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CLÁSSICOS FORENSE
REVISTA FORENSE
Visita Do Presidente Da República Ao Supremo Tribunal Federal, de Orozimbo Nonato
Revista Forense
26/09/2024
Por ocasião da visita feita pelo presidente Juscelino Kubitschek ao Supremo Tribunal Federal, em 4-6-56, o ministro OROZIMBO NONATO, presidente desta alta côrte de justiça, proferiu o seguinte discurso:
“Ao Supremo Tribunal Federal, presidente Juscelino Kubitschek, senhor excelentíssimo, é-lhe muito grata a visita de V. Exª
Ela não argüi apenas um apuro de cortesia, muito próprio, aliás, da cordialidade de seu ânimo e da fidalguia de seu espírito.
Denuncia, antes de tudo, a compreensão esclarecida e larga da importância que, para o funcionamento regular das instituições, tem a prática elevada da harmonia dos poderes.
Independentes são êles, mas também harmônicos e deparam um terreno comum no bem público, a que todos devem servir a todo poder que possam.
Argüi, pois, essa auspiciosa e prezadíssima visita, Sr. presidente da República, mais do que uma demonstração de polidez.
Vale como prova daquela compreensão e do reconhecimento – significativo porque parte do magistrado primeiro do país – do relêvo das funções do Judiciário na vida do “Estado de direito”.
É sem dúvida o Executivo o mais conspícuo dos poderes e o mais expressivo da soberania. Ao Poder Legislativo, e ainda nos regimes que guardam o principal do presidencialismo, grandeam-se-lhe, cada vez mais, as faculdades e funções. Certo, em algumas organizações políticas, o recurso ao referendum e a consulta direta ao povo parecem dar inesperada louçania a velhos paradoxos de ROUSSEAU. Mas, as funções dilatadas dêsse Poder dão-lhe notáveis características e o sistema presidencialista não tem impedido dilatações na área vastíssima de sua atividade.
Mas, ao Judiciário também não lhe falece o signo majestoso de funções importantíssimas na vida democrática do país. Baste lembrar a da declaração inconstitucionalidade da lei, desconhecida a muitos povos de velha e requintada cultura política, criação do gênio americano e que, se não dá supremacia ao Judiciário, atribuiu-lhe pensão gravíssima e faculdade cuja transcendência realçam os tratadistas.
O contrôle da constitucionalidade das leis (que no art. 8º da Constituição assume aspecto interessante e singular) e o da validade do ato administrativo, são duas atribuições que bastariam a sinalar a importância do Judiciário no quadro dos poderes constitucionais. Erro, porém, seria atribuir-lhe supremacia. Em uma democracia perfeita, inexistem poderes prevalentes, fora das arraias das competências específicas. Há poderes que se limitam e se equilibram, “ouro-fio”, pelo famoso sistema de freios e contrapesos.
O problema aqui se entrosa ao da própria democracia e sua solução exige alta cultura política e um lastro considerável de aquisições e experiências preciosas.
Delicado é aquêle equilíbrio, suscetível de rupturas que podem levar a sorvedouros mortais.
Já tive ensejo de dizer que as democracias vivem belamente, mas perigosamente, e quando não se achem consolidadas através de práticas adentradas no espírito e nos costumes do povo, a responsabilidade das dirigentes assume aspectos tão graves que só os ânimos duros e varonis não cedem às renúncias, transigências e capitulações.
É exato que o sistema tem os seus negadores, os seus “espíritos fortes”, como dizia o velho HELIO.
E LAMBERT observa-lhe, ainda, na prática dos povos policiados, desnivelações que levam o signo da prevalência para um dos três ramos em que o poder se divide, falando no “judiciarismo” dos Estados Unidos e no parlamentarismo francês.
Mas, o princípio se mantém, ainda que sem expressão matemática ou inflexibilidade e rigores nímios.
De resto, aquêles deslocamentos quase sempre se operam para neutralizar a expansão do Executivo e tendem, ao menos teòricamente, a restabelecer o equilíbrio perdido. Em um regime ideal, inexistiram prevalências, submetidos todos os poderes àquele “princípio da legalidade” da alusão de DUGUIT e que lhes acurta e a angustia a perigosa área da “livre decisão”.
A aplicação do sistema, em tôda a sua pureza, veda a hierarquia de qualquer dos poderes: “le pouvoir arrête le pouvoir”.
Dir-se-á tratar-se de um ideal longínquo e sòmente atingível através de dificuldades sem conta e experiências dolorosas. É possível. O caminho da perfeição rasga perspectivas indefinidas, mas deve ser percorrido com ânimo indesfalecível. A liberdade merece todos os sacrifícios – libertas inestimatis res est.
E se aquelas dificuldades assoberbassem os ânimos e dobrassem as vontades, teríamos de confessar o malôgro da democracia, acurvados aos governos despóticos, fortes naquela “lógica terrível” de que falava RIPERT, do poder único e individido. Os métodos democráticos se apuram lentamente e sua floração exige cultura e sinceridade e a formação não só de um verdadeiro escol, mas, ainda, de um povo de cidadãos.
Para tanto, Sr. presidente, e V. Exª o sabe a bom saber; um dos fatôres principais é a prática da justiça, problema comum a todos os poderes, constituindo até o sacratíssimo de seus deveres, na advertência de JEFFERSON.
De outro lado, o equilíbrio dos poderes exige que cada um dêles se guarde de invasões temerárias e renúncias covardes.
Nós outros juízes, neste particular, devemos não levar para os julgamentos nossas preferências pessoais, os impulsos de nossa consciência individual quando adversem a consciência média da coletividade, traduzida na lei.
De certo, vitandas serão as aplicações mecânicas e cegas da lei, grilhetadas sempre à sua letra, que muitas vêzes mata, contra o seu espírito que sempre vivifica. Pôsto executor fiel e rigoroso da lei, cabe-lhe ao juiz margem larga de expansão cooperadora quando o andamento do legislador ofereça mais de uma interpretação racionável: êle elegerá a mais adaptada à sua finalidade e às imposições do bem comum.
A vida é muito mais rica e numerosa do que a imaginação e a experiência do mais previsto e sábio dos legisladores.
Quando inexiste preceito de lei em que se abrace o juiz para a decisão do caso, êle decidirá sob a inspiração de princípios supremos, reveladores dos ideais mais puros de justiça.
“Se a lei não é suficiente para revelar as regras jurídicas tôdas, e se a analogia, em qualquer de seus graus, falha (e a analogia iuris, segundo WINDSCHEID, é a parte mais nobre da interpretação), há que procurar solução em região mais soberba ainda e cuja designação varia – o direito natural, a unidade orgânica do direito (SAVIGNY), a natureza das coisas (STOBBE, REGELSBERGER), a superlegalidade (JOSSERAND), princípios gerais, etc. – tudo sem fazer da jurisprudência, como dizia JHERING, a matemática do direito e sem relegar a oblívio o fim social das leis e das Instituições”.
Repito, data venia, estas palavras opacas, já proferidas em voto neste Tribunal, porque indicam, ao parecer, roteiro pendente e cauteloso, e mais, professor ilustre, cuja opinião é benemérita de acatamento, nelas vislumbrou o sinal de perigosa mentalidade. Entretanto indicam a via única quando falha a previsão legal e não traduzem, pelo menos na intenção sincera de seu obscuro autor, nem um convite à invasão das atribuições do Legislativo, nem um aceno aos delírios do freies recht.
Na inocorrência de previsão do legislador, a que o juiz se acurva, interpreta, civilimodo, o apêlo aos princípios supremos é inevitável e salutar.
E rende ao juiz ensejo de cooperação legítima no rejuvenescimento dos textos, na superiorização da lei (bona est lex si qui ca legitime utatur), no progresso jurídico, na evolução do direito.
E as larguezas da construction, em matéria constitucional, realçam o momentoso daquela cooperação salutar, se praticada sem invasão das fronteiras do Legislativo, com prudência e circunspecção, cum, caute et iuditio.
Porque o juiz não é o “legislador de cada caso”, senão o intérprete da lei cujo sentido desvela com os preciosos instrumentos da hermenêutica. E é com êsse estilo e com essas armas que o juiz lida na prática verdadeira do regime e na solução dos conflitos de interêsses.
O que se lhe exige é um cúmulo de virtudes: modéstia, compostura, discrição, cultura, operosidade, ânimo sofredor e paciente, mas capaz da justiça, que inculcava o rei sapientíssimo.
Tem êle de ser exato e guardar no exercício de suas funções; um equilíbrio irreprochável, longe do escorregadouro das outorgas e relaxações, mas sem campar de inexorável e cruel, sem agravar nas leis “para se acreditar com o nome de austero e ilibado”.
Ser fiel à justiça, e pontual e exato ainda no menor, para o ser também nas coisas magnas, conforme aquilo do evangelista: “qui fidelis in minimo et in maiorisfidelis est; et quis in modico iniquus est, in maior iniquum est”.
Desanimado de vaidades e sem entono, sem arrogância, sem orgulho, mas armado de resistência moral indobrável, o bom juiz só atenderá, através de tôdas as circunstâncias, ao mandamento da lei e aos impulsos de sua consciência.
Daí, as palavras de RUI BARBOSA, palavras de ouro, dignas do pitiano de Delfos:
“Todo o bom magistrado tem muito de heroismo por si mesmo, na pureza imaculada de sua plácida rigidez que a nada se dobre e de nada se tema, senão de outra justiça assente, lá em baixo, na consciência das nações e culminante, lá em cima, no juízo divino”.
Dir-se-á que muito poucos se armam de tantas grandezas e excelências; e assim é, na real verdade, que os mortais todos pagamos quantioso tributo aos erros e imperfeições. Muitos, entretanto, pelejam arca por arca, contra fatôres internos e externos, para conquistá-las num esfôrço obscuro, desconhecido e incompreendido, muitas vêzes, mas aturado e constante.
E se todos incidimos em erros de inteligência, poucos, mercê de Deus, se alongam do caminho áspero do dever e se degradam em vilezas e indignidades.
Aos que o fazem, aos que provadamente conspurcam os brasões de dignidade da justiça, rechine-lhes na carne de precitos o ferro caudo de todos os anátemas e maldições.
Mas, confrange verificar a leveza de ânimo e a desenvoltura com que os contrariados em seus interêsses, altos ou mesquinhos, em suas paixões, nobres ou desnobres, pelas decisões dos juízes, contra êstes se voltam em impropérios e baldões ou referências perversas e tóxicas, atribuindo a julgadores, com todo um passado de dignidade e de nobreza, intenções escusas. propósitos mesquinhos, impulsos inferiores.
Homens públicos, estamos os juízes, sem dúvida, subordinados à crítica esclarecida dos cidadãos dos juristas, dos dirigentes da opinião pública. É um direito e um dever revelar os erros das sentenças, as cincas em que incidamos os juízes, os enganos em que nos deixamos emalhar.
Mas, daí a, desembaraçadamente, sem qualquer esfôrço de lógica e demonstração, argüir erros aos juízes – a o que é mais: atribuir tais erros à subserviência, à pusilanimidade, a sentimentos inferiores, rejeitando-lhes viltas e baldões, e arrastando-os à picota, do enxovalho, ou assentando-os de críticas viperinas e alusões lacerantes, – vai enorme distância que sòmente transpõem os apaixonados e os que perderam o sagrado amor à vida das instituições.
Mas, Sr. presidente, estamos todos vivendo lances agudos da nossa história e a Justiça terá de pagar também seu tributo de sofrimento às agitações da hora presente.
Nem os juízes, Sr. presidente, vivemos sôbre as contingências do tempo, em tôrres de marfim. Nem abjuramos o culto da pátria e nem relegamos a oblívio os deveres que nos prendem à coletividade. Apenas, o nosso patriotismo verdadeiro e profundo – manifesta-se na serenidade das decisões, sem a magniloqüência dos tribunos investidos de comando político ou dos condutores da opinião pública. Manifesta-se pelo cumprimento exato; fiel e religioso da lei.
Perdoe-me V. Exª, Sr. presidente, estas expressões, talvez excedentes do dever, prazerosamente cumprido, de agradecer, com tôdas as veras, a V. Exª a distinção da visita. Elas, porém, despertadas pela sugestão da sua prestigiosa presença, representam, ao cabo de contas, homenagem ao homem público e ao eminente chefe de govêrno, que é V. Exª. E autorizam a que eu manifeste meus votos de magistrado e de brasileiro, meus votos a Deus para que Êle permita vinguem os esforços de V. Exª e de quantos, em todos os grupos, partidos e setores da atividade pública, pelejem com pureza de intenção e ânimo alto, para o soerguimento da pátria. Para a normalização de sua vida. Para a felicidade de seu povo. Para a grandeza e para a glória do Brasil”.
LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 1
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 2
- Revista Forense – Volume 1 | Fascículo 3
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