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José Ulpiano Pinto De Sousa

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REVISTA FORENSE

José Ulpiano Pinto De Sousa

JOSÉ ULPIANO PINTO DE SOUSA

REVISTA FORENSE 171 - ANO DE 1955

Revista Forense

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02/06/2025

SUMÁRIO: O direito e os juristas. Dados biográficos do homenageado. O direito civil antigo. Fé inabalável no direito. Trabalhos publicados. A cátedra. Conclusão.

* A Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo vem prestar sua reverente homenagem à memória do professor emérito JOSÉ ULPIANO PINTO DE SOUSA que, durante 30 anos, ininterrompidamente, ensinou, nesta Casa, a mais complexa das disciplinas jurídicas como é o direito civil e, com as suas lições e o seu exemplo, preparou gerações e gerações de moços, habilitando-os para o exercício de tôdas as funções, de todos os cargos e encargos destinados ao estudo e à prática do Direito.

O direito e os juristas

Na vida de quantos por seu valor se destacam dentro da coletividade em que vivem, uma diretriz dominante sempre sé revela que ao biógrafo permite definir-lhes a personalidade.

Não quero dizer, assim dizendo, que homens de valor sejam apenas aquêles que uma só espécie de atividades exercem e nela manifestam seus dotes excepcionais. Se no campo das ciências aplicadas ou das investigações técnico-científicas, que dia a dia mais se especializam, sábios existem cuja inteira existência decorre, a bem da humanidade, dentro dos muros de seus laboratórios, contudo, em se tratando de ciências sociais e racionais, mais particularmente das ciências jurídicas, os seus cultores, as mais das vêzes, são arrastados, pela própria natureza de seus estudos, à prática dos mais vários labores:

O Direito é multiforme porque abrange e disciplina tôdas as manifestações da vida. É o Direito o próprio universo humano por êle posto em equação de proporcionalidade da vontade livre, a vida interior e através do ordenamento dos atos e fatos no sentido de uma complementação recíproca, a vida exterior da criatura, que o Criador fêz à sua imagem. E por isso o jurista é chamado, com freqüência, a aplicar o seu saber e sua experiência em mais de um setor, nó pretório, na doutrinação, na magistratura, no professorado, na administração pública, nos Parlamentos, ou em congressos científicos ou profissionais dentro ou fora do País, no intercâmbio universitário, em tôda parte, enfim, onde possa, pela ação ou pelo estudo, contribuir para a realização da ciência e arte excelsa do bem e do justo. A fim de ter consciência plena do Direito, há de o jurista sentir, em seu cerne, tôdas as palpitações da vida dos indivíduos e da coletividade, todos os eventos felizes ou infelizes, bons ou maus, suaves, ou dramáticos, ou trágicos, da humana gente; e se Deus lhe deu a missão sublime de ensinar e educar as gerações môças, modelando as consciências jurídicas do futuro, então seus ensinamentos serão tanto mais valiosos quanto mais souber transmitir aos seus discípulos, a par da doutrina e dos princípios científicos, as lições ditadas pela experiência da vida.

Múltiplas, várias e diversas são e devem ser, comumente, as funções que os juristas exercem. Mas, os mais aquinhoados, aquêles que por seu valor mais e mais se distanciam da massa brutal e inumana, quantitativa e não qualitativa, da mediocridade, mantêm e demonstram, dentro dêsse variegar de funções uma linha unitária de conduta, um sentido intelectual e moral dominante, ou seja, uma diretriz central e superior que lhes marca a personalidade.

Doutrinador e aplicador do Direito, legislador e advogado, homem público e professor, professor e magistrado, tudo isso os juristas podem ser ou podem ter sido, mas, sejam quais e quantas forem as formas de exteriorização de suas aptidões, dêles, um sempre pensa e age como cultor da ciência pura do Direito, outro constantemente imprime aos seus trabalhos seu feitio de exegeta dos textos de lei, outro mais em todos os seus atos procede como patrono das boas causas, públicas ou particulares; êste é acima de tudo magistrado, aquêle é a todo instante o mestre, o jurista que juristas forma. E por ser assim, ao rememorar, nesta sessão solene, a figura do professor emérito JOSÉ ULPIANO PINTO DE SOUSA, cumprir-me-ia de logo, apurar e proclamar qual foi a diretriz suprema de sua vida de jurista. Contudo, não me é possível fazê-lo sem esboçar, prèviamente, ainda que em pinceladas largas, o quadro da vida jurídica brasileira, ao tempo, em que o nosso homenageado cumpriu e honrou seu apostolado, advogando, assessorando, ensinando e exercendo, honrosamente sempre, missões outras.

Dados biográficos do homenageado

Nascido a 18 de setembro de 1889, na cidade de Araraquara, neste Estado, e filho do Dr. Manuel Joaquim Pinto de Sousa e de D. Francisca de Aguirre e Sousa, José Ulpiano seguiu seu curso de humanidades no então famoso colégio São Luís de Itu e seus estudos superiores nesta Faculdade, onde se bacharelou em ciências jurídicas e sociais em 1891. Em 1895, quatro anos após a sua formatura, ou seja, com 28 anos de idade, conquistou, em concurso, o cargo de lente substituto desta mesma Faculdade, quando já se havia iniciado na advocacia, trabalhando, a princípio, com o notável jurisconsulto Dr. JOÃO MENDES e, mais tarde, em colaboração com o Prof. FREDERICO VERGUEIRO STEIDEL, que foi um dos mais destacados mestres desta nossa Escola, por seu saber e seu acendrado civismo.

Lente substituto e, a partir de 1908, catedrático de uma das cadeiras de direito civil, manteve-se em exercício até ao ano de 1925, quando se aposentou.

Nosso Cód. Civil, como todos sabem, entrou em vigor a 1º de janeiro de 1917 e, assim, o Prof. JOSÉ ULPIANO PINTO DE SOUSA lecionou e aplicou êste ramo do direito durante 21 anos sob o regime legal anterior e durante nove anos, se tanto, sob a vigência de nosso primeiro corpo de leis civis.

E qual era o direito civil de sua primeira e mais longa fase de doutrinação e de prática forense?

Era o direito formado em primeiro lugar pelas Ordenações Filipinas, que Portugal já abandonara desde 1865, ao entrar em vigor o seu Cód. Civil, ordenações nas quais se fundiam disposições de direito romano, de direito canônico, de velhas instituições ou praxes lusitanas, complementadas por uma aluvião de leis extravagantes que compreendiam as leis pròpriamente ditas, os alvarás, cartas régias, decretos, resoluções de consulta, provisões dos tribunais, avisos, portarias e assentos da Casa da Suplicação. E como direito subsidiário prevaleciam os usos e costumes e novamente o direito romano e o direito canônico nos textos não reproduzidos ou não mandados seguir expressamente pelas Ordenações ou pelas leis esparsas e, mais, as glosas de BÁRTOLO e ACÚRSIO e as opiniões dos jurisconsultos e as leis modernas das demais nações, se conformes com a “boa razão” e o direito natural. Acrescentem-se a êsse tumulto legislativo nossas próprias leis, promulgadas a partir da Independência e dispondo esparsamente sôbre registro civil, sabre a adoção, em matéria matrimonial, das disposições do Concílio de Trento e da Constituição do Arcebispado da Bahia, sôbre o casamento de pessoas de religião diferente, o casamento civil, o regime hipotecário, a personalidade das associações civis, as procurações de próprio punho, o registro de títulos, os direitos de autor, a desapropriação por necessidade ou utilidade pública e outros e outros diplomas legais e regulamentares – e ter-se-á uma idéia do cipoal que então era o nosso direito civil.

É verdade que dentro dêsse amontoado de normas esparsas e de regras e princípios ou preceitos subsidiários, compêndios surgiram, procurando construir uma exposição, tanto quanto possível sistemática, de nosso antigo direito. Em nossos cursos acadêmicos foram adotados, durante longo tempo, o “Tratado Civil de Portugal”, de MANUEL BORGES CARNEIRO, publicado em 1851, o “Digesto Português”, de CORREIA TELES, editado em 1853, e as “Instituições de Direito Civil”, de COELHO DA ROCHA, reeditadas no Rio de Janeiro, em 1907, além das “Instituições de Direito Civil Brasileiro”, de TRIGO DE LOUREIRO, lente da Faculdade de Direito do Recife, que, publicadas em 1851, alcançaram sua 4ª edição em 1871, merecendo, ainda, particular aceitação em nossa Escola o “Curso de Direito Civil”, do conselheiro RIBAS, inicialmente estampado em 1886, que continha, apenas, a Parte Geral dessa disciplina.

Verdade também é que a êsses primeiros ensaios de sistematização se seguiram as obras notáveis do conselheiro LAFAYETTE sôbre “Direito de Família” e “Direito das Coisas”, além de outros valiosos trabalhos de CLÓVIS BEVILÁQUA sôbre “Teoria Geral do Direito Civil”, “Direito de Família”, “Direito das Coisas”, “Direito das Obrigações” e “Direito das Sucessões” e o tratado de “Direito das Coisas”, de LACERDA DE ALMEIDA, tendo, ademais, prestado serviços inestimáveis aos nossos juristas a “Consolidação das Leis Civis”, de TEIXEIRA DE FREITAS (1858), e a de CARLOS DE CARVALHO (1903), que ordenaram e completaram o velho “Repertório Geral” ou “Índice Alfabético das Leis do Império” mandado organizar por FRANCISCO MARIA DE SOUSA FURTADO DE MENDONÇA (1847 a 1860) e outras coletâneas.

Cumpre assinalar, ademais, o trabalho utilíssimo de CÂNDIDO MENDES DE ALMEIDA, com o texto das Ordenações Filipinas aditado som as nossas leis e ilustrado com a indicação bibliográfica dos autores que escreveram sôbre a matéria desde 1603 até 1807 e um Apêndice acrescentado à 14ª edição dessa obra.

Tudo isso é verdade. Mas menos verdade não é que, apesar de tantos e tão valiosos subsídios, a doutrina aparecia incerta e vacilante e dentro das que constantemente debatidas não era das menores a de se saber, com exatidão, qual o texto legal que realmente estivesse em vigor. E por isso ou porque se vissem forçados a procurar novos e doutos suplementos, raro não era, até janeiro de 1917, ver-se os nossos civilistas recorrerem aos vetustos tratadistas, decisionistas e praxistas reinícolas das lusitanas terras, esmerando-se em eruditas citações latinas de VALASCO, CALDAS, CABEDO, PEREIRA DE CASTRO, OLIVA E SOUSA, FRANCISCO PINHEIRO, PORTUGAL, GUERREIRO, MORAIS, OLIVEIRA DA COSTA, OSÓRIO, FERREIRA PEREIRA, CARDOSO, GAMA, VAZ, REINOSO, FEBOS, MACEDO, TEMUDO, AROUCA, PEGAS, CORDEIRO, além de MELO FREIRE, ALMEIDA E SOUSA, PEREIRA E SOUSA e tantos e tantos outros, que doutrinaram e analisaram regras e preceitos desde o século XVI até começos do século.

Não há de que se admirar, portanto, se os lentes mais antigos, por uma razÃo de método ou de confôrto, adotassem uri compêndio e o seguissem e mandassem seguir como se fôra texto sagrado e inviável, que se não pudesse abandonar, sob pena de excomunhão nas sabatinas e reprovação nos atos ou exames de fim de ano: sair do campo cercado e tranqüilo dos compêndios equivalia, afinal de contas, a penetrar imprudentemente no cipoal, no labirinto, na selvaselvaggia de nosso antigo direito, cujos escaninhos e cujas saídas só os eleitos conheciam. E os eleitos eram poucos. Bem poucos.

Mas o professor JOSÉ ULPIANO PINTO DE SOUSA, em sua cátedra e em sua vida profissional, não se escravizou ao tabu dos compêndios. Seu conhecimento dos princípios científicos era seguro e preciso, porque resultava de investigações próprias e de um estudo constante, metódico, paciente, das velhas e novas doutrinas. Os textos de lei, sabia-os manejar com firmeza. Em suas aulas, como em seus arrazoados e pareceres, não procurava brilhar. Não citava em demasia, nem doutrinas nem doutrinadores. De estilizar, não se preocupava. Seus trabalhos, orais ou escritos, não eram pélas literárias. Mas eram obras de convicção, simples, simplícissimas e incisivas na linguagem, mas sólidas, inabaláveis, na substância.

Não possuía o culto, mas o horror da exibição e neste feitio espontâneo e jamais rebuscado de suas preleções e de seus escritos, era sua própria personalidade que se transfundia, a personalidade, isto é, de um homem austero e profundamente independente, possuidor de convicções próprias, humanas, cívicas e jurídicas, que não alardeava, mas seguia e sabia cumprir sem vaidade, sem buscar sucessos ou aplausos, nem homenagens ou honrarias, de que sempre se afastava.

Se várias e diversas são e hão de ser as funções do jurista, por abranger o direito dós mais simples aos mais complexos aspectos da vida individual e coletiva, se a vida do direito com a da própria comunhão humana se confunde, havemos de concluir, forçosamente, que para a formação e a ação do jurista, o homem e o doutrinador ou o técnico do direito devem juntar-se numa unidade indissolúvel. E essa unidade o Prof. JOSÉ ULPIANO PINTO DE SOUSA bem a realizava, ao manifestar, em todos os atos e momentos de sua existência, um profundo respeito pela pessoa humana. Os homens, pão os distinguia em ricos e pobres, em poderosos e obscuros. Tratava de “senhor” aos seus empregados e para cumprimentar uma antiga empregada se descobria. Fazendeiro, raramente visitada sua fazenda, pois, como de seu filho e nosso ilustre colega ROBERTO PINTO DE SOUSA vim a saber, êle se sentia constrangido pela pobreza de seus colonos que, a seu ver, resultava da ordem econômica então reinante, contra a qual seus esforços pessoais, por muito fizesse (e muito fazia) não passavam de meros paliativos.

A êsse sentido humano da dignidade alheia e à consciência dos sofrimentos dos menos favorecidos pela natureza ou pelas contingências da vida, ajuntava o seu modo de ser e de viver, singelo, e modesto. Nas reuniões de que participasse, difìcilmente aceitava um lugar de honra e na sua própria mesa jamais se sentava à cabeceira, mas entre os seus filhos. Tudo fêz para não lhe serem tributadas as homenagens que por vêzes merecera e insistentemente se empenhou, para só citar um episódio, em obter da Associação dos Antigos Alunos desta Faculdade que renunciasse ao propósito de comemorar, solenemente, o cinqüentenário de sua nomeação para o professorado.

A aparente altivez de seu porte, seu retraimento, suas poucas relações sociais, mal escondiam, portanto, o cunho fundamentalmente humano que inspirou, numa síntese admirável, seus sentimentos e suas idéias, sua vida particular e sua obra de mestre de direito, advogado e consultor, conferindo ao homem e ao jurista um só espírito, uma alma só.

A política jamais o seduziu. Em 1932, recusou assumir o govêrno de São Paulo na qualidade de interventor federal, não porque se quisesse poupas de um sacrifício nas penosas condições em que nosso Estado então se achava, mas porque suas convicções democráticas não lhe permitiam aceitar aquêle cargo. Após a Revolução Constitucionalista, sim, anuiu em participar da “Chapa única por São Paulo Unido”, tendo sido eleito deputado à Assembléia Nacional Constituinte, de cujos trabalhos participou, com valiosa colaboração nos projetos e debates que antecederam a reconstitucionalização do País. Por mais honroso que fôsse, o cargo de deputado não o atraía. Foi para cumprir dever de cooperar para a restauração das liberdades públicas que, contrariando embora o seu temperamento, aceitou sua indicação e sua eleição.

E se assim êle foi e assim viveu, sem pretensões nem ambições, como não haviam de ser despretensiosas e simples – mas por isso mesmo mais valiosas – suas aulas, seus pareceres, seus arrazoados, seus estudos teóricos?

Fé inabalável no direito

Fé inabalável no direito êle sempre teve e jamais deu ouvidos aos pregoeiros de uma suposta derrocada ou decadência da ordem jurídica sob á qual a comunhão humana, em evolução constante, vem elevando, cada vez mais, o nível de sua civilização. Sempre acreditou, ao contrário, na indestrutibilidade dos princípios cristãos e éticos que do direito formam o alicerce. E admitiu sempre, isto sim, a necessidade da transformação e adaptação do direita normativo às novas contingências da vida social, criadas pelo progresso das ciências, das técnicas e das artes. Essa crença proclamou da tribuna de nossa Faculdade, em discurso de paraninfado que proferiu durante o primeiro conflito mundial, enquanto não faltavam pessimistas a anunciarem a ruína de nossa civilização cristã e democrática: a reação oposta pelas nações aliadas ao golpe de fôrça desfechado pelo militarismo prussiano dizia êle então é a prova provada da capacidade humana para a luta contra a fôrça bruta e a defesa da ordem legal que, nos regimes democráticos, assegura e garante as liberdades fundamentais dos indivíduos e das nações.

Êsse jurista que obstinadamente evitava o brilho pessoal, as homenagens e as honrarias, que timbrava em não exibir erudição e teimava em falar e escrever com a mais desambiciosa simplicidade, êsse jurista desprovido de presunção e afetação, êsse homem simples e bom, pressentiu, como poucos, que a disciplina jurídica dos novos problemas sociais, que a primeira grande guerra, já delineara, havia, de se processar, necessàriamente, partindo-se do estudo da realidade econômica contemporânea. Dessa orientação, foi êle, sem dúvida, entre nós e no canino do direito, um verdadeiro precursor.

Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Econômicos, com a colaboração de ANTÔNIO GONTIJO DE CARVALHO, que essa entidade então secretariava e de há muito e com real valor se vem dedicando aos estudos e investigações históricas, sociais e econômicas, o professor JOSÉ ULPIANO PINTO DE SOUSA organizou um Curso de Economia Brasileira professorado por PANDIÁ CALÓGERAS, que foi, sem favor, um dos nossos mais ilustres e cultos homens de Estado. A êsse curso, cuja publicação constituiu um volume intitulado “Problemas de Govêrno”, seguiram-se valiosas conferências realizadas por PAULO DE LACERDA, sôbre assuntos de direito comercial, pelo senador JOÃO LIRA TAVARES sôbre contabilidade pública, por ANTÔNIO CARLOS ASSUNÇÃO sôbre mercados e Bôlsas e dissertações e debates outros que formam valioso manancial de estudos e de informações.

A consciência dos reflexos da ordem econômica sôbre a ordem jurídico-social, o Prof. JOSÉ ULPIANO PINTO DE SOUSA já a possuía e revelava em seus mais antigos trabalhos.

Em seu excelente estudo das cláusulas restritivas da propriedade, publicado em 1910, dissertava sôbre a lei de 31 de dezembro de 1907, conhecida por lei Feliciano Pena, que permitiu ao testador determinar a conversão dos bens da legítima em outras espécies, prescrever-lhes a incomunicabilidade, confiá-los à livre administração da mulher herdeira e estabelecer-lhes a inalienabilidade temporária ou vitalícia (permissão mais tarde reproduzida pelo art. 1.723 do Código Civil); nesse estudo distinguia nìtidamente o aspecto jurídico da nova disposição legal, para lhe reconhecer plena eficiência, de seu aspecto econômico, para lhe apresentar sensíveis restrições. E assim escrevia: “das necessidades superiores da ordem social há uma importantíssima para o nosso assunto: é a da livre circulação dos bens. Esta é uma das bases de nossa organização social, política e econômica moderna; não sendo no fundo senão uma das formas da igualdade e da liberdade – o igual acesso de todos à propriedade de todos os bens, sem distinção”.

Admitindo, por fôrça de lei, a possibilidade de imposição testamentária da cláusula de inalienabilidade; o Prof. JOSÉ ULPIANO, contudo, subordinava o exercício dessa faculdade a certos limites, sustentando que “lícito não é ao testador estabelecer as circunstâncias, os motivos, as condições, que sua vontade ou fantasia determinar para a inalienabilidade temporária ou vitalícia. Não: em primeiro lugar devem prevalecer interêsses sérios, legítimos, morais, aprováveis, racionais, ou de natureza tal que não possam ser protegidos ou realizados senão por meio de inalienabilidade. Em segundo lugar, deve haver correlação entre a importação dos bens inalienáveis e a das circunstâncias ou interêsses, ou condição indicadas pelo testador. Em terceiro lugar, não devem ofender um princípio superior; a fim de se colocarem em proporção com a necessidade a satisfazer”.

E dessarte, nessas poucas palavras conjugava dois princípios (de que certos juristas modernos se julgam donos, ou criadores) quais selam o do reflexo da ordem econômica sôbre a ordem jurídico-social e o da condenação do abuso no exercício dos direitos, de vez que os direitos não perdem, por pertencerem a um determinado titular, a natureza social de sua origem, de sua essência e de sua finalidade.

Sob a frieza técnica de seus títulos e rubricas, os estudos teóricos ou práticos dos juristas debatem todos aquêles variados aspectos da vida individual e coletiva, a que já fiz referência. Muitos dêsses estudos, senão a maior parte, com freqüência se escondem no ventre de autos e nos arquivos dos cartórios e são os que revelam, mais ao vivo, a participação dos juristas nas lutas e embates forenses, onde os interêsses e as paixões se exibem, despudoradamente e nuas. Mas, pois que o direito visa instituir e manter a ordem e a harmonia da sociedade, não há demasia em afirmar-se que sob a aparente rigidez técnica dos próprios estudos teóricos o drama inteiro da vida se esconde. Por isso, a biografia de um jurista e o estudo de sua personalidade jamais serão perfeitos sem a análise de seus trabalhos, porque os seus trabalhos, mais do que os fatos e episódios, melhor lhe revelam os atributos humanos e científicos. Não me seria possível, nesta oportunidade, realizar êsse exame, ou análise. Mas não conseguiria, tampouco, apresentar a real personalidade do professor JOSÉ ULPIANO PINTO DE SOUSA se, quando menos, não indicasse os seus principais trabalhos, como demonstração de sua incansável atividade, de seu trato dos mais vários problemas jurídicos e, portanto, da extensão e profundidade de seus conhecimentos.

Publicados em livros, folhetos ou em revistas jurídicas do Rio de Janeiro e de São Paulo, deixou-nos abalizados estudos sôbre: “O Privilégio Mobiliário dos Senhorios à Segurança da Renda” (1898), contendo sua dissertação e suas teses de concurso; “As Cláusulas Restritivas da Propriedade” (1910); “O Direito das Sucessões”, in “O Direito”, vols. 105 e 108; “Os Bens ou os Rendimentos dos Bens Doados com a Cláusula de Inalienabilidade e o Penhor dos Frutos dêsses Bens”, in “Rev. do Direito”, 1911; “A Distinção entre Fideicomisso e Usufruto”, in “Revista do Direito”, vol. V, e revista desta Faculdade, 1877; “Os Contratos Simulados em Face do Direito”, in “Gazeta Jurídica”, 1910; “Os Decretos do Govêrno Provisório (1889-1890) como Fontes do Direito”, in “Rev. do Direito”, 1907.

De seus pareceres apenas uma pequena parte nos ficou e entre êstes, que se encontram na Biblioteca de nossa Faculdade, destacam-se os que contêm estudos sôbre os vícios redibitórios; a revogação do testamento cerrado; a partilha per capita ou por estirpe na sucessão ab intestato, quando descendentes de herdeiros pré-mortos concorrem com tios vivos; a aquisição, mediante testamento, por pessoa jurídica ainda inexistente; a disposição testamentária em favor de pessoa incerta; netos que concorrem à herança com tios vivos; a argüição de prejuízo em conseqüência de protesto judicial contra a alienação de bens; preferência entre testamenteiros para o cargo de inventariante; penhora de rendimentos de bens inalienáveis; se o reconhecimento judicial da paternidade após a morte do testador rompe, ou não, o testamento; necessidade de existência do fideicomissário quando desaparece o fiduciário; cumulação de ações de demarcação, turbação e esbulho; mandato cumliberaadministratione e contrato de alienação de bens; conflito de ações divisórias (parecer que com êle tive a honra de subscrever); perdas e danos e multa convencional; instituição, por testamento feito no Brasil, em favor de casa de beneficência situada em Portugal; aposentadoria de ferroviários; se o êrro sôbre a pessoa da vítima dirime a intenção criminosa; acumulação de impostos; coisas julgadas e ação possessória:

Possuo, ainda, em meu arquivo, um notável parecer seu, que o Prof. ASCARELLI e eu próprio lhe solicitamos, sôbre gestão de sociedades anônimas e direitos inerentes às ações ou títulos de capital.

Nossa biblioteca conserva, também, uma pequena, pequeníssima parte de suas razões e memoriais que superiormente debatem questões litigiosas sôbre segundas núpcias de viúva qüinqüagenária, com filhos; responsabilidade do proprietário de edifício em construção; inadimplemento de contrato; requerimento malicioso de falência; relação entre o Estado e seus funcionários; prova das obrigações por testemunhas; penhor com clausulaconstituti no direito civil e no direito comercial; caução de ações pertencentes à mulher feita pelo marido sem o consentimento dela; excesso de poderes pelo mandatário; letras de câmbio; valor do exame de livros; extinção da hipoteca por arrematação solene em hasta publica; falência fraudulenta; evicção e cessão, de clientela; bens dotais; ato inconstitucional do Poder Executivo; aquisição de direitos hereditários; abuso de direitos.

Suas aulas, seus estudos doutrinários, pareceres, razões e memoriais, sua atuação na presidência da Sociedade Brasileira de Estudos Econômicos e na Assembléia Nacional Constituinte (1933-1934), bem revelam como e quanto o Prof. JOSÉ ULPIANO PINTO DE SOUSA escrupulosamente dedicou tôda sua existência ao trato e estudo das ciências jurídicas e sociais, expondo e debatendo problemas econômicos e problemas e questões de direito público constitucional, direito administrativo, direito fiscal, direito penal, direito processual, direito comercial, direito de família, das coisas, das obrigações e das sucessões. Dissertou e debateu, isto é, em setores vários de sua atividade multiforme, problemas e questões que envolvem uma infinidade de aspectos da vida individual e da vida coletiva. Dentro da imensidão dos horizontes que marcam e norteiam a vida dos juristas, espaço não há que êle não haja percorrido e, dominado.

Qual foi, então, o traço dominante de sua personalidade, sua diretriz suprema, a linha mestra de sua vida de jurista? Eis a pergunta a que me referi de início, mas à qual sòmente agora posso responder.

Desambicioso, sim, êle sempre foi, desambicioso de fastos, fastígios, honras e honrarias. Mas uma ambição êle teve, que realizou inteiramente, com nobreza e austeridade insuperáveis: a ambição de transmitir a seus discípulos e a todos quantos seus trabalhos se dirigissem a mesma convicção segura, inabalável, honesta, que em seu espírito formava durante as suas vigílias de estudos, de meditações e em seus contatos humanos com a dura realidade da vida. Suas lições, que lições sempre eram onde quer que as proferisse, nos livros, nos pareceres, nos debates forenses, na cátedra, ou em tribunas outras, não procuravam, jamais, por exibicionismo, ostentar a cultura extensa e profunda de que resultavam. Só um fim, um único fim visavam: convencer, transmitir o conhecimento consciente da lei ou de princípios jurídicos. Por isso, os seus ensinamentos haviam de ser como foram, isto é, simples na linguagem, sólidos na substância. Por isso, de si não-cuidava o mestre, mas de seus discípulos, cuja consciência jurídica formava e amoldava singelamente, cautelosamente, convencendo e não impondo, com arte tal e engenho tanto, que conseguiu formar gerações e gerações de juristas. Assim, JOSÉ ULPIANO PINTO DE SOUSA foi em tudo e acima de tudo um professor, um mestre de direito e por esta missão suprema, que dignamente realizou, podemos definir, com segurança, a sua personalidade, missão e diretriz e linha mestra que lhe marcou o caminho da vida e lhe permitiu sentir e seguir sua real vocação, conduzindo-o ao ensino do direito aos 26 anos de idade, quatro anos apenas após a sua formatura.

Nesta Casa, de tradições tão altas, os mestres de hoje continuam a ser os discípulos dos mestres de ontem. Aqui se aprende a respeitar e conservar a memória dos antigos mestres. Digam de nós o que disserem os que, à falta de outro títulos, a si mesmos se chamam “avanguardistas”, aqui, dentro dêstes muros franciscanos, mantemos e manteremos sempre aceso o fogo sagrado de nossas tradições. Somos e seremos os construtores do futuro em continuação do passado. É êste o nosso orgulho, êste o nosso penacho. Das lições que nos legaram os antigos mestres jamais nos esquecemos. E é assim senhoras e senhores, que os mestres de hoje se curvam, reverentes e agradecidos, ante a memória do professor emérito JOSÉ ULPIANO PINTO DE SOUSA.

________

Notas:

* N. da R.: Discurso proferido pelo professor VICENTE RÁO na Sessão Solene da Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, realizada a 30 de abril de 1957, em comemoração do trigésimo dia do falecimento do Prof. Emérito JOSÉ ULPIANO PINTO DE SOUSA.

LEIA TAMBÉM O PRIMEIRO VOLUME DA REVISTA FORENSE

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