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A continuidade da pandemia e a necessidade de tutela da moradia e do exercício de atividades econômicas para a população de baixa renda
Guilherme Calmon Nogueira da Gama
15/12/2021
No último dia 09/12/2021, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do pedido de medida cautelar incidental na ADPF nº 828, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), ação na qual pretendia, originariamente, a suspensão, de modo amplo, dos processos, procedimentos ou quaisquer outros meios que visassem a expedição de medidas judiciais, administrativas ou extrajudiciais de remoção e/ou desocupação, reintegrações de posse ou despejos enquanto perdurarem os efeitos sobre a população brasileira da crise sanitária da COVID-19. Posteriormente, com a edição da Lei nº 14.216.2021, propugnou-se pela extensão dos seus efeitos.
Lei nº 14.216/2021
A referida lei já foi objeto de longo texto por nós publicado neste mesmo portal[1], e tem como propósito a instituição de medidas excepcionais em razão da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) decorrente da infecção humana pelo coronavi?rus SARS-CoV- 2, que consistem, em síntese, na suspensão, até 31 de dezembro de 2021, do cumprimento de medidas judiciais, extrajudiciais ou administrativas que possam acarretar a desocupação ou a remoção forçada coletiva em imóvel privado ou público, exclusivamente urbano, bem como a proibição de concessão de liminares em ação de despejo de que trata a Lei n° 8.245, de 18 de outubro de 1991, notadamente nos casos de imóveis cujo valor de aluguel não ultrapasse, no caso de locação com fins residenciais, o valor de R$ 600,00 (seiscentos reais), e na hipótese de locações comerciais, o montante de R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais).
Como explicitado por nós, no texto anteriormente citado, embora louvável a intenção do legislador, as medidas por ele implementadas acabariam por se tornar inócuas em razão do seu curto período de vigência.
Isso porque, após longa tramitação, haja vista que fruto do Projeto de Lei nº 827 de 23 de março de 2020 apresentado logo após o início da decretação do estado de calamidade pública decorrente do Coronavírus, o Poder Legislativo aprovou o texto, encaminhando-o para sanção presidencial em 15/07/2021, ou seja, mais de 01 ano após a sua apresentação nas Casas Legislativas.
Ocorre, contudo, que a norma projetada foi integralmente vetada pelo Poder Executivo, o que levou ao retorno do texto ao Congresso Nacional para apreciação em 05/08/2021, reexame esse que culminou com a derrubada da totalidade dos vetos e a consequente sanção e publicação da lei apenas no dia 08/10/2021, com pouco mais de 60 (sessenta) dias para o término de sua vigência. Isso porque, como explicitado anteriormente, a Lei nº 14.2016/2021 tem caráter temporário, pois só vigorará, nos termos do seu art. 1º, até 31/12/2021, tempo esse insuficiente para o resguardo dos interesses tutelados pela norma.
Por essa razão, propusemos, em nosso texto anterior, uma análise criteriosa e casuística do magistrado acerca da aplicabilidade da Lei nº 14.216/2021 mesmo após o término da sua vigência, isso porque, como observamos, “o cenário atual ainda é de grande preocupação, sem descurar da grave crise econômica que assola o país, com o aumento da inflação e dos juros. A retomada da normalidade, assim como o próprio fim da pandemia, ainda se revela, infelizmente, distante, de modo que a limitação temporal imposta pelo legislador reduz a sua eficácia no propósito de atendimento aos fins sociais a que ela se destina. Por isso, em que pese se tenha, no dia 31 de dezembro de 2021, o término de vigência da lei, cremos que ela deve servir de fundamento para reflexão do magistrado, no momento da análise dos pedidos de retomada de imóveis urbanos públicos e privados, notadamente quando da decisão dos pedidos liminares formulados pelas partes”.
ADPF nº 828
A par disso, o PSOL, em 15/04/2021, havia ajuizado perante o Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 828, distribuída para o Ministro Luís Roberto Barroso, com o propósito de, de modo amplo, suspender os processos, procedimentos ou quaisquer outros meios que visem a expedição de medidas judiciais, administrativas ou extrajudiciais de remoção e/ou desocupação, reintegrações de posse ou despejos enquanto perdurarem os efeitos sobre a população brasileira da crise sanitária da COVID-19.
O Ministro Relator, então, em 03/06/2021, deferiu parcialmente a medida cautelar para: “i)com relação a ocupações anteriores à pandemia: suspender pelo prazo de 6 (seis) meses, a contar da presente decisão, medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis, nos casos de ocupações anteriores a 20 de março de 2020, quando do início da vigência do estado de calamidade pública (Decreto Legislativo no 6/2020); ii) com relação a ocupações posteriores a? pandemia: com relação às ocupações ocorridas após o marco temporal de 20 de março de 2020, referido acima, que sirvam de moradia para populações vulneráveis, o Poder Público poderá? atuar a fim de evitar a sua consolidação, desde que as pessoas sejam levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegure a elas moradia adequada; e iii) com relação ao despejo liminar: suspender pelo prazo de 6 (seis) meses, a contar da presente decisão, a possibilidade de concessão de despejo liminar sumário, sem a audiência da parte contrária (art. 59, § 1º , da Lei no 8.425/1991), nos casos de locações residenciais em que o locatário seja pessoa vulnerável, mantida a possibilidade da ação de despejo por falta de pagamento, com observância do rito normal e contraditório”.
Contudo, posteriormente ao deferimento da medida cautelar, foi publicada a Lei nº 14.216/2021 suspendendo as ordens de desocupação e despejo até 31/12/2021, o que levou ao pedido de extensão da medida cautelar anteriormente deferida, pelo prazo de 01 (um) ano, a fim de que se mantivesse a suspensão das desocupações coletivas e dos despejos enquanto perdurassem os efeitos da crise epidêmica.
O pedido foi deferido, em parte, pelo Ministro Relator, uma vez que, em seu entender, a nova lei foi mais favorável às populações vulneráveis na maior parte de seu texto, com exceção da restrição da sua abrangência às áreas urbanas. Assim, e ainda de acordo com o voto do Relator, diante da superveniência da lei especial, esta deve prevalecer sobre a cautelar anteriormente deferida. Já no tocante aos imóveis rurais, incluídos na redação do texto original do PL nº 827/2020, mas excluídos da sua redação final, entendeu o Ministro Relator que houve uma omissão inconstitucional por parte do legislador, tendo em vista ser irrazoável proteger aqueles que estão em áreas urbanas, e não proteger aqueles que ocupam imóveis rurais.
Assim, com fundamento nesse entendimento, fez um apelo ao legislador para que seja prorrogada a vigência da Lei nº 14.216/2021 por, no mínimo, três meses, dada a persistência dos efeitos da pandemia e, caso não venha o Poder Legislativo a deliberar sobre a matéria, ou enquanto ela não for deliberada, deferiu parcialmente o pedido para prorrogar a vigência da medida cautelar anteriormente deferida até 31/03/2022, determinando a suspensão das ordens de desocupação e despejo, tanto em áreas urbanas quanto nas rurais, mas tudo de acordo com os critérios previstos na Lei nº 14.216/2021.
Submetida a decisão a referendo do colegiado, por maioria de votos foi acompanhado o voto do Ministro Roberto Barroso, vencidos parcialmente apenas os Ministros Ricardo Lewandowski e Nunes Marques que defendiam a prorrogação dos efeitos da norma enquanto perdurassem os efeitos da pandemia da COVID-19, não estabelecendo, portanto, uma data limite (termo final) para o término dos efeitos da lei. Segundo o Ministro Lewandowski, “penso que é mais prudente que tal prorrogação perdure enquanto estiverem em curso os efeitos da pandemia, tal como decidiu esta Corte na ADI 6.625, de minha relatoria”. Divergiram os ministros, portanto, apenas quanto ao prazo da prorrogação da Lei nº 14.216/2021 e, consequentemente, dos efeitos da medida cautelar, não havendo dúvidas, contudo, quanto à necessidade da própria prorrogação.
Sobre a decisão proferida pela Corte, e em sintonia com o que já havíamos manifestado em nosso texto anteriormente publicado, o Supremo Tribunal Federal reconheceu aquilo que é evidente: a pandemia ainda não acabou. O surgimento de novas variantes, a vacinação ainda reduzida em vários países, além de outros fatores (como a irrestrita “abertura” de eventos e festividades propostas em diversos locais), têm levado especialistas a cogitarem uma permanência do estado epidêmico, com idas e vindas, avanços e retrocessos, com a consequente manutenção das cautelas necessárias a evitar a propagação do vírus por pelo menos 2 (dois) ou 3 (três) anos[2]. Por isso, parece-nos acertada a decisão sob esse prisma.
No entanto, e também como alertamos anteriormente, uma “canetada” não é capaz de pôr fim à crise epidêmica e, muito menos, erradicar o vírus, de modo que estabelecer uma data específica para o fim das medidas excepcionais de proteção dos interesses das pessoas durante a pandemia não parece ser a melhor solução.
Por isso, e embora reconheçamos que a fixação de um marco temporal tenha como propósito criar parâmetros objetivos para atendimento do valor da segurança jurídica, filiamo-nos à tese vencida parcialmente de que a manutenção dos efeitos das medidas impostas pela Lei nº 14.216/2021 deve se dar sine die, isso em nome da tutela da dignidade da pessoa humana, valor tão caro à sociedade que, no caso do Brasil, foi erigido a fundamento e, portanto, pilar do Estado Democrático de Direito.
Como ainda há período de tempo de incidência das normas temporárias contidas na Lei n°14.216/2021, à luz do julgamento da medida cautelar nos autos da ADPF n° 828, dois caminhos são possíveis no sistema jurídico brasileiro: i) iniciativa, tramitação e aprovação em regime de urgência de projeto de lei para estender a aplicação das normas temporárias até o fim da pandemia (oficialmente reconhecido por ato formal do Poder Público, baseado nas informações apresentadas pelos cientistas) ou; ii) nova apreciação da questão pelo STF nos autos da ADPF n° 828, de modo a permitir a extensão do período de vigência das normas da Lei n° 14.216/2021, devido ao caráter cautelar e alterável do provimento jurisdicional em sede de medida cautelar.
Oxalá que no curso do ano de 2022 seja possível o reconhecimento do término do período da pandemia da COVID-19 e, portanto, que as normas de caráter permanente, inclusive em matéria imobiliária, voltem a ter aplicação regular.
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- A suspensão das liminares em ação de despejo e o veto ao PL nº 827/2020
- Fim da pandemia nas relações privadas por determinação legal? RJET e 30/10/2020
[1] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. A Lei nº 14.216/2021 e a impossibilidade de retomada de bens imóveis urbanos durante a pandemia. Disponível em https://blog.grupogen.com.br/juridico/2021/12/07/a-lei-no-14-216-2021/
[2] Sobre o tema ver notícia veiculada no sítio eletrônico do jornal Valor Econômico: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/12/13/mascaras-serao-necessarias-por-mais-dois-ou-tres-anos-diz-cientista-da-sinovac.ghtml