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Marcus Abraham

Marcus Abraham

23/03/2020

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000), através do seu artigo 65, considera a calamidade pública ou os estados de defesa ou de sítio circunstâncias excepcionais que permitem afastar temporariamente algumas das suas exigências, sobretudo as limitações para os gastos e endividamento. Para tanto, este estado não basta ser decretado pelo Poder Executivo, devendo ser formalmente reconhecido pela respectiva Casa Legislativa. Afinal, vidas são mais importantes do que metas fiscais, e disso ninguém tem dúvidas.

Inequivocamente, podemos subsumir a atual situação de pandemia causada pela COVID-19 (Coronavírus) ao conceito de estado de calamidade pública, assim considerada a situação reconhecida pelo poder público de uma circunstância extraordinária provocada por desastre natural, humano ou misto, que causa sérios danos à comunidade afetada, inclusive à incolumidade e à vida de seus integrantes.

Diante dessa situação, desde que chancelada pelo Congresso Nacional, o artigo 65 da LRF autoriza a suspensão temporária (e enquanto se mantiver esta situação):

a) da contagem dos prazos de controle para adequação e recondução das despesas de pessoal (arts. 23 e 70) e dos limites do endividamento (art. 31);

b) do atingimento das metas de resultados fiscais e;

c) da utilização do mecanismo da limitação de empenho (art. 9º).

Mesmo já tendo havido, em 13 de março, a abertura de crédito extraordinário na Lei Orçamentária Anual no valor de cerca de R$ 5 bilhões, conforme Medida Provisória nº 924/2020, esse montante não é suficiente. A propósito, a Constituição (art. 167, inciso V) veda a abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa, admitindo-se, todavia, o uso de Medida Provisória – apenas e tão somente – para abertura de crédito extraordinário (art. 167, § 3º), desde que seja para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de calamidade pública.

A declaração de estado de calamidade pública é inédita em nível federal. […] Com fundamento na grave crise financeira enfrentada no ano de 2016, agravada pelo desequilíbrio fiscal decorrente da queda de arrecadação e do aumento de gastos […]

Desta forma, a fim de evitar a necessidade de realizar bimestralmente contingenciamentos obrigatórios de despesas e para poder ultrapassar o limite da meta de déficit primário do setor público consolidado – estabelecida no artigo 2º da LDO/2020 no montante de R$ 124 bilhões de reais –, e assim poder enfrentar financeiramente a grave situação e custear as ações na área da saúde no combate ao COVID-19, em 18 de março passado o Poder Executivo federal encaminhou à Câmara dos Deputados a Mensagem Presidencial nº 93/2020, que assim demandava:

“Solicito a Vossas Excelências o reconhecimento de estado de calamidade pública com efeitos até de 31 de dezembro de 2020, em decorrência da pandemia da Covid-19 declarada pela Organização Mundial da Saúde, com as consequentes dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal”.

A necessidade de reconhecimento formal pelo Poder Legislativo do ato ou demanda do Poder Executivo de decretação de estado de calamidade pública decorre do princípio da democracia fiscal, pelo qual os representantes do povo são chamados – em nome da sociedade – a autorizar a adoção de um regime de exceção na aplicação das normas gerais e regulares constantes da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Assim, na noite do mesmo dia 18/3, de maneira diligente, a Câmara dos Deputados aprovou, por votação simbólica, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 88/2020, que reconhece o estado de calamidade pública no Brasil. Ressaltou-se, entretanto, que não se tratava de um “cheque em branco”. O presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia observou que a ampliação dos gastos públicos se justificava para fazer frente ao combate à pandemia que vivenciamos, sendo certo que, ultrapassado esse difícil período, a prioridade deveria voltar a ser o controle dos gastos públicos.

Dois dias depois, em 20/3, o Senado Federal, de maneira inédita, realizou a sua primeira sessão virtual, dentro do esforço conjunto para aprovar a medida. A sessão que aprovou o decreto por unanimidade foi conduzida pelo senador Antonio Anastasia (PSD-MG), que colheu o voto de 75 senadores, os quais se manifestaram por meio de chamada de vídeo ou telefônica certificada.

O Decreto Legislativo nº 06/2020 reconhece:

“exclusivamente para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, notadamente para as dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020”.

Esse decreto legislativo também criou uma Comissão Mista no âmbito do Congresso Nacional, composta por 6 (seis) deputados e 6 (seis) senadores, com o objetivo de acompanhar a situação fiscal e a execução orçamentária e financeira das medidas relacionadas à saúde pública.

A declaração de estado de calamidade pública é inédita em nível federal. Todavia, Estados brasileiros já usaram dessa medida no passado. Com fundamento na grave crise financeira enfrentada no ano de 2016, agravada pelo desequilíbrio fiscal decorrente da queda de arrecadação e do aumento de gastos, os Estados do Rio de Janeiro (Decreto 45.692, de 17 de junho de 2016), do Rio Grande do Sul (Decreto 53.303, de 21 de novembro de 2016) e de Minas Gerais (Decreto 47.101, de 5 de dezembro de 2016) decretaram o “Estado de Calamidade Financeira”, visando obter os benefícios do dispositivo.

O contingenciamento previsto no artigo 9º da LRF, que era iminente não fosse a decretação do estado de calamidade pública, estava estimado em torno de R$ 40 bilhões. Devia-se, sobretudo, à queda na arrecadação federal decorrente da desaceleração da economia brasileira e global, pela redução do consumo e da produção, além da brusca desvalorização do preço do petróleo, reduzindo as receitas de royalties.

E, sempre que há queda na arrecadação, o gatilho legal da limitação de empenho é disparado. Neste sentido, estabelece categoricamente o artigo 9º da LRF que, se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias. No caso de restabelecimento da receita prevista, ainda que parcial, a recomposição das dotações cujos empenhos foram limitados dar-se-á de forma proporcional às reduções efetivadas. Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias.

Com o decreto legislativo, o Governo Federal também ficou dispensado de se limitar ao déficit fiscal de R$ 124 bilhões estabelecido na LDO/2020. Há cálculos que já apontam para um déficit fiscal superior a R$ 250 bilhões de reais, não apenas pelo aumento de gastos, mas também devido à queda no PIB e, por consequência, redução na arrecadação.

Este rombo nas contas públicas cobrará o seu preço futuramente, caso medidas compensatórias não sejam adotadas em algum momento. Este é, aliás, o espírito da LRF, ao dispor no seu artigo 1º, § 1º que:

A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.

[…] o aumento dos tributos costuma ser a primeira coisa que vem à mente do gestor da área das finanças públicas.

Após passada a tormenta da pandemia do COVID-19, medidas duras deverão ser tomadas na busca do reequilíbrio das contas públicas, e o aumento dos tributos costuma ser a primeira coisa que vem à mente do gestor da área das finanças públicas.

A verdade é que, em momentos de desaceleração econômica, medidas anticíclicas envolvem uma forte atuação estatal, impondo a redução de tributos, a expansão do crédito e o aumento dos gastos e investimentos públicos, para que estas providências estimulem a “roda da economia a voltar a girar”.

Esta era a teoria da Escola Keynesiana, em que o Estado deveria assumir uma postura mais ativa e intervencionista – com aumento de gastos em geral e, sobretudo, de investimentos – para movimentar a economia e superar as insuficiências de demanda do setor privado, sem se preocupar momentaneamente com a austeridade e equilíbrio orçamentários. Mais contemporaneamente, uma nova escola, denominada de Escola Neodesenvolvimentista, ou novos keynesianos, que tem como protagonistas Joseph Stiglitz e Amartya Sen, prega a complementaridade entre o Estado e o mercado para estruturar e permitir o desenvolvimento sustentado e uma melhor distribuição de renda, dentro de um modelo que propõe novos paradigmas na produtividade da economia global, tendo como foco a equidade social.

Esta nova corrente de pensamento econômico ganhou especial destaque com a crise mundial de 2008, que obrigou as nações mundiais, sobretudo os Estados Unidos da América e as integrantes da União Europeia, a agirem de maneira intensa, através de políticas fiscais e monetárias – como a concessão de incentivos tributários, redução da taxa de juros, incremento nos gastos públicos etc. – para garantir a estabilidade do sistema financeiro e reagir diante da redução da demanda e do consumo.

E isso tudo parece se repetir agora em 2020 com a pandemia do COVID-19, em que medidas globais estão sendo adotadas para evitar uma acentuada queda do PIB mundial, assemelhadas àquelas tomadas no século XX, como o Plano Marshall (ajuda à Europa após a Segunda Guerra Mundial) e o New Deal (investimentos vultosos para enfrentar a Grande Depressão dos anos de 1930).

No Brasil, ajuda para empresas de aviação, hotelaria, bares e restaurantes já foram anunciadas. Também foram divulgadas medidas de auxílio financeiro para os trabalhadores informais em cerca de R$ 15 bilhões, além da antecipação das parcelas do 13º salário dos aposentados e de alguns setores da ativa, assim como o saque antecipado do FGTS. Na mesma linha, na área fiscal federal, foi autorizado o adiamento por seis meses do pagamento dos tributos da União para empresas optantes pelo Simples Nacional; a prorrogação de três meses para o pagamento do FGTS dos trabalhadores; redução por três meses em 50% no valor das contribuições do Sistema “S”; redução para 0% da alíquota do Imposto de Importação de produtos médicos e de limpeza, vinculados ao combate ao COVID-19; facilitação para o desembaraço de mercadorias importadas (insumos e matérias primas industriais); dentre outras.

Mas diante de tantas renúncias fiscais, e ante a obrigação prevista no artigo 14 da LRF, que impõe medidas de compensação financeira, não me espantaria se um empréstimo compulsório fosse criado nesse difícil momento, com base na autorização constitucional para atender a gastos inesperados originários de uma calamidade pública, tal como prescrito no artigo 148:

A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios:

I – para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência; (…)

Apesar de ser um remédio amargo, talvez fosse até melhor do que o mero aumento de qualquer outro tributo, pois, em se tratando de empréstimo compulsório, o Governo Federal está obrigado a restituí-lo, e devidamente corrigido. Seria, então, uma modalidade de “economia forçada”. Ao menos, teríamos a sensação de participar de um esforço coletivo em prol do bem comum, sabendo-se que o valor pago será devolvido futuramente.

Fato é que, superando-se esse estado de calamidade pública causado pelo COVID-19, espera-se que os governantes e parlamentares se unam para combater outro grave flagelo, que é a falta de saneamento básico, que atinge dezenas de milhões de brasileiros, e necessita de um investimento de algumas centenas de bilhões de reais para dar-lhes água e esgoto, ou seja, conceder-lhes um mínimo de saúde e dignidade. Afinal, este é um verdadeiro estado de calamidade que se mantém há décadas.

Por fim, confio que, em um Estado Democrático de Direito como o nosso, a comunhão de interesses e esforços republicanos entre os Poderes releve a polarização instaurada e garanta os meios necessários para vencer esta grave crise pandêmica que a humanidade enfrenta, oferecendo tratamento médico, saúde e saneamento básico a todos os cidadãos brasileiros.

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Crédito da imagem: Freepik


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