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Os Novos Direitos Do Homem, de A. Machado Paupério

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Os Novos Direitos Do Homem, de A. Machado Paupério

REVISTA FORENSE 166 — ANO DE 1954

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04/09/2024

SUMÁRIO: A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948. As transformações do direito. A propriedade e o trabalho. Capital e herança. Igualdade social. Democracia integral e humana.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948

Lapidarmente estabeleceu o art. 25 da Declaração Universal de Direitos do Homem, aprovada e proclamada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembléia Geral das Nações Unidas:

“Tôda pessoa tem direito a um nível de vida adequado que lhe assegure, bem como à família, a saúde e o bem-estar, e em especial a alimentação, o vestuário, a habitação, a assistência médica e os serviços sociais necessários; tem do mesmo modo direito aos seguros em caso de desemprêgo, enfermidade, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de seus meios de subsistência por circunstâncias independentes de sua vontade”.

Aí estão solenemente reconhecidos os chamados novos direitos do homem, que as novas e crescentes necessidades passaram a exigir para que possa êle atingir a própria plenitude e preencher a própria finalidade que lhe é inerente à natureza.

As transformações do direito

O direito, como construção humana, é um fenômeno altamente dinâmico, que tende a transformar-se sempre, apesar de imutável em suas essências, para acompanhar as novas perspectivas que se abrem na História e as constantes mudanças das condições de cada civilização. Como fenômeno dinâmico, o direito acompanha, de certo modo, o princípio genérico do progresso indefinido da sociedade. Por isso, não nos devemos espantar com a incessante reforma que vem sofrendo o direito tradicional nas democracias modernas.

Como já notou alguém com muita sagacidade, as aristocracias podem limitar-se a defender ou a conservar. As democracias, porém, devem necessàriamente ter atitude diversa, trabalhando sempre por acrescer ao seu patrimônio novas e incessantes conquistas humanas.

Há, por isso, talvez, aqui e ali, uma mudança muito rápida da legislação, que chega a nos impressionar fortemente quando temos das leis uma concepção conservadora e estática.

O homem de hoje, porém, é ávido de progresso em todos os campos e disso não escapou o próprio setor das leis; antes quase inviolável às inovações.

O direito positivo atual é tão rico e exuberante sob o ponto de vista quantitativo, que dificilmente poderemos remontar, sem maior exegese histórica, aos próprios fundamentos modernos de cada instituto jurídico.

O século atual, como verdadeiro século do Estado, em que as maiores transformações políticas se operaram, tinha, evidentemente, que influenciar a legislação hodierna. Mas esta nem sempre acompanhou a evolução acelerada do elemento político.

Em um estudo que marcou época – “Le code civil et les classes ouvrières” ALBERT TISSIER mostrava ainda há pouco que, apesar de sua posição social marcante no mundo, tinha a França ainda um Cód. Civil antidemocrático. A mesma coisa CHARMONT, em 1908, quando declarara categòricamente ser aquêle diploma “o código do patrão, do credor e do proprietário”.

DUGUTT, porém, com a sua autoridade indiscutível de verdadeiro renovador do direito, ainda que em linhas positivistas, já profetizara para a sistemática civilista tradicional uma revolução de fundo eminentemente realista, para a qual convidava os juristas de seu tempo, certo como estava de que a obra de PLANIOL ia constituir o verdadeiro canto de cisne do direito individualista e tradicional.

Na coleção do Instituto de Direito Comparado, de Lyon e nas publicações das chamadas “Semaines Sociales de France”, vozes ousadas passaram então a vislumbrar a ordem jurídica do futuro, prenunciando transformações de base que dariam ao trabalho não só o pôsto de relêvo como o próprio crédito a que êle faz jus e tem o direito de reclamar. Legião de nomes, dos mais conspícuos entre juristas e sociólogos filiaram-se a êsse movimento renovador.

A essa plêiade de pensadores e homens de ação não faltaram, dentro da própria Igreja, os continuadores e catalisadores, em irreprimível polarização das idéias fundamentais trazidas ao mundo pelo Evangelho.

A discutidíssima posição de JACQUES MARITAIN, condenado por uns, exaltado por outros, foi nesse domínio um marco, porque se a sua obra pode ser alvo de ataques quando dirigida aos problemas de ordem política, aparece inatacável e ortodoxa no tocante às equações filosóficas, que procura resolver.

Poucos, como MARITAIN, tiveram a coragem e a audácia de rasgar os tumores abjetos de nossa concepção econômica, para proclamar, alto e bom som, a necessidade de reformas radicais e inadiáveis. Dentro dessa posição é que apareceram do seio do próprio clero católico os que passaram a ser conhecidos por adeptos do socialismo humanista e que constituíram os Ducatillons, os Lebrets, os Riquets, etc.

Reconheceu-se, por tôda a parte, que as belíssimas doutrinas expostas na “Rerum Novarum” e “Quadragesimo Anno” não podiam reduzir-se a textos escritos… estratificados e “para inglês ver”…

Compreendeu-se, cada vez mais e melhor, que tanto a ação dos governantes como a iniciativa particular não se podem fazer em têrmos de caridade paternalista e sim de solidariedade fraterna, encarada como obrigação moral.

Era a consagração das idéias vicentinas de OZANAN, para quem já não bastava a “caridade de coco d’água” da nossa civilização individualista.

É preciso que nunca nos esqueçamos de que é pura ilusão pretender subordinar as massas à Moral, enquanto a esta não pudermos subordinar a Economia.

Não é demais repetir – apesar do lugar comum que encerra – que o homem doente, miserável e ignorante não pode compreender e muito menos viver os ideais cristãos e democráticos.

Numa economia saudável, humana e cristã, teríamos que fixar como postulados certos princípios que ainda estão muito longe de informar a nossa civilização.

A propriedade e o trabalho

Precisamos não só organizar a produção como a distribuição cientificamente, nacionalizando os meios de produção e reservando para os indivíduos apenas a propriedade de seus objetos pessoais. É o que prega o “Movimento Francês da Abundância”, dentro da melhor ortodoxia católica (v. ABBÉ MONIN, “Le droit de propriété”, Paris, 1945, pág. 8).

Segundo êsse ilustre membro do clero francês três podem ser os ensinamentos que a Igreja nos dá em relação à assunto tão importante e essencial:

1º) “Cremos que Deus Criador pôs os bens materiais à disposição da humanidade para ajudar todos os homens a realizar seu destino, terrestre e eterno” (grifo nosso).

2º) “Todo homem tem o direito de considerar como lhe pertencendo exclusivamente os objetos materiais que, sem prejudicar ao direito igual de seus semelhantes, transformou, por sua inteligência e seu trabalho, em objetos novos, por assim dizer criados por êle, sôbre os quais imprimiu a marca de sua personalidade”.

3°) “Todo homem tem necessidade, não sòmente para viver, mas para viver como homem, isto é como chefe de família, de alguma coisa permanente, em que se condensem as economias de sua atividade, de alguma coisa de estável, de uma reserva sempre disponível, que lhe garanta, a êle e à família, contra as surprêsas de futuro”.

Seguindo as pegadas dos melhores tratadistas cristãos, parecem-nos, como decorrência daqueles, princípios essenciais para humanizar a face do mundo:

1°) A economia existe para o homem e não o homem para a economia.

2º) O trabalho é a fonte primeira da riqueza.

3°) A propriedade tem uma dupla função: pessoal e comunitária.

4º) A moeda é instrumento de troca e não mercadoria.

5°) O dinheiro só tem direito à remuneração quando associado ao trabalho.

São simples tais princípios, mas, postos em prática; destruiriam as verdades parciais que encontramos nos extremismos de esquerda e que tentam destruir o mundo espiritual do Evangelho.

Na esteira dêsse pensamento, teríamos que modificar sensivelmente o nosso conceito tradicional de propriedade, que passaria a ser o “poder de administrar e distribuir”, como conceituou GEORGES RENARD, inspirado em SANTO TOMÁS DE AQUINO.

Se não precisamos chegar às apóstrofes candentes de alguns membros da Patrística e aos precedentes dos primeiros séculos, em que se rejeitava na comunidade cristã os proprietários, temos evidentemente que levar em consideração o uso que se faz da propriedade.

O que importa, sobretudo; é marchar da propriedade capitalista em direção da chamada propriedade humana, como a cognomina EMANUEL MOUNIER.

Como acentua RENARD, “ninguém tem o direito de ser rico”. Por isso, como insiste aquêle emérito professor de Nancy, “a propriedade do excedente é delegação”, confundindo-se com a administração por conta de outrem e com a superintendência.

Os homens não são, assim, mais do que os administradores dos bens que possuem, além do que lhes é indispensável, encarregados por Deus de administrá-los para atender, está claro, a suas necessidades, mas também para satisfazer o bem da comunidade humana.

Ninguém pode, assim, ser proprietário do supérfluo. Ao Estado, como árbitro do bem comum temporal, cabe disciplinar o uso da propriedade. O exemplo histórico do século XV, de que nos dá notícia a bula “Inducit nos”, de 1-3-1476, é bastante claro para comprovar a possibilidade de tal disciplina, através da ação de SIXTO IV e de CLEMENTE VII.

Também no domínio do trabalho, trouxe o Evangelho as revoluções mais radicais, se lhe acompanharmos tôdas as possíveis conseqüências que de seus princípios cardeais podemos tirar. Entre o salariado e o acôrdo mútuo erige-se a doutrina da Igreja, combinando harmônicamente o primeiro regime com o do contrato de sociedade, concretizando através da já vitoriosa participação dos trabalhadores nos lucros das emprêsas e na gestão das mesmas.

É preciso, de outro lado, convir em que o lucro não pode ser ilimitado. O processo econômico tem necessàriamente um fim próximo regulador, que é dado pela função social do fator consumo.

A crise moderna, aliás, não é de falta de produção. Em cada três segundos, por exemplo, numa usina da América do Norte, um chassi de automóvel era em 1938 fabricado por 23 operários, dos quais 15 quase nada tinham a fazer (v. MONIN, ob. cit., pág. 4).

Experimentou-se, entretanto, para salvar o lucro individual; criar-se artificialmente a fala do produto; pela sua própria destruição. Vã economia, que queimou café no Brasil e trigo na Argentina. Contra o lucro individual de uma minoria, preferimos acolher de braços abertos os benefícios para a coletividade.

O dinheiro não pode ser um fim em si, como veio até aqui sendo considerado. Não é senão por isso que a Igreja sempre condenou a usura. Não só no Concílio Lateranense, em 1139, através do cânon 13, como pela Constituição “Ex gravi ad nos”, de CLEMENTE V, no século XIV, e pela encíclica “Vix pervenit”, de 1745, de BENTO XIV, escrita contra os erros calvinistas, foi a usura anatematizada. É verdade que posteriormente permitiu-se o juro legal pelo cânon 1.543 do Direito Canônico. Mas isso se deveu tão-só a razões extrínsecas, consubstanciadas no damnum emergens, lucrum cessans e periculum sortis, porque o juro, em si, é “intrinsecamente mau”, como nos adverte SANTO TOMÁS DE AQUINO.

Sabemos que a verdadeira riqueza nasce dos produtos da terra e da Indústria. Mas, desgraçadamente, o intermediário tornou-se hoje o maior participe do lucro.

Capital e herança

Paralelamente, o capital deixou de ser sòmente a causa instrumental da riqueza, como o é numa concepção sadia e cristã. O direito do capital ao rendimento é secundário, uma vez que sua influência na produção é secundária e posterior ao trabalho. Por isso, não receamos de proclamar que o capital não tem direito a rendimento senão quando está associado ao trabalho.

Todos êsses anseios por uma economia mais humana e mais cristã passaram a ser os ideais econômicos da democracia, cujo direito se caracteriza especialmente pela integração da maior soma possível de justiça igualitária.

O amor da democracia, já o dissera MONTESQUIEU, é o da igualdade.

Se os homens, embora desiguais em virtualidades, nascem abstratamente iguais em direitos, já não pode a democracia coadunar-se com as situações hereditárias.

Entretanto, a produção em massa das riquezas geraram desigualdades de fato que se tornaram talvez muito mais perniciosas que as próprias desigualdades de direito. Como anota RIPERT, com sua sagacidade genial, haverá hoje mais diferença, nas condições de vida material, “entre os poderosos financistas e os operários que há alguns séculos entre o castelão e o camponês”.

O desenvolvimento da idéia da “igual oportunidade para todos”, é por isso mesmo, vital e precípuo para a democracia, um fato verdadeiramente providencial e desejável, único capaz de salvar a civilização com o seu sôpro de verdadeiro restaurador da dignidade da pessoa humana.

A Revolução Francesa, fiel a seus princípios, havia estabelecido a igualdade sucessoral mais completa, suprimindo os direitos de primogenitura e de masculinidade, incompatíveis com o novo sôpro igualitário. Assimilando os filhos naturais aos legítimos, interditou a dotação preferencial a um dos filhos.

Cedo, porém, o Cód. Civil entrou em transigência. Hoje, trabalha-se novamente por que a tradição da Boa Causa retome o seu império. Mas, talvez por um exagerado sentimento de prudência, só por etapas se vem fazendo a renovação de nossas leis.

A Constituição alemã de Weimar, de 1919, ousou proclamar que a legislação, deve assegurar aos filhos naturais as mesmas condições de desenvolvimento físico, moral e social que aos filhos legítimos.

Apesar de poder ter tal equiparação reflexos muito vivos e muito fortes sôbre a moral familiar, o que requer suma prudência na legislação, fôrça é reconhecer-se não haver filhos ilegítimos. Ilegítimos podem ser os pais, por não estarem em condições de direito para concebê-los.

Mas não é só nesse domínio que o princípio igualitário se vai impondo. Em grande número de países, ainda, vai desaparecendo a incapacidade da mulher casada que, face às novas condições de vida, já se não impõe com a amplitude com que a conhecemos.

Apesar de tôdas essas conquistas, porém, a posse dos bens continua a criar entre os homens profundas e radicais desigualdades.

Na pátria do capitalismo por excelência, nos Estados Unidos da América do Norte, quando da luta contra os trusts em 1932, mostrou ROOSEVELT que a indústria americana estava em mãos de 600 emprêsas. Nesse caminho, concluía então, dentro de 50 anos tôda a indústria estará nas mãos de seis trusts e 100 homens.

Não há dúvida que a democracia não é hostil à propriedade nem à herança em si, mas exige, para que sejam aceitas, que todos possam ser proprietários e todos os herdeiros tenham direitos iguais.

A herança, porém, cria desde o nascimento situações privilegiadas, incompatíveis de certo modo com a democracia.

JOÃO MANGABEIRA, com o brilho excepcional de seu estilo vigoroso, pintou-nos numa página de mestre, que merece meditada e transcrita, o que é a herança como privilégio da riqueza. “Porque, em suma, a herança não é senão um privilégio de riqueza, cujo dono, depois de usufruir, enquanto vivo, tôdas as inúmeras vantagens que ela dá, ainda a transmite e perpetua, estabelecendo, no mundo, uma desigualdade formidável entre os que herdam e os que nada têm que herdar. É a classe dos afortunados, que, ao nascerem, já levam sôbre os deserdados êsse enorme privilégio artificial e de justiça duvidosa, que a lei, exclusivamente a lei, lhes confere, graças ao qual ocupam os altos postos indivíduos que, por suas qualidades naturais, não poderiam preencher senão os lugares mais subalternos do serviço. E, por essa inversão artificiosa, não raro prejudicam o Estado; estorvam o serviço público; embaraçam o comércio; emperram a indústria, e entravam o desenvolvimento da produção. E enquanto êsses príncipes transformam os postos de comando da produção, ou do Estado, em passatempo de sua incapacidade dourada, os pobres investem a rocha abrupta da vida, numa escalada alpina, em que a maior parte sucumbe, ou fica esmorecida pelas encostas, e um ou outro, da multidão dos assaltantes, suando sangue vivo e agonias, atinge, extenuado, o cimo da montanha, onde a injustiça da lei colocou, sem nenhum trabalho, o felizardo. No entanto, o alpinista da vida só poderá realizar vitoriosamente a ascensão se reunir pelo menos três qualidades, que raramente numa pessoa se congregam: inteligência de ouro, saúde de ferro, vontade de aço. É com êsses três requisitos que se parte do chão raso da pobreza ou dos socavões da miséria, para o pino dos postos de relêvo, oferecidos como presentes de Deus, ao medíocres que a lei privilegiou, ao nascerem, nos seus berços dourados.

Como é óbvio, a natureza jamais deu ao homem qualquer poder após a morte sôbre os bens terrestres. Por isso, o direito de testar ou de suceder é obra exclusiva da lei, ou seja, do direito positivo.

Igualdade social

Nem sempre a desigualdade, porém, é antidemocrática. Muitas vêzes é ela própria que ajuda a fomentar a igualdade social. No tempo presente, muitas leis, contrárias ao princípio da igualdade civil, são promulgadas em nome e no interêsse da maior igualdade social. E só, realmente, com a maior igualdade social poderão as elites ser recrutadas em tôda a população.

A hierarquia, que não seja a do mérito, só criou estagnação e decadência. O exemplo da Índia é bastante convincente.

Com iguais possibilidades florescem as desigualdades personalíssimas e reais, únicas compatíveis com o clima democrático. Onde existe a igualdade do necessário e iguais possibilidades, existe a proporcionalidade e, portanto, a justiça nas relações humanas.

As democracias podem aumentar sempre mais suas elites pelo acesso de todos os elementos capazes aos estudos universitários. Porque, quanto mais democrático fôr um país, mais necessidade de elites terá êle.

A democracia, portanto, não pode limitar-se ao aspecto político: terá que se afirmar tanto nessa ordem quanto na ordem econômica. Vivendo um século que poderíamos chamar de “século do homem comum”, teremos que marchar em direção do extermínio de todos os imperialismos, sejam êles nacionais ou internacionais.

O objetivo exclusivo do capitalismo industrial, nas guerras ou nas emprêsas colonizadoras, foi sempre e continua a ser ainda hoje a conquista de mercados.

Mas, como lembra WILKIE, “a casa grande na montanha, rodeada de casebres de barro, perdeu o seu sagrado prestígio”.

Aliás, onde quer que viceje o clima democrático, já não é possível pensar-se em ter direito a melhorias pessoais em detrimento dos interêsses dos outros.

Democracia integral e humana

A democracia outorga direitos, mas impõe também deveres. Por isso, no meio da miséria geral, ninguém pode hoje pretender ser feliz. A menos que seja inimigo aberto da sociedade.

Dentro dos próprios quadros cristãos, nem sempre, porém, nos apercebemos dessa verdade. Por isso – conta êsse novo Vicente de Paula, que é o ABBÉ PIERRE em França – que alguns “bem-pensantes” escandalizados perguntam por que motivo Êle é todo suavidade e doçura quando fila aos não-cristãos e, ao contrário, transforma-se em “leão rugidor” quando se dirige aos bons católicos. E o ABBÉ PIERRE responde:

É porque ser católico, ou simplesmente cristão, comporta obrigações. “Quanta gente se considera quite com Deus pelo fato de ir à missa de meio dia aos domingos e comungar uma vez por ano, como quem faz um seguro de vida. A missa assim assistida pouco vale; a comunhão assim recebida está bem próxima do sacrilégio.

“Todos os cristãos são responsáveis pelos bens temporais recebidos. Não procurar remediar a desgraça dos desabrigados e miseráveis é uma falta contra a honestidade, é uma traição contra a solidariedade.

“Nós não faltaríamos à missa aos domingos. Mas nós faltamos cada dia a JESUS CRISTO nos seus pobres que são o corpo e a alma de JESUS CRISTO.

“Enquanto houver um só casal sem teto, nós não temos o direito de pensar em descansar e viver na monstruosa ilusão do nosso dever cumprido”.

“Atenção, portanto”, diz HENRY WALLACE, “para os falsos democratas, que falam sempre em altas vozes da liberdade, mas apenas sussurram em surdina quando falam em justiça”.

Está claro que, para evitar a revolução, teve o Estado liberal que ceder quanto aos seus princípios cardeais. Cedo deixaram de ser o capital e o trabalho valores econômicos de órbita privada Unido o proletariado, surgiu o movimento sindical. E no Parlamento, pelas mãos dos representantes proletários apareceram as primeiras leis sociais.

Com a guerra de 1914 e a revolução comunista, o movimento social cobrou novas fôrças. Afinal, o Tratado de Versalhes estatuiu, de maneira solene, no capítulo XIII, as garantias gerais do trabalho, como norma geral de pacificação dos espíritos. Logo em seguida, apareceu, como primeiro diploma legal, inspirado na nova ordem preconizada, a Constituição alemã de Weimar; na qual se passou a basear a quase totalidade das Constituições posteriores.

Seja como fôr, porém, tal revolução ainda não se completou. Por essa razão, não poucos espíritos afastaram-se da democracia em virtude de terem sido abafados os seus princípios autênticos pelos preconceitos rotineiros e reacionários, do espírito liberal anterior. Tais preconceitos representam as heras venenosas que parasitaram a democracia, como diz JACQUES MARITAIN. Muitos, porém, erguendo o machado contra a hera, como diz aquêle grande sociólogo cristão, só tarde notaram que, em vez de destruir o parasita, o que destruíam era a árvore, sem sequer-alcançar os elementos de morte que a infestavam.

Sem dúvida, o verdadeiro problema da democracia é descobrir e realizar sua verdadeira essência, ultrapassando os acanhados quadros da democracia burguesa, em direção da democracia integral e humana.
A. Machado Paupério, professor da Faculdade Nacional de Direito.

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