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Private equity: desafios para a regulação

Ana Frazão

Ana Frazão

14/03/2024

Na coluna a respeito do recente relatório da Oxfam sobre desigualdade, mencionei as referências preocupantes que o estudo faz ao atual papel da indústria de private equity. De acordo com a Oxfam, o problema da excessiva concentração empresarial – as “big three” do setor (BlackRock, State Street e Vanguard) administram juntas cerca de US$ 20 trilhões em ativos – faz com que tais entes usem seu acesso financeiro privilegiado para atuar como força monopolizadora em todos os setores da economia.

Além disso, aponta o relatório da Oxfam que “pesquisas de Harvard sustentam que o poder econômico desses fundos de investimentos está tão concentrado que ‘em um futuro próximo, cerca de 12 indivíduos terão poder, na prática, sobre a maioria das empresas de capital aberto dos Estados Unidos’, preocupações que já foram manifestadas pelo próprio fundador da Vanguard”.

Como o tema é fascinante, decidi prosseguir nas provocações a respeito do assunto com base em recente livro cuja leitura eu recomendo: Plunder: Private Equity’s Plan to Pillage America, de Brendan Ballou[1].

O livro inicia-se com diagnóstico do atual cenário econômico norte-americano, descrito pelo autor como uma verdadeira New Gilded Age. Nesse sentido, a obra mostra o quanto importantes fundos, como Blackstone, Carlyle e KKR vêm intensificando a sua presença e o seu protagonismo em todos os mercados e setores da economia.

Dentre os números apresentados pelo autor, para se dimensionar a magnitude da indústria de private equity, estão os que mostram que o setor possui mais negócios do que o conjunto de todas as companhias listadas na Bolsa de Valores e que os três principais fundos podem ser considerados os maiores empregadores dos Estados Unidos, ficando atrás apenas do Walmart e da Amazon.

O problema dos fundos de private equity e suas relações com a financeirização da economia não são propriamente novos. Já faz algum tempo que uma literatura robusta aponta para os riscos de que empresas e seus departamentos sejam vistos exclusivamente como geradores de retorno financeiro de curto ou médio prazo, o que pode comprometer o investimento produtivo, especialmente o de longo prazo.

Tais pontos são retomados na análise de Ballou, para quem tais fundos têm efetivamente acelerado a financeirização da economia norte-americana, aumentando o poder de bancos e outras instituições financeiras sobre as companhias que realmente fabricam e vendem seus produtos e serviços. Ademais, o autor menciona, a partir de exemplos concretos, muitas das práticas predatórias que exacerbam a desigualdade e acabam desviando dinheiro de negócios produtivos para negócios não produtivos.

Outros dos aspectos explorados por Ballou são (i) os riscos sistêmicos e concorrenciais que decorrem da altíssima concentração de poder que é detida pelos mais importantes fundos de private equity, e (ii) o quanto a ação de tais fundos vem trazendo como consequência o aumento de preços e a perda de qualidade de produtos e serviços, bem como o achatamento de salários nas companhias investidas.

Tais pontos não apenas degradam o bem estar do consumidor e dos trabalhadores, como também exacerbam a desigualdade, trazendo preocupações ainda maiores quando as companhias investidas atuam na prestação de serviços necessários, tais como saúde, educação superior, infraestrutura, emergência, seguros e tantos outros. Não é sem razão que o autor dedica um de seus capítulos ao fenômeno da privatização do setor público, especialmente nos governos locais.

Não obstante, o que a análise de Ballou traz de mais inquietante não é propriamente apontar o perigo e os riscos da indústria de private equity, mas sim mostrar como esta vem obtendo grande e incontestável apoio dos governos em todas as dimensões: Executivo, Legislativo e Judiciário. Por meio de diversas iniciativas de lobby e captura, operacionalizadas por estratégias como as portas giratórias, a indústria vem se expandindo sem qualquer possibilidade de contenção pelo aparato estatal.

Outra das estratégias destacadas pelo autor é a da litigância judicial abusiva, que, embora traga efeitos nefastos especialmente sobre os mais pobres e a classe trabalhadora, não tem sido contida pelo sistema judicial norte-americano, descrito pelo autor como “tremendamente solícito” e apoiador das empresas de private equity.

É por essa razão que, segundo Ballou, tais agentes têm comumente construído negócios não propriamente por meio de estratégias legítimas – como diminuição de preço e aumento de qualidade – mas sim por meio de iniciativas de litigância abusiva ou predatória, incentivadas ou viabilizadas pelo poder que têm para impor cláusulas de arbitragem e também para moldar as regras jurídicas sobre as ações coletivas em seu próprio benefício.

Medidas que precisam ser tomadas

Mais do que um diagnóstico, o livro também apresenta importante parte propositiva, em que o autor procura enunciar as medidas que precisam ser tomadas, dentre as quais:

  • Contenção de abusos em mercados específicos, por meio de standards mínimos de cuidado em prestação de determinados serviços, como saúde e enfermaria;
  • Mudança dos incentivos que direcionam a indústria para os excessos apontados, o que implica que os agentes estejam sujeitos à regulação que exija a consideração dos efeitos de longo prazo de suas decisões, bem como que impossibilite determinados tipos de aquisições ou comportamentos
  • Redução dos custos sistêmicos criados pela indústria em toda a economia, mas particularmente em alguns setores, como seguro, fundos de pensão e crédito privado.

Para Ballou, várias das medidas sugeridas podem ser tomadas por diferentes meios, tais como regulação, litigância ou mesmo legislação. O problema é cada uma dessas frentes exige poderes estatais que possam fazer frente aos desafios com a devida autonomia, cenário que tem se mostrado improvável na atualidade.

Além disso, o livro apresenta conjuntos de propostas mais específicas dirigidas aos diversos órgãos governamentais. Podem ser mencionados, a título de exemplo, o reforço da legislação antitruste, a revisão das regras para fusões e aquisições na área e a investigação de interlocking directorates – a cargo do Departamento de Justiça e da Federal Trade Commission – e o aumento da transparência, o reforço de deveres fiduciários e a vedação de determinadas práticas abusivas – a cargo da Securities Exchange Comission.

Sob diversas perspectivas, a análise de Ballou nos leva a refletir sobre as conformações do atual capitalismo financeiro, sobre quem efetivamente detém poder econômico e sobre as formas como tal poder é exercido. Mais do que isso, trata-se de alerta sobre a importância da regulação para a própria manutenção de uma economia de mercado que seja efetivamente funcional, o que depende do equilíbrio entre poder e responsabilidade.

Se assegurar a responsabilidade de todos aqueles que detêm poder empresarial já é tarefa imprescindível para a regulação jurídica de qualquer mercado ou de qualquer agente econômico, com maior razão deverá sê-lo em relação a agentes que detém o poder econômico de tais fundos e cuja ação pode gerar graves externalidades e riscos não apenas para a economia, mas também para a sociedade e a política.


Fonte: Jota

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NOTAS

[1] BALLOU, Brendan. Plunder. Private Equity’s Plan to Pillage America. New York: Public Affairs, 2023.

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