diversas das que as partes lhe narram, “não pode êle fazer uso de tal sua ciência para julgar (quod non est in actis non est de hoc mundo)”. As partes pertencem, então, com monopólio, os poderes de alegar e de provar, e são estimuladas a usá-los mediante os ânus de seu exercício, que convertem tais poderes em poderes-deveres processuais, porque exercidos sob estímulo de variadas sanções processuais imponíveis à parte abstinente. As partes cabem, assim, os ônus da postulação, da probação e, ainda, do impulso processual, e, afinal, dos recursos.
Eis como – ressalta o mestre – “si attua nel processo il principio dispositivo“: “as partes, monopolizando á iniciativa, dispõem da formação do material de fato, sôbre o qual o juiz decide”.
Se, entretanto, “iniciativa é concedida ao juiz, isso advém por fôrça do princípio inquisitivo”. Tenha sempre presente, o estudioso – recomenda êle – que o princípio dispositivo importa não só o poder mas também o ônus da parte, ao passo que “o princípio inquisitivo não exclui efetivamente que a parte possa desenvolver no processo determinadas atividades”, mas apenas impõe que, se a parte não a desenvolve, “seja vedado ao juiz supri-la”: não importa em “conferir monopólio ao juiz”, mas apenas em “tolher monopólio à parte”.
2. Na verdade, o caráter inquisitivo do processo penal há de consistir – e, sem dúvida, consiste – não em que necessàriamente a autoridade monopolize poderes, mas em que as partes não os monopolizem.
Repugna à natureza do interêsse penal – que é impessoal, de todos os membros da comunhão social, e, ao mesmo tempo, pessoal, do eventual penado ou penando – que sua realização, através do processo, mediante a concretização do comando da lei, possa ficar à discrição da autoridade e, muito menos, ao arbítrio dispositivo de particulares, como são qualquer pessoa do povo, o ofendido ou o ofensor.
Nessas considerações repousa a justificativa do poder-dever inquisitivo do juiz da sentença penal, no curso da instrução definitiva.
A necessidade ou a conveniência de atribuir poder inquisitivo à autoridade não colide, pois, como é óbvio, com a necessidade ou a conveniência de atribuir também poderes-deveres processuais às partes, com maior ou menor intensidade, ou processuais e funcionais ao Ministério Público, consoante razões de justiça penal ou de justiça processual penal aceitas como tais pelo legislador de cada país.
Assim é que, no Brasil, o juiz criminal nunca perde seu poder inquisitivo, perante os poderes-deveres processuais do acusador e do defensor, no processo da ação penal.
A contrariedade das partes, na instrução definitiva, não é dispositiva, em face do poder-dever inquisitivo do juiz, da sentença condenatória ou absolutória. Uma vez que a êste cabe certificar-se da verdade real, objetiva, exterior e anterior ao processo, a estrutura do contraditório processual penal submerge-se, por absorção, na atividade inquisitiva do magistrado, sem que, com isso, deixe de existir. E, assim, a contrariedade opera sem que, por existir, monopolize as iniciativas processuais; e não deixa de existir pelo fato de carecer de monopólio.
Defesa contraditória
Frisantes exemplos revelam, em nossas leis, a compatibilidade da espontaneidade judiciária com a plenitude de defesa contraditória.
3. Com efeito, quanto à acusação:
a) o juiz singular é obrigado, antes da sentença, a corrigir ou a fazer corrigir a postulação acusatória, “em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa”; “baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de oito dias, fato; e, se quiser, produza prova, “podendo ser ouvidas até três testemunhas” (art. 384); na possibilidade de que isso “importe aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia ou a queixa” parág. único do art. 384); salvo nas sanções privativas do ofendido;
b) o juiz singular é obrigado a integrar a probação, cabendo-lhe, “no curso da instrução, ou antes de proferir a sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sôbre ponto relevante” (art. 156); “formar o corpo de delito, mediante exame pericial, bem como determinar quaisquer outras perícias” (arts. 158 a 183); qualificar e interrogar o acusado (arts. 185 a 196); ouvir o ofendido, que “será qualificado e perguntado sôbre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar” (art. 201), inquirir testemunhas “quando julgar necessário”, “além das indicadas pelas partes” (art. 209); se “tiver notícia da existência de documento relativo a ponto relevante”, determinar de ofício, isto é, independentemente do requerimento de qualquer das partes”, as providências cabíveis “para sua juntada aos autos, se possível” (art. 234); e, afinal, antes de decidir, “ordenar diligências para… suprir falta que prejudique o esclarecimento da verdade” (art. 502);
c) o juiz-presidente do Tribunal do Júri, ainda, tem o dever de, a qualquer tempo, “ordenar, de ofício,… as diligências destinadas a… suprir falta que prejudique o esclarecimento da verdade” (art. 497, inc. XI); e, especialmente, não poderá marcar dia para o julgamento sem, antes disso, ordenar “de ofício… as diligências necessárias para… esclarecer fato que interesse à decisão da causa” (art. 425); durante a reunião do júri, “se a verificação de qualquer fato, reconhecida essencial para a decisão da causa, não puder ser realizada imediatamente, o juiz dissolverá o conselho, formulando com as partes, desde logo, os quesitos para as diligências necessárias” (artigo 477).
4. Quanto à defesa:
a) o juiz permanece constantemente vinculado às circunstâncias absolutórias ou minoratórias de pena estabelecidas em lei – no Cód. Penal e no Cód. de Proc. Penal – sem se restringir àquela ou àquelas que o réu ou seu defensor ou ambos, com adequação ou inadequação, entenderem de argüir na “contrariedade” ao libelo ou à denúncia ou queixa, ou, ainda, na defesa oral;
b) o presidente do Júri e os jurados podiam, expressamente, consoante antigas leis do Júri, solicitar inclusão, no questionário, de quesitos de defesa não pleiteados pelo réu ou pelo seu defensor, mas, hoje, como quer que seja, o presidente do Júri pode e deve declarar o réu indefeso, para que os jurados não permaneçam vinculados à contingência de resposta a inadequado quesito de defesa, proposto pelo réu ou seu defensor, e possam, assim, mediante argüição mais adequada, proposta pelo defensor dativo, consultar melhor os reclamos da verdade real objetiva.
5. Instrução criminal é atividade de informar-se a autoridade sôbre a infração, com tôdas as suas circunstâncias. Dela depende a imposição da pena ou a aplicação da medida de segurança, em seus aspectos positivos (condenação) e negativos (absolvição, e, então, se denomina instrução definitiva. Entretanto, dela depende, também, liminarmente, a sujeição ou não do indiciado à acusação, e, nesse caso, se chama instrução provisória ou preliminar, ou, ainda, curtamente, “instrução criminal”, em sentido estrito.
Uma informação suficiente sôbre o fato e a autoria exprime, pois, o motivo dessas duas atividades consecutivas, através das quais a autoridade se instrui acerca da verdade objetiva, seja para aplicar a lei penal, absolvendo ou condenando, seja para cumprir a lei processual penal, mesmo antes, admitindo ou não a acusação.
Instrução criminal provisória
Na técnica do direito brasileiro, essa atividade de instrução criminal provisória ou preliminar denomina-se “formação da culpa”, isto é, formação da acusação, mediante apuração do fato e da autoria.
Sumário de culpa
Convém não confundir “formação da culpa” com o “processo da formação da culpa” judicial, denominado “sumário de culpa” ou “sumário da pronúncia” na tradição de nossa doutrina, legislação e jurisprudência.
Com efeito, a formação da culpa, isto é, a apuração do fato, e da autoria, onera-se, atualmente, mediante “sumário de culpa” apenas nos processos de competência do Tribunal do Júri. Sustentar-se que, à vista dessa restrição, não há formação da culpa nos processos de competência do juiz singular corresponderia a aceitar que, nestes, a acusação poderia assentar no arbítrio dispositivo do acusador, denunciante ou querelante, e que, portanto, o juiz, na apreciação do ato de acusação, expresso pela denúncia ou queixa, deveria curvar-se mesmo à leviandade ou à calúnia manifestas, impedido de guiar-se no recebe-la ou no rejeitá-la pelas justas imposições da verdade real, objetiva, anterior e exterior ao processo.
Inquérito policial
Não obstante a inexplicável estranheza de certos magistrados e de muitos promotores públicos, heresia jurídica é afirmar-se que o Ministério Público, quando oferece denúncia, e mesmo o particular ofendido, quando apresenta queixa, nas ações públicas, não são mais obrigados a submeter à apreciação do juiz “razões de presunção ou de convicção” (expressamente exigidas pelas leis e decretos anteriores ao vigente Cód. de Proc. Penal, em relação à exposição dos fatos contida na inicial. O certo é que, como melhor se demonstrará adiante, o inquérito policial também exprime, por sua finalidade, atividade de formação da culpa, visto como seus resultados objetivos é que servem de base à denúncia ou queixa.
A instrução criminal provisória ou preliminar, no Brasil, distingue-se, pois, em dois estágios, nos processos de competência do Tribunal do Júri, um extrajudicial, que é o inquérito policial, e outro judicial, que é o sumário de culpa; e compreende nos processos de competência do juiz singular, tão-só, o inquérito policial, inclusive o corpo de delito.
6. Instrução definitiva ou instrução provisória, preliminar, seja judicial, seja extrajudicial, a autoridade competente para apreciá-la é sempre a judiciária, quer para proferir sentença penal, quer para admitir ou não a acusação. Sujeito passivo da instrução criminal, a autoridade seria também seu exclusivo sujeito ativo, num sistema processual inquisitivo puro. Mas, num sistema processual contraditório puro, incompatível com o caráter público do interesse penal e do interêsse processual penal, o acusador e o acurado, na instrução criminal definitiva, o denunciante ou querelante e o denunciado ou querelado, ou ainda o requerente e o requerido, na instrução criminal provisória, seriam seus exclusivos sujeitos ativos.
Ora, o processo da instrução criminal definitiva é cercado das necessárias garantias jurisdicionais, como sejam, promover-se e mover-se fio âmbito jurisdicional, e desenvolver-se com participação das partes, em contrariedade, porquanto, por exigência constitucional, ninguém pode ser condenado sem ser ouvido: “é assegurada aos acusados plena defesa, com todos os meios e recursos essenciais a ela” (§ 25 do art. 141 da Constituição). Essa participação do acusado, e de seu acusador, num sistema processual contraditório puro, reduziria o juiz à inércia jurisdicional, incompatível com a índole publicista do processo penal. No sistema misto, que, sendo o da maioria dos países civilizados, é também o brasileiro, a contrariedade das partes, como vimos acima, desenvolve-se sem restrições ao poder-dever inquisitivo do juiz. Na instrução criminal definitiva, a atividade contraditória, de acusador e de acusado, conjuga-se funcionalmente com a atividade inquisitiva do juiz ou, mesmo, do Tribunal do Júri. Satisfaz-se, assim, a plenitude de defesa, por obstados quaisquer efeitos processuais sm oportunidade de o réu contrariá-los, e mantém-se o devido respeito, entretanto, ao poder-dever inquisitivo, em salvaguarda da verdade real.
Pronúncia
7. A história nos ensina, pois, que a instrução criminal, quer definitiva, quer preliminar, depende ou pode depender de se descobrirem antes as circunstâncias da prática da infração, encobertas, inclusive qual o seu autor ou quais os seus autores. Quando, outrora, se distinguiam as “devassas” em gerais e especiais, as gerais se tiravam “sôbre delitos incertos”, e as especiais “supunham a existência do delito de que só é incerto o agrêssor”. “Provado do crime, e descoberto o seu autor, segue-se então a pronúncia”, isto é, “a sentença do juiz, que declara o réu suspeito do delito que faz objeto da devassa, ou da querela contra êle dada, e o põe no número dos culpados”, ensinava PEREIRA E SOUSA.
O direito público moderno distingue, na atividade administrativa, seu conteúdo obrigatório, vinculado às expressas determinações da lei, de seu conteúdo discricionário, facultado à escolha do agente pelas indeterminações da lei: exprimem êles a regência, nas atribuições funcionais, do princípio de legalidade e do princípio da discrição administrativa.
O direito público moderno, ainda no âmbito do direito judiciário, distingue, também, na mesma proporção, por assim dizer, na atividade dos agentes da causa, de um lado, em relação às autoridades estatais, seu conteúdo obrigatório, vinculado à lei, e seu conteúdo discricionário; e, de outro lado, seu conteúdo dispositivo, facultado ao arbítrio dos interessados, embora sob sanções estimuladoras e controladoras, estabelecidas ou permitidas pela lei: exprimem a regência, no processo judiciário, do princípio de legalidade, ou de indisponibilidade, e do princípio de disponibilidade.
Quando, em determinados momentos históricos e determinados países, o legislador decide coartar o arbítrio dos interessados na movimentação do processo, tolhendo-lhe o ônus do impulso e da direção processual, impõe exclusiva ou inclusivamente a órgão de autoridade o dever deoficio de promover e mover a atividade judiciária, e de lhe imprimir sentido, tudo na forma da lei.
O processo inquisitivo, quer do tipo canônico, quer do tipo atual, exprime, manifestamente, penetração do princípio de legalidade no comportamento do outrora juiz eclesiástico, e dos atuais juízes e tribunais criminais. A obrigação de agir, de como agir e de quando agir, em face do caso concreto que, conforme a lei, desencadeia necessàriamente a atividade do Estado, distribui-se ou não, em dado processo, por um ou mais órgãos de autoridade, quer se chamem juízes ou tribunais criminais, juízes ou tribunais de instrução criminal, quer se denominem promotores públicos ou delegados de polícia.
O impulso processual, como é óbvio, não se confunde com a direção processual. Assim é que, no processo civil, a fixação dos contornos do litígio incumbe às partes na postulação e inflige direção ou conteúdo ao comportamento do juiz. A inércia jurisdicional, em função dos ônus processuais das partes, mostra claramente que a instância não flui por impulso automático, mas por impulso heteromático.
Ora, no processo penal das Ordenações do Reino, o “juiz ordinário”, ou “juiz de fora”, que era o juiz criminal, inquisitivo, não gozava de discrição funcional, nem às partes se concedia disponibilidades sôbre a causa: estas não tinham o monopólio do impulso processual, visto como o juiz, com “querela” ou sem “querela”, de interêsse público ou de interêsse privado, tinha o dever de instaurar, de ofício, o processo preliminar da formação do corpo de delito e, mediante “devassa”, o processo liminar da formação da culpa, que produziam, através da pronúncia, a obrigação concreta de defender-se o réu de acusação criminal.
As “devassas” tiravam-se nos casos expressamente determinados nas leis e consistiam, segundo definição de PEREIRA E SOUSA, em “informação do delito tornado por autoridade do juiz para castigo dos delinqüentes e conservação do sossêgo público”.
Tal era a preocupação do legislador reinol, de anular qualquer discrição funcional do juiz, positiva ou negativa, que não pertencia à sua escolha instaurá-las e deixar de instaurá-las, segundo os reclamos da verdade real, sôbre o fato e sôbre a autoria.
Se o juiz processasse a “devassa” sem prévio corpo de delito, ou sem prévia “denúncia”, ou, na falta desta, sem preliminares indícios de autoria, nula era a “devassa” e, por via de conseqüência, nulo era também o processo contraditório do livramento-crime, com acusação e defesa, que a ela se seguisse. Se, procedente o corpo de delito e oferecida denúncia, ou ocorrentes legítimos indícios, o juiz permanecesse inerte, omisso, na instauração da “devassa”, incorria em responsabilidade disciplinar e penal, conforme o grau de má-fé pôsto na falta.
A “denúncia” incumbia a qualquer do povo, correspondendo, pois, àquilo que, no nosso direito vigente, representa a “comunicação de crime” feita por qualquer pessoa: era “a declaração do crime público feita em Juízo para se proceder contra o delinqüente por Ofício da Justiça”. Exigia-se do denunciante, “por solenidade do ato, o juramento”, mas o denunciante não era obrigado a fazer prova do crime que denunciava. Essa obrigação pertenceria ao acusador, isto é, àquele que, querendo acusar, a isso se habilitasse, nos casos admitidos, mediante querela, seguida do sumáriodequerela, uma sumária inquirição das testemunhas arroladas pelo querelante. Havia a “querela de interêsse público”, que qualquer pessoa do povo podia dar, como meio de constituir-se acusador, salvo nos casos de adultério, de feridas ou nódoas de que não resultasse aleijão, ou deformidade, e de cortamento de árvores frutíferas; e “querela de interêsse particular”, cabente ao ofendido.
Podia proceder-se à “querela” e à “devassa” pelo mesmo crime, porque se entendia, que o, procedimento da Justiça não tirava o direito do querelante, popular ou particular, mas, não devendo o réu ficar sujeito a dois livramentos pelo mesmo fato, incumbia a um dos juízes, quando fôssem dois, avocar os autos do segundo processo, para promover a unidade.
Tudo isso demonstra que, em confronto cem a espontaneidade obrigatória do juiz, desenvolvia-se a faculdade de impulso processual da parte. Mas – e isso convém focalizar – a direção ou conteúdo do processo, impondo-se ao juiz inquisitivo, na “devassa”, superava o arbítrio da parte, usado na “querela”. O processo não deixava de ser inquisitivo pela circunstância de o querelante ser titular da pretensão acusatória. O conteúdo da acusação, deduzido por querelante popular ou por querelante particular, vinculava-se, sempre, aos resultados da devassa ou do “sumário da querela”, decididos na “pronúncia”. Pronúncia era “a sentença do juiz que declara o réu suspeito do delito que faz objeto da devassa ou da querela contra êle dada, e o põe no rol dos culpados”.
8. O processo da instrução criminal provisória ou preliminar, porém, não deve necessàriamente ser-cercado de garantias jurisdicionais. Mas pode delas ser dotado, por determinação do legislador, sem prejuízo de sua finalidade específica, a de formar a culpa, dando à acusação bases objetivas.
A Constituição, entre nós, determina que a plenitude de defesa se assegure “desde a nota de culpa, que, assinada pela autoridade competente, com os nomes do acusador e das testemunhas, será entregue ao prêso dentro em 24 horas”; e completa: “a instrução criminal (isto é, a instrução criminal preliminar) será contraditória”.
Nada mais fêz o legislador pátrio, nesse dispositivo fundamental, do que guardar fidelidade à tradição de nossas leis imperiais.
É certo que, no lembrado regime das Ordenações, a instrução criminal provisória, no processo ordinário, contida na inquirição-devassa ou no sumário da querela, as quais serviam de base à pronúncia, fôra exclusivamente inquisitiva. Quando, contudo, o Cód. de Proc. Criminal, suprimidas as “devassas” e as “querelas”, substituiu-as pelo “sumário de culpa”, a instrução criminal provisória ou preliminar que êste passou a exprimir, instituiu-se com certa medida de defesa através do disposto no art. 142 do Cód. de Proc. Criminal de 1832: “estando o delinqüente prêso ou afiançado, ou residindo no distrito, de maneira que possa ser conduzido à presença do juiz, assistirá à inquirição das testemunhas, em cujo ato poderá ser interrogado pelo juiz, e contestar as testemunhas sem as interromper”. O juiz deveria mandar “ler ao “réu – art. 98 – tôdas as peças comprobatórias do crime”, e, dentre as perguntas, indagar “se tem fatos a alegar, ou provas que justifiquem, ou mostrem sua inocência”. “Tôda a vez que o réu – art. 97 – levado à presença do juiz, requerer que as testemunhas inquiridas – em sua ausência sejam reperguntadas em sua presença, assim lhe será deferido, sendo possível”.
II
1. A instituição do “sumário de culpa”, antes mesmo do Cód. de Proc. Criminal, preocupara os legisladores pátrios.
“Os autos sumários da formação da culpa” – dizia um projeto apresentado à Câmara dos Deputados do Império, a 5 de novembro de 1827 – “feitos pelo juiz de paz nos seus bairros, ou exofficio, ou a requerimento de parte, serão as únicas bases das acusações criminais” (o grifo é nosso); e terminava por declarar abolidas as devassas, as querelas e os sumários sem limitação de tempo, como se nunca tivessem existido”. A lei de 15 de outubro, criando os juizados de paz, incumbira aos juízes de paz, dentre outras atribuições, formar corpo de delito e de, indiciado o delinqüente, conduzi-lo à sua presença, para interrogá-lo à vista dos fatos existentes e das testemunhas, mandando escrever o resultado do interrogatório; e, provado, com evidência, quem fôsse o delinqüente, fazê-lo prender, de acôrdo com a lei, remetendo-o imediatamente ao juiz criminal respectivo. A proposta de “Cód. de Proc. Criminal” apresentada, em sessão de 20 de maio de 1829, pelo ministro da Justiça LÚCIO SOARES TEIXEIRA GOUVEIA, em substituição a vários projetos totais ou parciais pendentes de debates, continha, no art. 169, a regra seguinte: “por dois modos se legalizarãoosdelitos, a saber: por devassa e por sumário”. A devassa limitar-se-ia, consoante o art. 170 dessa proposta, aos crimes de morte e aos de pena capital, ouvindo-se nêle 30 testemunhas, fora as referidas; e, rezava o art. 172, “todos os mais crimes serão legalizados por sumários de três a oito testemunhas, à proporção do caso e da população do lugar”.
A criação do “sumário de culpa”, pelo Cód. de Proc. Criminal, satisfez, assim, o propósito do legislador pátrio, de que êle constituísse base da acusação criminal, e, mais do que isso, a única base da acusação criminal.
A instruçãocriminal (preliminar) pois, considerada como atividade de formação da culpa, isto é, de determinaçãoda base da acusação criminal, ou melhor, o “sumário de culpa”, no regime de 1832, compreendeu as atribuições do juiz de paz, no respectivo distrito de paz, de: formar auto de corpo de delito, direto ou indireto; e tomar primeiras informações, para obter conhecimento de quem fôsse o delinqüente (art. 149), de modo a poder selecionar e inquirir “de duas até cinco testemunhas que tiverem notícia do delito e de quem seja o criminoso” (art. 140). Instaurava-se quando “apresentada a queixa ou denúncia” (art. 140) ou, “nos casos de denúncia, ainda que não haja denunciante” (art. 141).
A preocupação dos liberais dos primeiros tempos do Império era a de, suprimindo as “devassas” e as “querelas”, banir do rol das nossas instituições, não a instruçãocriminal (preliminar), a qual, determinando as bases da acusação, forma a culpa ao delinqüente, mas o segrêdo da interminável inquirição de 30 testemunhas e a denegação de qualquer prerrogativa de defesa nessa fase do processo criminal. As 30 testemunhas da “devassa” eram juridicamente relevantes, uma vez que, escritos seus depoimentos, serviam êsses de fundamento à pronúncia, conjugados à prévia formação do corpo de delito, direto ou indireto. O Cód. de Proc. Criminal, de 1832, estatuiu, pois, que não se escreveriam mais os depoimentos de 30 testemunhas, nem mesmo os de tôdas as testemunhas, embora fôssem inferiores a 30, mas apenas – limitação quantitativa – “de duas até cinco” que – limitação qualitativa – tivessem “noticia da existência do delito e de quem seja o criminoso”. O denunciante ou queixoso, consoante o disposto no art. 79, § 5°, deveria nomear “todos os informantes e testemunhas”; e o juiz, art. 80, deveria ainda “fazer ao denunciante ou queixoso as perguntas que lhe parecerem necessárias para descobrir a verdade, e inquirir sôbre elas testemunhas”, isto é, para poder selecionar, sem dúvida, aquelas “duas até cinco”, únicas relevantes, porque, no imperativo do art. 140, deveriam, exclusivamente, ter seus depoimentos tomados por têrmo (primeira inovação), perante o “delinqüente prêso ou afiançado, ou residindo no distrito, de maneira que possa ser conduzido à presença do juiz, em cujo ato poderá ser interrogado pelo juiz, e contestar as testemunhas sem as interromper” (segunda inovação). “Tôda a vez que o réu, levado à presença do “juiz, requerer que as testemunhas inquiridas em sua ausência sejam reperguntadas em sua presença, assim lhe será deferido, sendo possível” (art. 97).
A sabedoria do legislador assentava no propósito de negar valor, para a pronúncia, a depoimentos colhidos sem as necessárias garantias de defesa, como a publicidade das inquirições e a participação do indiciado. A preocupação de limitá-los, pelo número e pela eficácia, exprime a intenção de impedir que os males advindos de intermináveis trâmites prolongassem inùtilmente as aflições do indiciado e os labores do juiz sumariante.
Como quer que fôsse, o “sumário de culpa”, quer iniciado por efeito de denúncia ou queixa, quer de ofício, pressupunha indagações anteriores e irregistradas: para proceder “à inquirição de duas até cinco testemunhas” que tivessem “notícia da existência do delito e de quem seja o criminoso” (art. 140), o juiz de paz se devia entregar a pesquisas, às quais, por desnecessário, o legislador não fazia expressa referência: a seleção das “numerárias” não se poderia operar, sem que a autoridade sumariante tomasse informações mais amplas, em função do “sumário de culpa”, capazes de lhe permitir racional escolha das testemunhas que devessem jurar. A tarefa de atender urgentemente às providências conseqüentes à notícia da infração já então existia. O registro escrito de seus resultados, porém, é que recaía sôbre os elementos de convicção necessários ou úteis, fixáveis mediante o processo da formação de culpa. Êste, escrito, e aquelas, não escritas e subjacentes, constituíam atribuições da mesma autoridade.
2. Em 1841, passou o “sumário de culpa” para a competência dos chefes de polícia em tôda a província e na Côrte, e aos seus delegados nos seus respectivos distritos (art. 4°, § 1°, da lei de 3 de dezembro), bem como aos “subdelegados nos seus distritos” (art. 5°). Deveriam, além de “proceder a auto de corpo de delito”, “formara culpa aos delinqüentes”, segundo o disposto no Cód. de Proc. Criminal. Passaram, outrossim, para os juízes municipais, em concorrência com essas autoridades policiais, a mesma, “de proceder a auto de corpo de delito”, e a de “formar a culpa aos delinqüentes“; e, para os juízes de direito das comarcas, a de “formar a culpa aos empregados não privilegiados nos crimes de responsabilidade” (art. 25, inc. 1°).
Caberia, por isso, dai por diante, e expressamente, àquelas autoridades policiais, “remeter, quando julgarem conveniente, todos os dados, provas e esclarecimentos” que houvessem “obtido sôbre um delito, com uma exposição do caso e suas circunstâncias, aos juízes competentes, a fim de formarem a culpa” (art. 4°, § 9°, primeira parte), isto é, aos juízes municipais e aos juízes de direito.
O regulamento n. 120, de 1842, repetindo, frisou que “a atribuição de proceder a corpo de delito, compreendida no “§ 4° do art. 12 do Cód. de Proc. Criminal” (art. 3°, inc. 1°) e a de “proceder a auto de corpo de delito e formarculpa” (arts. 198, inc. 1°, e 212, inc. 1°), passavam para a competência do chefe de polícia e dos delegados e subdelegados (arts. 58 e 62). Os chefes de polícia as exercerão por si mesmos e imediatamente – dispunha o art. 59 – mas, apenas e tão-só, “dentro do têrmo da capital em que residirem” E “nos outros”, “sòmente quando nêles se acharem, ou por intermédio de seus delegados ou subdelegados”. O art. 58, § 13, repetindo o art. 4°, § 9°, da lei, aludiu à referida “remessa”, que deveriam êles fazer, “tôdas as vêzes – art. 61 – que êsses casos se não apresentem revestidos de circunstâncias extraordinárias e tais que reclamem a atenção particular, e o conhecimento do chefe de polícia, e o emprêgo de meios amplos que tenha à sua disposição”, remessa de “instruções que o “mesmo chefe julgar conveniente dar, a indicaçãodastestemunhasquesouberemdofato, e de todos os indícios que se houverem descoberto, e ser acompanhada dos requerimentos, queixas e denúncias que houverem” (art. 61).
O art. 16, para isso, providenciava: “Os chefes de policia… para escrever os interrogatórios, provas e mais esclarecimentos que houverem de remeter para a formação da culpa, aos juízes competentes, na conformidade do § 9° do artigo 4° da lei de 3 de dezembro de 1841, e do art. 61 do dito regulamento, servir-se-ão dos empregados de sua Secretaria e para a dos negócios que pertencem à polícia judiciária, enumerados no art. 3° do mesmo regulamento, e dos criminais, servir-se-ão de qualquer dos escrivões que escrevem perante os juízes “municipais e subdelegados que julgarem conveniente. Em todos os casos, porém, estando fora da capital e seu têrmo, poder-se-ão servir dêstes últimos”. Aos juízes municipais, como autoridades policiais, o art. 64 dava as mesmas atribuições dos delegados de polícia. Os arts. 17 e 18 impunham aos delegados e subdelegados as mesmas obrigações do art. 16.
Como se pode perceber, através de tais dispositivos, o legisladorpátriocomeçava, então, a determinar o registro dos resultados das indagações anteriores, como mero auxílio à autoridade sumariante, prestado quando a primeira autoridade indagadora não fôsse ao mesmo tempo a competente para a formação da culpa, e devesse, por isso, informar-se para informar, mediante “provas e mais esclarecimentos que houverem de remeter, para a formação da culpa, aos juízes competentes“.
3. Quando, em 1871, a atribuição de formação da culpa passou para os juízes de direito e para os juízes municipais, por fôrça da lei n. 2.033 e do regul. n. 4.824, devendo ela ser exercida na comarca, ao invés de no pequenino distrito de paz ou policial, o legislador sentiu necessidade de ressalvar as atribuições para os delegados e subdelegados de polícia – dizia a lei n. 2.033 – de “em seus distritos, proceder às diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos e suas circunstâncias”; “transmitirão” – dizia a lei – “aos promotores públicos, com os autos de corpo de delito e indicação das testemunhas mais idôneas, todos os esclarecimentos coligidos; e desta remessa ao mesmo tempo darão parte à autoridade competente para a formação da culpa” (art. 10, § 1°). E o regulamento n. 4.824, no art. 38, pormenorizava: “logo que por qualquer meio lhes chegue a notícia de se ter praticado algum crime comum, procederão em seus distritos às diligências necessárias para verificação da existência do mesmo crime, descobrimento de tôdas as suas circunstâncias e dos delinqüentes”. Essas diligências deveriam compreender, consoante os diversos incisos do art. 39: “1°, o corpo de delito direto; 2°, exames e buscas para apreensão de instrumentos e documentos; 3°, inquirição de testemunhas que houverem presenciado o fato criminoso ou tenham razão de sabê-lo; 4°, perguntas ao réu e ao ofendido. Em geral, tudo o que fôr útil para esclarecimento do fato e das suas circunstâncias”.
Enquanto a autoridade judiciária não comparecesse, para instaurar o processo da formação da culpa, dispunha o art. 41, deve a autoridade policial proceder ao inquérito acêrca dos crimes comuns de que tiver conhecimento próprio, cabendo a ação pública, ou por denúncia, ou a requerimento da parte interessada ou no caso de prisão em flagrante”. Sobre os prazos para apresentação de queixa ou denúncia, rezava a lei, no art. 15: que, no caso de flagrante delito, se o réu tivesse prestado fiança a queixa ou denúncia seria apresentada “dentro dos 30 dias da perpetração do delito” (§ 1°); se estivesse prêso, “dentro de cinco dias” (§ 2°); não estando o réu prêso, nem afiançado, “cinco dias, contados da data em que o promotor público receber os esclarecimentos e provas do crime ou em que êste se tornar notório” (§ 3°); que as autoridades competentes remeterão aos promotores públicos ou seus adjuntos as provas que obtiverem sôbre a existência de qualquer delito, a fim de que êles procedam na forma das leis” (§ 40).
O regulamento aludido, no art. 22, repetiu essas normas, tornando a falar de “esclarecimentos e provas do crime“.
O inquérito policial consistia – segundo o art. 42 – “em tôdas as diligênciasnecessárias para o descobrimentodos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices“; e devia “ser reduzido a instrumento escrito, observando-se” o seguinte: for-se-ia “corpo de delito, uma vez que o crime” fôsse dos que por natureza deixam vestígios (1°); deveria dirigir-se a autoridade “com tôda a prontidão ao lugar do delito” e, ali, “além do exame do fato criminoso e de tôdas as suas circunstâncias e descrição da localidade em que se deu”, trataria, “com cuidado, de investigar e coligir os indícios existentes e apreender os instrumentos do crime e quaisquer objetos encontrados, lavrando-se de “tudo auto assinado pela autoridade, peritos e duas testemunhas” (2°); “interrogaria o delinqüente que tivesse sido prêso em flagrante, e tomaria logo as declarações juradas das pessoas ou escolta que o conduzissem e das que tivessem conhecimento” (3°); “feito ou não o corpo de delito (quando não fôsse caso), indagaria quais as testemunhas do crime e as faria vir a sua presença “inquirindo-as sob juramento, a respeito do fato e suas circunstâncias e de seus autores ou cúmplices,” depoimentos êsses que deveriam ser “na mesma ocasião” “escritos resumidamente em um só têrmo, assinado pela autoridade, testemunhas e delinqüente, quando prêso em flagrante” (4°); “poderá dar busca com as formalidades legais para apreensão das armas e instrumentos do crime de quaisquer objetos a êle referentes, e desta diligência se lavraria o auto competente” (§ 5°); “terminadas as diligências e autuadas tôdas as peças, serão conclusas à autoridade que proferirá o seu despacho, no qual, recapitulando o que fôr averiguado, ordenará que o inquérito seja remetido, por intermédio do juiz municipal, ao promotor público, eu quem suas vêzes fizer, e na mesma ocasião indicará as testemunhas mais idôneas que porventura não tenham sido inquiridas. Desta remessa dará imediatamente parte circunstanciada ao juiz de direito da comarca. Nas comarcas especiais, a remessa será por intermédio do juiz de Direito que tiver a jurisdição criminal do distrito, sem participação a outra autoridade” (§ 6°); “tôdas as diligências relativas ao inquérito policial serão feitas no prazo improrrogável de cinco dias, com assistência do indiciado delinqüente, se estiver prêso, podendo impugnar os depoimentos das testemunhas”. Poderia também impugná-los nos crimes afiançáveis, se, afiançado, requeresse “sua admissão aos têrmos do inquérito” (§ 7°).
Investigação
Em suma: na “inquirição-devassa”, do regime das ordenações, em que, não se distinguiam das demais as meras indagações preliminares, para seleção das testemunhas necessárias ou úteis à instrução preliminar, e tôdas se exprimiam pelos depoimentos registrados nos autos, o indiciado não participava da formação da culpa; no “sumário de culpa” do Cód. de Proc. Penal, em que indagações anteriores irregistradas constituíram pressuposto da seleção das testemunhas numerárias, o indiciado, passando a participar da formação da culpa, continuou alheio àquelas indagações; no regime instaurado pela Reforma Judiciária de 1871, em que o inquérito policial se disciplinou em função auxiliar da formação da culpa, e com anterioridade a participação do indiciado nêle, foi determinada pelo legislador pátrio. Os resultados escritos dessa atividade auxiliar, é que, no seu conjunto, passaram a compor aquilo que se denominou, desde então, “inquérito policial”. Não passaram êles, entretanto, a excluir, mas, ao contrário, continuaram a pressupor a existência de “indagações anteriores” – a investigação – em que nenhum papel ativo pode òbviamente caber ao indiciado.
4. O “inquérito policial”, registro obrigatório da atividade policial, para fixação de emergência dos dados da formação da culpa, não se criou, é certo, para servir de base de acusação criminal, visto como as denúncias e as queixas, que em seus resultados assentavam, não exprimiam acusação criminal, mesmo nos processos dos crimes de competência do juiz singular, ao invés do Júri, de responsabilidade.dos funcionários públicos, desde 1841, e de alguns crimes comuns, como bancarrota, contrabando, homicídios nas fronteiras do Império etc., desde 1850.
A pronúncia legalizava as acusações, quer nos processos de competência do Júri, quer nos de competência do juiz singular, desde que se tratasse de crimes inafiançáveis e afiançáveis. Instauravam-se uns e outros mediante “sumário de culpa”, que servisse de base suficiente à acusação. O ato de acusação deduzia-se, sob forma oral, na sessão do Júri ou na audiência de instrução definitiva e julgamento do juiz singular. O “libelo” era, como ainda é, antecipação escrita do ato de acusação, para perfeição do contraditório. A instrução criminal preliminar exprimia-se, sempre, pois, pelo “sumário de culpa”, visto como era nos resultados dêste que assentava a “pronúncia” como legalização da acusação. As denúncias e as queixas não passavam, pois, em tais processos dos crimes mais graves, os inafiançáveis e os afiançáveis, de propostas de acusação, por assim dizer, suscetíveis de aprovação. mediante “pronúncia”, ou de desaprovação, mediante “impronúncia” ou “despronúncia”.
5. Acontece que os legisladores republicanos, de alguns Códs. de Proc. Criminal ou penal estaduais, desconheciam ou agiram como se desconhecessem a função processual da “pronúncia”, qual seja, a de ser um juízo de acusação. Suprimiam-se nos processos de competência do juiz singular!
Tivemos oportunidade de acentuar, no regime da Constituição de 1937, que tal supressão se afigurava inconstitucional, em face do preceito que tradicionalmente estabelecia ser condição da prisão processual e, portanto, da fiança, nos crimes afiançáveis a formação da culpa, a “pronúncia”.
Em rigor, ninguém poderia ser prêso preventivamente senão em processo em que houvesse pronúncia, porque só a formação de sua culpa legalizaria a permanência de coação processual, prisão ou fiança, durante a instrução definitiva. Assim também ninguém poderia ser prêso em flagrante senão em processo de sumário de culpa, porque só a pronúncia legalizaria definitivamente êsse mesmo estado de coação processual.
Já a Constituição do Império dissera: “Ninguém poderá ser prêso sem culpa formada, exceto nos casos declarados na lei”, isto é, sem que exista delito provado (corpo de delito) e indícios suficientes da autoria (culpa, em sentido processual). As exceções declaráveis na lei haviam sido, desde logo, referidas pelo legislador constituinte: “A exceção do flagrante delito (que JOÃO MENDES, repetindo velhos conceitos, declara a “rainha das provas”, e que demonstra, à evidência, o crime e a autoria), a prisão não pode ser executada senão por ordem escrita da autoridade legítima”. E acrescentara, a lei fundamental: “Se esta – a ordem do juiz – fôr arbitrária, o juiz que a “deu e quem a tiver requerido serão punidos com as penas que a lei determinar”. Falava-se, pois, de ordem “arbitrária”; e a Constituição mesma esclarecia: que em tais casos, de flagrante delito e de ordem do juiz, antes de culpa especificamente formada, ainda aí, “dentro de 24 horas… e, nos lugares remotos, dentro em prazo razoável… o juiz, por uma nota por êle assinada, fará constar ao réu o motivo da prisão, os nomes do seu acusador e os das testemunhas, havendo-as”. Prisão “arbitrária” seria, pois, aquela cujo motivo, patenteado ao réu na nota de culpa, não fôsse verdadeiro.
Por isso, o Cód. Criminal de 1830 viria a disciplinar a matéria: declararia crime contra a liberdade individual “ordenar a prisão de qualquer pessoa… antes de culpa formada, não sendo nos casos em que a lei o permite”, bem como “mandar qualquer juiz prender alguém fera dos casos permitidos nas leis, ou mandar que depois de prêso esteja incomunicável além do tempo que a lei marcar” (art. 181); bem como “não dar o juiz ao prêso, no prazo marcado na Constituição, a nota por êle assinada, que contenha o motivo da prisão e os nomes do acusador e das testemunhas, havendo-as” (art. 182). Considerou-se cárcere privado ser alguém “prêso nas prisões públicas por quem não tiver autoridade para o fazer”, crime êsse punível com prisão de 15 dias a três meses, “nunca, porém, por menos tempo do que o da prisão do ofendido” (arts. 189 e 190). “Demorar o juiz o processo do réu prêso ou afiançado além dos prazos legais” – rezava o art. 181 – “ou faltar aos atos do seu livramento”, pena: suspensão do emprêgo por um mês a um ano, prisão por 15 dias a 4 meses, nunca, porém, por menos tempo que o da prisão do ofendido, mais a têrça parte”.
Quais foram êsses prazos? “A formação da culpa não excederá o têrmo de oito dias, depois da entrada na prisão, exceto quando a afluência de negócios públicos, ou outra dificuldade insuperável obstar, fazendo-se contudo o mais “breve que fôr possível”. Essa norma, contida no art. 148 do Cód. de Proc. Criminal, estabeleceu, pois, que a conservação do réu na prisão conseqüente ao flagrante ou à ordem do juiz, antes da pronúncia, não poderia de regra durar mais de 8 dias. O juiz que excedesse tal prazo incorreria nas penas de crime contra a liberdade individual.
Isso revela que só a pronúncia legalizava as prisões processuais, não só a prisão dela resultante, mas também a prisão a ela anterior, fôsse a conseqüente a flagrante, fôsse a conseqüente a decretação de prisão preventiva.
No nosso sistema tradicional, portanto, o caráter inafiançável ou afiançável da infração obrigava, por dispositivo constitucional, a que o legislador ordinário estabelecesse um “sumário de culpa”, como processo prévio à acusação.
6. A Constituição de 1937 foi explicita, repetindo, de maneira clara, o princípio fundamental da instrução preliminar originário da do Império: “A exceção do flagrante delito, a prisão não poderá efetuar-se senão depois de pronúncia do indiciado, salvo os casos determinados em lei e mediante ordem escrita da autoridade competente”. E – art. 122, inc. 11 – prosseguia: “Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, senão pela autoridade competente, em virtude de lei e na forma por ela regulada”, o que equivalia a dizer que, nos crimes inafiançáveis e afiançáveis, a conservação do réu na prisão processual, oriunda de flagrante ou de decretação de prisão preventiva, tanto quanto de pronúncia, dependeria sempre de formação da culpa.
Concluía o legislador constituinte outorgante: “a instrução criminal será contraditória, asseguradas, antes e depois da formação da culpa, as necessárias garantias de defesa“; não se contentou em exprimir apenas que “a instrução criminal será contraditória”. Achou prudente explicar também o que isso deveria significar para o legislador ordinário. E o fêz ao acrescentar, explicitamente, que as garantias de defesa haveriam de respeitar-se mesmo antes de concluída a formação da culpa, isto é, mesmo antes da pronúncia.
O legislador constituinte não se referiu expressamente a “sumário de culpa”. Preferiu chamar de “instrução criminal” à atividade que leva à completa formação da culpa. Poderia, à vista disso, ter suprimido o “sumário de culpa”, enquanto tal, dos processos de competência do juiz singular, como suprimiu, e até mesmo dos outros processos, os de competência do Tribunal do Júri, nos quais conservou o “sumário de culpa”. Mas deveria criar, nos processos dos crimes inafiançáveis e afiançáveis, em substituição, uma “instrução criminal” preliminar, isto é, processo prévio à denúncia ou à queixa, que culminasse em formação da culpa, com base da acusação criminal nelas contida.
A supressão desarrazoada da “pronúncia”, empreendida pelo Cód. de Processo Penal, em relação aos processos de competência do juiz singular, ordinários ou sumários, salvo tratando-se de infrações extra-afiançáveis, só não incorre em inconstitucionalidade se se admitir que houve deslocamento, para o “inquérito policial”, das funções do suprimido “sumário de culpa”.
A acusação contida em denúncia ou queixa, a que não se segue qualquer tipo de instrução criminal preliminar judicial, depende de base, tanto quanto a acusação que se encerra em “libelo”. Tal base indispensável não pode deixar de ser resultado, portanto, de operações anteriores à denúncia ou queixa. Se essas operações anteriores não são outras senão as do “inquérito policial”, êste ganha, sem dúvida, funcionalmente, o caráter de “instrução criminal” (preliminar), porque – segundo a linguagem dos legisladores de 1827 – constitui, já agora, em tais casos, de competência do juiz singular, á única base da acusação.
Nos processos de competência do Tribunal do Júri, o problema não apresenta gravidade. Nêles, o “sumário de culpa” realiza, por assim dizer, uma obra de beneficiamento judiciário dos resultados do “inquérito policial”. Êstes, por si sós, não fornecem, nem precisam fornecer, base à acusação, a não ser imediatamente. Afastar o indiciado de participar do “inquérito policial”, aí, não significaria violação de garantias constitucionais de defesa.
Entretanto, mesmo em tais casos, o legislador ordinário, de 1841, de 1870 e de 1940, preferiu admitir essa liberal prerrogativa.
Afastar o indiciado, porém, de “inquérito policial” instaurado para apurar infração inafiançável ou afiançável em processo no qual à denúncia ou queixa não se segue “sumário de culpa”, infringe a norma constitucional vigente ao tempo da promulgação do Cód. de Proc. Penal.
Tal dispositivo exigia, antes de mais nada, que as acusações por semelhantes crimes se fundamentassem em “instrução criminal”, onde ele aludia à “pronúncia”, à “culpa formada”. Acrescia a essa exigência a de que a instrução criminal formadora da culpa fôsse “contraditória” e, mais do que isso, cercada das “necessárias garantias de defesa”. Em rigor, a instrução criminal preliminar, assim exigida pelo legislador constituinte, deveria ser judicial. Mas se o legislador ordinário, no suprimir o “sumário de culpa”, a fez extrajudicial, como é o “inquérito policial”, daí não se pode nem se deve inferir que, além da primeira inconstitucionalidade, consistente em ser policial o que deveria ser judiciário, ainda ocorra uma segunda, a de o indiciado ser repelido da sua formação de culpa, como se nenhum legítimo interêsse nela tivesse a resguardar.
7. A Constituição de 1891 consignara: “Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, salvo as exceções especificadas em lei” (art. 72, 14); a de 1934 intentara inovar – o que teria permitido a supressão da instrução criminal preliminar – dispondo: Ninguém será preso senão em flagrante delito, ou por ordem escrita da autoridade competente, nos casos expressos em lei” (art. 113, inc. 21). Já não falava mais, a Constituição, de “pronúncia”, de “formação da culpa”, nem ainda de “instrução criminal”; nem dizia mais que a conservação do réu na prisão dependia desta ou daquelas.
Como vimos acentuando, foi a de 1937 que restabeleceu o respeito à nessa tradição; ninguém pode ser acusado de crime grave, no Brasil, sem prévia formação de sua culpa, isto é, sem base objetiva de acusação.
8. Como se portou, depois, a Constituição de 1946?
A de 1934 estatuíra, no inc. 24 do artigo 113, apenas e tão-só: “A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os meios e recursos essenciais a ela”. A de 1346, embora repetindo, no seu § 20 do art. 141, que
“Ninguém será preso senão em flagrante delito, ou por ordem escrita da autoridade competente, nos casos expressos em lei”,
proclamou que “É assegurada aos acusados plena defesa, com todos os meios” e recursos essenciais a ela – é certo – desde a nota de culpa, que assinada pela autoridade competente, com os nomes do acusador e das testemunhas, será entregue ao prêso em 24 horas”. Mas, voltando à conquista liberal da Constituição de 1937, repetiu: “A instrução criminal será contraditória”.
A explicação de 1937, acêrca de que por instrução contraditória se deve entender aquela que se cerca das necessárias garantias de defesa, era supérflua.
O Poder Judiciário não há de, com acêrto, interpretar a omissão como significativa de que, nos processos criminais, não deva haver “instrução criminal”, ou de que a “instrução criminal” não precise ser “contraditória”, quando não seja judicial.
Poder-se-ia admitir, apenas, que, já agora, no regime do vigente Cód. de Processo Penal, não sendo judiciária, a “instrução criminal”, mas administrativa, policial, há de ser, contudo, “contraditória”.
Entenda-se, sempre, por “instrução criminal”, que a Constituição refere, a instrução criminal preliminar. A lei não contém cláusulas inúteis. A primeira parte do § 25 do art. 141 da Constituição vigente, no assegurar “aos acusados plena defesa, com todos os meios e recursos essenciais a ela”, refere-se ao processo da instrução criminal definitiva e não ao da preliminar. A segunda parte, para não encerrar uma repetição, há de referir-se – quando fala de “instrução criminal” à instrução criminal preliminar. O “inquérito policial”, portanto, criou-se e existe, no sistema de nosso direito, em função da formação da culpa, isto é, da atividade de se coligirem elementos de convicção suscetíveis de constituírem suficiente base à acusação criminal.
Chama-se, entre nós, “sumário de culpa” a essa atividade preliminar, nos processos em que o legislador do Cód. de Proc. Penal não o suprimiu.
Nos demais processos, uma vez que é da índole do sistema não se admitirem acusações sem liminar, base objetiva, e não podendo o juiz, para apreciação dos fundamentos objetivos da denúncia ou queixa, encontrá-los senão nos resultados da atividade da Polícia e corpo de delito, pertence ao “inquérito policial”, em tais casos, a mesma função legalizadora da acusação atribuída ao “sumário de culpa”.
Em suma, converte-se aí o “inquérito policial” em “instrução criminal”, em virtude das mesmas razões pelas quais o “sumário de culpa” é “instrução criminal”.
9. Ser “instrução criminal” preliminar, contudo, não bastaria para obrigar o legislador pátrio, constituinte ou ordinário, a outorgar ao “inquérito policial” formas tutelares da defesa. A “instrução criminal”, como se sabe, não precisa necessàriamente ser judicial nem contraditória, para que, em qualquer sistema de processo da ação penal, se possam considerar respeitadas plenamente as garantias de defesa. Uma vez que, para efeitos da sentença penal, a fundamentação definitiva seja judicial e contraditória, compreendendo meios e recursos essenciais à defesa, satisfeita, plenamente esta se encontrará.
Entretanto, como já acentuamos de início, a Constituição e a lei ordinária podem conferir à “instrução criminal” uma certa medida de judicialidade ou de contraditoriedade. Foi o que sucedeu no Brasil, como acima ficou demonstrado, mediante a criação e a manutenção do “sumário de culpa”, para substituir as “devassas” e as “querelas”.
Assim como razões de política processual penal levaram o legislador pátrio a alargar as prerrogativas do denunciado ou querelado no “sumário de culpa”, levaram-no também a concedê-las, em certa medida, ao indiciado, durante o “inquérito policial”, sem que, num ou noutro caso, tivesse errado.
O “inquérito policial”, considerado como atividade de fixação preparatória dos mesmos dados de “sumário de culpa”, onde êste exista para judicializar as bases da acusação, converte-se em atividade de legalização mesma da acusação, porém, onde e quando não haja “sumário de culpa”. Nesse caráter, seus resultados constituem os únicos elementos de convicção disponíveis para o juiz no ajuizar da admissibilidade da denúncia-acusação ou da queixa-acusação.
10. A autoridade policial incumbe “colhêr tôdas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias”: “colhêr” as provas, é uma coisa; outra coisa é prestar “esclarecimento” ao juiz ou, por intermédio dêste, ao promotor público, para a denúncia, mediante “as peças do inquérito policial”, “num só processado, reduzidas a escrito ou dactilografadas”, e acompanhadas de “minucioso relatório do que tiver sido apurado” (art. 5°, inc. III, 9° e 10, § 1°, do Cód. de Proc. Penal). Consiste a “investigação”, em procura daquilo que está oculto: a colheita das provas, não raro, depende de investigação.
A “informação”, visto como “o inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa”, propicia “base a uma ou outra” (art. 12), isto é, fornece os elementos de convicção “imprescindíveis ao oferecimento da denúncia” ou queixa (art. 16). O inquérito policial, enquanto há de propiciar “base para a denúncia”, apresenta resultados negativos se seu desfecho revela “falta de base para a denúncia” e então é arquivado (art. 18); bem como pode vir a apresentar, depois, suficiente “base para a denúncia” se a autoridade policial, arquivado o inquérito, “proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia” (art. 18).
Se, desde logo, os elementos de convicção “imprescindíveis ao oferecimento da denúncia” constarem da informação policial – finalidade do inquérito – “o Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial”: deverá denunciar (art. 16).
A “Investigação” – além de tudo é operação que não se exaure com remessa dos autos ao juiz ou ao Ministério Público, para denúncia ou queixa, ou arquivamento: “a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia” (art. 18), a fim de “fornecer às autoridades judiciárias as informações necessárias à Instrução e julgamento dos processos” (artigo 13, inc. I), e deverá “realizar as diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público” (art. 13, inc. II).
Tudo isso indica que quaisquer elementos de convicção pressupõem uma “investigação” mais ou menos intensa, como dado antecedente à sua produção, tanto na Polícia quanto em Juízo, seja em grau de “informação” anterior a “sumário de culpa”, seja em grau de “instrução criminal” preliminar, seja, afinal, em grau de “instrução definitiva”.
A “investigação” produz resultados pré-processuais: o delegado ou o subdelegado de polícia, após sentir em si mesmo êsses resultados, é que, empreendendo o registro escrito dêles, cria, por assim dizer, os elementos informativos de convicção.
O juiz sumariante ou o juiz da causa, também de ofício, ou a requerimento das partes, empreende a produção das provas, que, antes, foram procuradas e achadas,. direta ou indiretamente, por quem as requereu ou sugeriu.
11. Feitas essas distinções, evidente se patenteia o absurdo que seria advogado de defesa colados a detetives particulares ou a investigadores, a serviço da Polícia, do Ministério Público ou do juiz, a espiarem as pesquisas sôbre as infrações, seus autores e os elementos de convicção, anteriores, contemporâneas ou posteriores ao inquérito policial, ao “sumário de culpa” ou à instrução definitiva.
Errado entretanto igualmente se evidencia afirmar-se que a exteriorização do resultado das pesquisas, assestada como carga contra o indiciado, no inquérito policial, para estruturação dos alicerces objetivos da denúncia ou queixa, não reclame, ou, ao menos, não autorize o admitir-se participação do paciente nas operações informativas que pessoalmente hão de atingi-lo, para mal, ou para bem, pouco importa, mas diretamente na sua liberdade individual, arriscada a sofrer todos os constrangimentos materiais e morais de um processo criminal.
12. Nosso vigente Cód. de Proc. Penal manda a autoridade policial, logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, dentre outras coisas, “ouvir o indiciado”. Impõe que o faça “com observância do disposto, embora no que fôr aplicável”, quanto ao interrogatório judicial. Leia-se, pois, o art. 185, para tal efeito, assim:
“O indiciado que fôr preso, ou comparecer, espontâneamente, ou em virtude de intimação, perante a autoridade policial, no curso de inquérito policial, será qualificado e interrogado”.
Será interrogado, então, sôbre – segundo a aplicabilidade do art. 188 – “as provas contra ele já apuradas”; “se tem o que alegar contra ás testemunhas já inquiridas ou por inquirir”; “se verdadeira a imputação” etc. E, o que mais importa, “será convidado a indicar as provas da verdade de suas declarações“. “O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado – interessados que são, objetiva e pessoalmente, nos resultados da atividade policial – poderão requerer qualquer diligência, que será realizada ou não, a juízo da autoridade”.
Essa cláusula – “a juízo da autoridade” – deflui do poder-dever inquisitivo da autoridade policial. Como tal, não representa nenhuma restrição ao direito que têm essas pessoas a que o delegado ou subdelegado, no uso de seu prudente critério, mas sob influxo das contingências da verdade real, não transforme a discrição administrativa, na medida em que ela existe, em abuso de poder.
Acresce que, em matéria de exame de corpo de delito, a autoridade policial não pode escolher entre deferir ou indeferir, a seu juízo, qualquer pedido do indiciado. É obrigado a determiná-lo, em qualquer hipótese, nas infrações de vestígios permanentes, e, portanto, também, no caso em que o indiciado o pleiteie. Se se trata mesmo de qualquer outra perícia, “o juiz ou a autoridade policial” – diz o art. 184 – negará a diligência apenas e tão-só “quando não fôr necessária ao esclarecimento da verdade”.
Quanto a documentos,
“Salvo os casos expressos em lei, as partes poderão apresentar documentos em qualquer fase do processo” (art. 231)
e, portanto, durante o inquérito policial, ou, ao menos, a propósito de formação de corpo de delito, visto como nenhum texto expresso o veda.
13. Quem quer que seja indiciado pois, em inquérito policial, prêso, conduzido, ou espontâneamente presente, tem direito a exigir que a autoridade o interrogue, forme o corpo de delito, realize quaisquer perícias necessárias ao esclarecimento da verdade, ouça o ofendido, inquira testemunhas por ele apontadas, desde que indispensáveis ou úteis á elucidação das circunstâncias do fato, junte documentos aos autos etc.
Tem direito, ainda, de participar do exame de corpo de delito, bem como dos demais exames, e, por certo, das inquirições, no ato do registro dos depoimentos nos autos do inquérito policial.
Isso não significa que a Polícia não possa ou, até, não deva ouvir prèviamente tais ou outras testemunhas, em grau de pesquisa, informalmente, sem participação do indiciado, desde que sem destinação judicial dos depoimentos.
14. A inquisitoriedade não é incompatível com o exercício do direito de defesa pelo indiciado durante o inquérito policial. Seu interêsse, ali, consiste, ao menos, em demonstrar que não deve ser denunciado.
A sanção às ofensas a seu direito de defesa, nesse momento, são de caráter disciplinar, e não de caráter processual.
Nem por isso, entretanto, sua posição deixa de equiparar-se aí à do Ministério Público. Mais do que isso! Em rigor, o promotor público, que, no Brasil, não pertence à ordem hierárquica da polícia judiciária, nada de essencial tem a fazer no inquérito policial. A autoridade policial, em seu caráter inquisitivo, reúne em si própria todos os poderes-deveres de Indagação da verdade, real, por fôrça de lei, poderes-deveres que, mais tarde, em duas posições processuais diversificadas, hão de pertencer, no âmbito judiciário, ao promotor público, como acionador da iniciativa judiciária, e, ao juiz, como realizador definitivo da norma penal.
O Ministério Público representa, pois, quando interfere nos inquéritos policiais, uma duplicação acidental de órgãos do Estado, para a mesma finalidade, qual seja a da apuração das infrações e de suas circunstâncias.
Tanto assim é que o Cód. de Processo Penal, ao passo que reconhece o interêsse pessoal do indiciado e do ofendido nos rumos do inquérito, e lhe atribui relevância, omite qualquer referência à participação do Ministério Público no curso dessa atividade preliminar inquisitiva.
A espontaneidade inquisitiva reage, por definição funcional, entretanto, a qualquer estímulo. Assim como o interêsse cívico de qualquer cidadão pode criar na autoridade policial a contingência de cumprir sua obrigação funcional, no cumprimento do poder-dever inquisitivo, o funcionário do Ministério Público pode ser compelido, pela disciplina de sua função, e em razão de economia processual, mero acidente, quer por ato de superior, quer por decreto ou lei de organização, a cooperar na obra de apuração empreendida nas delegacias e sub-delegacias de Polícia.
Dêsse alargamento acidental de área, para o exercício das funções do Ministério Público, é que deriva, no Brasil, o preconceito de que a autoridade policial há de comportar-se como servidor do Ministério Público ou do juiz futuros, quando os três servidores são é da lei, sob o signo do princípio da necessidade do processo penal.
O delegado ou o subdelegado de polícia investe-se em seus deveres por fôrça da lei, e não pelas determinações de juiz, de promotor público ou de superior hierárquico, cujas ordens, requisições ou sugestões, de uns e de outros, só são exeqüíveis, positiva ou negativamente, durante o inquérito policial na medida das determinações legais, que vinculam solidàriamente tôdas essas autoridades.
15. A Constituição determinou que a “instrução criminal” fôsse contraditória. O legislador ordinário apressou-se em cumprir, como lhe pareceu certo, o dispositivo fundamental: outorgou aos denunciados e querelados, nos sumários de culpa a prerrogativa de proporem testemunhas à inquirição, em igualdade de número com o denunciante ou querelante.
Não era preciso que o fizesse, conforme sustentamos em nossa “A contrariedade na instrução criminal”.
Se o não tivesse feito, nem por isso teria deixado de ser contraditório o “sumário de culpa”, como já o era, desde, sobretudo, a legislação de 1870, onde e quando melhor se disciplinou a Intervenção do indiciado, como direito de participar da obra inquisitiva do juiz sumariante, presente às inquirições, para contestar as testemunhas, e oferecer conclusões antes do despacho de pronúncia e impronúncia.
Tudo isso significa “contrariar”, pôsto que seja contrariar o inquisidor, defender-se, em suma, ser ouvido.
O mesmo legislador pátrio conservou, para os indiciados no inquérito policial, essas prerrogativas, exatamente, em face do poder-dever inquisitivo da autoridade policial.
Representam, elas, pois, direito de defesa, que só a violência pode suprimir.
16. A norma penal, realizável mediante o processo penal, não exprime apenas o direito de punir do Estado, mas principalmente o direito de o indivíduo não ser punido senão nas limitações que ela aduz ao poder de punir.
Asseverar que o indiciado nenhum interêsse tem a defender do inquérito policial é desconhecer que o delegado de polícia, tanto quanto o juiz criminal, subordinado ao princípio de legalidade, é instrumento da lei, obrigado a cumprir a norma penal, em seu bifrontismo, tanto sob o aspecto do interêsse de punir, que é de todos os indivíduos impessoalmente considerados, quanto sob o aspecto do interêsse de não punir, fora das limitações derivadas da norma penal.
O indiciado é o primeiro indivíduo pessoalmente interessado no cumprimento dos deveres policiais de descobrimento da verdade criminal, com tôdas as suas circunstâncias.
O mesmo ocorre no processo da ação penal, em qualquer de suas fases, no qual o denunciado ou querelado, ou o acusado, é o primeiro indivíduo pessoalmente interessado, também, na realização da norma penal, conforme as solicitações da verdade criminal objetiva.
Convém ponderar que, por isso mesmo, a relevância da atuação de defesa, no processo da ação penal, nunca transcende, anula ou reduz os deveres do juiz, concernentes às razões legais de defesa, tenham ou não o réu e o advogado de defesa argüido tais ou outras razões, no exercício de suas prerrogativas.
O que quer dizer que a defesa, no processo criminal, não constitui encargo processual do réu, mas sempre direito de cooperar na obra de convencimento do juiz.
Outorgar ao indiciado o direito de participar do descobrimento da verdade criminal, embora para fins informativos, não encerra nenhum absurdo.
Poder inquisitivo do juiz
O que é preciso é evitar, tanto na instrução criminal, definitiva ou preliminar, quanto no inquérito policial, que a cooperação da defesa perturbe o bom andamento da causa ou o esclarecimento dos fatos. E isso o poder inquisitivo do juiz, bem como o do delegado de polícia, têm meios de evitar. – O direito de defesa não importa necessàriamente, pois, relação de contrariedade entre um agente da pretensão punitiva, a modo de titular do direito de ação, diverso da autoridade inquisitiva, e o sujeito passivo dessa pretensão. O delegado de policia, no Brasil, que em grau de atividade informativa está investido de autoridade inquisitiva, defronta-se com o indiciado, ao qual trata de ouvir, por dever legal, e ao qual trata de comunicar, ao registrá-los, todos os resultados, paulatinamente, da atividade policial, e do qual recebe tôdas as solicitações deferíveis ou indeferíveis, tendo sempre em mente os superiores interêsses da lei.
Ao indiciado se há de negar o direito de intervir nas diligências de “investigação”, pròpriamente ditas, as quais, como preliminares, precedem o registro, no “inquérito policial”, de cada elemento de convicção real, pessoal ou documental. Essa intervenção não teria sentido, nem no inquérito policial, nem – convém notar – na “investigação”, que, mesmo depois de instaurada a ação penal, podem ou devem realizar-se de ofício ou por solicitação do juiz ou do Ministério Público.
Mas, uma vez que o inquérito policial se destina a servir de base à denúncia ou queixa, a servir de fundamento a um despacho judicial de que resulta para êle o mal do processo, seria absolutamente contrário a qualquer senso de justiça e ao sistema mesmo de nosso processo penal, afastar o indiciado como se nada tivesse a ver com sua própria liberdade.
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
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